Análise | Em autobiografia, Cher expurga abusos sofridos pela mãe para se compreender: ‘Fuga na música’

Em primeiro volume de suas memórias, a cantora parte dos traumas e dos vícios da família para traçar sua personalidade e confessar inseguranças; leia trecho

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Foto do author Danilo Casaletti
Atualização:

Nos primeiros capítulos de Cher - A Autobiografia Parte Um (HarperCollins Brasil), Cheryl Sarkisian, ou melhor, Cher, se debruça sobre a história de sua família. O livro, recém-lançado no Brasil, é escrito em primeira pessoa, de forma leve e com tiradas bem humoradas, frases de impacto e revelações importantes sobre a vida de um dos maiores ícones pop de todos os tempos. O segundo volume ainda não tem data de lançamento.

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Cher, 78 anos, parece querer expurgar, de uma vez por todas, os traumas sofridos na infância. Redimir a vida de sofrimento, privações e abusos que sua mãe, a cantora e atriz Georgia Holt, tratada no livro como Jackie Jean, nome de registro, viveu. Tudo ressoa na pessoa que Cher é - como ela mesma relata na publicação de quase 400 páginas.

No livro, Cher narra que a mãe, ainda menina, mas já com voz de cantora de blues, cantava Danny Boy, composição de Frederic Weatherly, em bares para onde o pai da garota, Roy, alcoólatra e violento, ia todas as noites. A performance da pequena Jackie Jean rendia algumas moedas que complementavam o sustento da família na época da Grande Depressão Americana, no final dos anos 1920. Cher gravou essa canção, feita em 1910, em 1969 - e costuma apontá-la como a preferida dela. A letra fala em despedida.

A cantora Cher faz revelações sobre a família em sua autobiografia Foto: Mert & Marcus

Foi nessa mesma época das apresentações em bares que, segundo Cher, a mãe dela passou a ser abusada por um tio com quem foi morar depois que a mãe da menina, Lynda, a abandonou com Roy. Duas coisas salvaram Jackie: uma catapora, que a obrigou a dormir na cozinha, longe do tio, e a música.

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No livro, Cher relembra a frase que ouviu da mãe quando ela, certa vez, se referiu a sua infância. “Eu voava para longe dos problemas quando cantava”. Cher reflete que não foi difícil compreender o sentimento da mãe. “Tendo encontrado minha própria fuga na música a vida toda, eu entendia exatamente o que ela queria dizer”.

A próxima empreitada do avô de Cher, Roy, foi levar a filha, aos 8 anos, de Oklahoma para Los Angeles. Ele alimentava a esperança de que Jackie se tornasse uma nova Shirley Temple, a estrela infantil mais bem paga da época.

No entanto, o vício de Roy em bebidas sempre atrapalhava tudo. “Nas veias da minha família, o vício não corre, ele galopa, e suas tristes consequências se repetiram com terrível simetria ao longo da minha vida”, escreve Cher, em outro trecho do livro.

Cher, Gregg e o filho Elijah em foto de 1976 Foto: Cher/Acervo

Cher tem razões de sobra para fazer tal afirmação. Nos últimos anos, ela tem lidado com os problemas que seu filho Elijah Blue Allman, de 48 anos, enfrenta em decorrência do vício em álcool e drogas. Em 2023, Cher entrou com um pedido de tutela de Allman, alegando que ele não tinha mais condições de administrar sua própria vida e finanças. A cantora foi acusada pela ex-nora, Marieangela King, de mandar bandidos sequestrarem o filho. Cher negou as acusações.

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Em setembro de 2024, cerca de nove meses depois de ter entrado com o pedido de tutela do filho na Justiça americana, a cantora desistiu da ação. Allman é filho de Cher e do roqueiro Gregg Allman (1947-2017).

Os advogados da cantora afirmaram à época que a desistência de Cher permitia “que as partes se concentrem na cura e na reconstrução de seus laços familiares, um processo que começou durante a mediação e continua até hoje”.

Mais um trauma, desta vez, em um orfanato

Cher no colo da mãe, Jackie, em 1946 Foto: Cher/Acervo Pessoal

Em Cher - A Autobiografia Parte Um, a cantora também discorre sobre seu pai, o armênio Johnnie Sarkisian, a quem ela classifica como um homem de “fala mansa” e “imperfeito desde o início” . Ela é espirituosa ao tratar a escolha da mãe por Sarkisian. “As mulheres da minha família raramente escolhiam bem os homens, e Jackie Jean não foi exceção”.

