Em autobiografia, David Lynch se recorda da origem de seus filmes nada ortodoxos

'Espaço para Sonhar' relata encontros do cineasta com Elizabeth Taylor e Anthony Hopkins

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Foto do author Ubiratan Brasil

O cineasta americano David Lynch é conhecido por filmes ao mesmo tempo enigmáticos e fascinantes - raramente Lynch segue uma linha reta. Assim, não é de se estranhar que sua autobiografia, Espaço para Sonhar (Bestseller), que chega agora