Cher narra que o pai vivia do salário da mãe dela. O casal pulava de casa em casa de parentes, por falta de uma moradia fixa. “Meu pai se tornaria um viciado em heroína com tendência ao furto e teria uma relação complicada com o trabalho”, escreve.

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Infeliz no casamento, Jackie Jean deixou o marido e buscou a mãe, Lynda, que, ao descobrir que a filha estava grávida, a levou a uma clínica de aborto ilegal. A mãe de Cher literalmente fugiu da mesa do médico. “Você acredita que estive tão perto de não ter você?”, disse Jackie Jean a Cher, anos depois.

A vida do casal Jackie e Johnnie continuou difícil. Sem dinheiro, o destino da pequena Cher foi um orfanato de freiras. Abandonada pelo marido e trabalhando em uma casa que comercializava bebida alcoólica, Jackie não podia ao menos visitar a menina no orfanato. Cher calcula ter ficado meses no local, até sua mãe conseguir sua liberação.

O assunto, segundo Cher, sempre foi espinhoso para mãe dela - Georgia, ou Jackie, morreu em 2022, aos 96 anos. A própria Cher só conseguiu depurar essa experiência em 1994, quando escreveu a canção Sister of Mercy. A letra, em livre tradução, diz: “Na casa de Deus ela/Mantida como refém/Por uma multidão cruel/E sem coração”.

“Minha infância nunca foi normal”, descreve Cher, em outro trecho do livro. O episódio do orfanato repercute até hoje em sua personalidade. A cantora diz sentir medo de ser abandona e, por isso, sempre é a “primeira a ir embora de tudo”.

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“Meu medo de ser abandonada, sem dúvida, vem de ter sido separada da minha mãe ainda bebê, e minha drama queen interna tornou-se parte integral do ser humano complicado que sou”.

Em Cher - Uma Autobiografia, a cantora aborda outros temas, como seus relacionamentos amorosos, tumultuados ou não, com Sonny Bono, com quem formou uma dupla, David Geffen e Gregg Allman.

A chave para entender como Cher encara a vida de maneira leve, apesar das dores do passado, está no sexto capítulo do livro, quando ela narra o episódio no qual a mãe dela a levou para assistir ao filme O Mágico de Oz - na introdução, há outro emocionante relato, que contribuiu para a personalidade artística da cantora (leia mais abaixo).

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“Certa noite, nesse cinema, minha mãe disse que eu teria uma grande surpresa, avisando somente: ‘Vocês vão amar esse filme. Ele mudou minha vida na primeira vez que assisti’. Quando O Mágico de Oz começou, fiquei rabugenta. ‘Nós viemos aqui para ver um filme em preto e branco?’ Pensei: ‘Como isso pode ter mudado a vida dela?’ Mas, assim que Dorothy abriu aquela porta para um mundo colorido, fiquei de queixo caído pelo resto do filme.”

Leia o prefácio de Cher - Uma Autobiografia Parte Um

Los Angeles, verão de 1956

Vidrada na televisão, boquiaberta, deixei meu sanduíche de pasta de amendoim com geleia cair no prato que estava no meu colo, e um calafrio percorreu todo o meu corpo.

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Sozinha em casa após a escola, eu estava sentada no chão de pernas cruzadas (minha posição favorita até hoje), na frente da TV, curtindo a paz e o silêncio e assistindo ao meu programa favorito, American Bandstand. “E agora, senhoras e senhores, Ray Charles”, anunciou Dick Clark, enquanto a câmera focava em um homem bonito de óculos escuros sentado ao piano.

“Georgia, Georgia…”, começou ele, e me debulhei em lágrimas. Não conseguia acreditar que ele estava cantando uma música sobre a minha mãe. As lágrimas caíam no sanduíche, e percebi que, em toda a minha vida, nunca havia me sentido tão conectada com algo. A voz de Ray Charles e a melodia da canção pareciam expressar exatamente o que eu sentia.

Demorei semanas para superar aquela apresentação (e, de certa forma, nunca superei), mas aí uma pessoa cujas músicas eu tinha ouvido pela primeira vez no rádio radicalizou meu entendimento do mundo, e eu nunca, nunca mais, fui a mesma. Assistindo ao Ed Sullivan Show com a minha mãe, um jovem cantor popular chamado Elvis Presley preencheu a tela. Ela e eu éramos duas dos 60 milhões de americanos que testemunharam aquela apresentação histórica em setembro de 1956.

Apesar de Elvis Presley estar vestido de um jeito bem tradicional naquela noite de domingo, sua aparência e seus movimentos eram 14 diferentes dos de qualquer outro artista que eu já tivesse visto. Ele começou a cantar “Don’t be Cruel” e, quando chegou em “Love me Tender”, senti como se ele estivesse cantando só para mim. Queria entrar na televisão e ser o Elvis.

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Um ano depois, quando soube que ele faria um show no auditório Pan-Pacific, em Los Angeles, corri para casa com os meus olhos de 11 anos de idade brilhando. “Mãe, mãe! O Elvis vai cantar no Pan-Pacific! Podemos ir…? Por favor!” Eu estava convencida de que precisava estar lá. Em segredo, imaginava que ele me veria no meio na multidão e me escolheria, embora com certeza isso fosse exatamente o que toda garota pensava.

Por sorte, minha mãe de 31 anos de idade era tão louca por Elvis quanto eu, algo que impressionava as minhas amigas, cujas mães não aprovavam a sexualidade escancarada dele. Até hoje, não sei como ela arrumou dinheiro para os ingressos, mas, de alguma forma, Georgia conseguiu. Nós nos arrumamos e seguimos em direção ao centro, mais como irmãs do que como mãe e filha. Sentindo a tensão aumentar conforme nos aproximávamos do distrito de Fairfax, logo estávamos no meio de uma multidão pulsante de 9 mil garotas barulhentas.

Fomos arrastadas para dentro daquele auditório em uma onda de pura adrenalina. Nossos assentos ficavam mais ou menos no meio da plateia, mas por mim estava ótimo. Eu observava todas as garotas ao redor gritando de ansiedade para o palco ainda sem luz e sentia o coração batendo forte dentro do peito — uma sensação com a qual ainda ia ficar muito familiarizada.

O palco estava escuro, mas, quando as luzes recaíram sobre ele, Elvis estava lá e era mágico. O urro da multidão era diferente de tudo que eu já tinha ouvido. Uma explosão de flashes disparou. Me arrependi de não ter levado a nossa pequena Kodak Brownie. Elvis estava lá de pé, com seu famoso terno dourado que brilhava e mudava de cor com as luzes.

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Ele era bonito demais, com aquele sorriso cativante e os cabelos pretos lustrosos, exatamente da mesma cor dos meus. Todo mundo ao nosso redor ficou de pé e começou a gritar de um jeito tão histérico que mal conseguimos ouvir uma única palavra de “Heartbreak Hotel”. Mas, caramba, dava para ver os movimentos dele — o jeito como girava os quadris e sacodia as pernas até elas tremerem. Não satisfeitas em fazer o máximo de barulho possível, as meninas começaram a subir nas cadeiras para ver 15 melhor, o que significou que, daquele momento em diante, eu só consegui ver a cabeça e os ombros de Elvis.

Estar no meio daquela multidão berrante era como ser sugada pela correnteza de uma onda imensa de quadris rebolando, arrastada junto com a histeria na direção do palco. Eu não fazia a menor ideia de por que todo mundo agia de um jeito tão insano. Para ser sincera, era nova demais para entender essa parte (mas se fosse três anos mais velha e minha mãe, três anos mais nova, teríamos desmaiado). Eu só sabia que era a experiência mais emocionante que eu já tinha vivido, porque, pela primeira vez na vida, entendi que também queria, um dia, estar naquele palco, sob aquele holofote.

Quando olhei para a minha mãe, ela estava embasbacada. Nós duas ficamos hipnotizadas. Ela estava tão linda, com uma roupa tão incrível que, de todas as garotas naquele lugar, incluindo eu mesma, tive certeza de que Elvis a escolheria.

Aproximei a boca ao seu ouvido, para que ela pudesse me escutar, fiz uma concha com as mãos e berrei: “Mãe, podemos subir nas cadeiras e gritar também?”

“Sim”, respondeu ela, sorrindo como uma adolescente e tirando o salto. “Vem, vamos subir!” E assim fizemos, ficando na ponta dos pés para vê-lo.

Reluzente de felicidade, tentei pensar se Elvis seria velho demais para se casar comigo quando eu crescesse, para que pudesse cantar para mim todos os dias. Sonhando em ser a sra. Presley, não consegui parar de falar com a minha mãe sobre Elvis durante semanas, flutuando pela casa em uma nuvem de lamê dourado.

Prefácio cedido pela HarperCollins do livro Cher: A autobiografia (parte um) (páginas 13 a 15). Não pode ser reproduzido sem autorização prévia da editora

Capa do livro 'Cher - Uma Autobiografia Parte Um' Foto: HarperCollins Brasil
  • Cher- A Autobiografia Parte Um
  • Editora HarperCollins Brasil
  • 400 páginas; R$ 89,90

Análise por Danilo Casaletti

Repórter de Cultura do Estadão

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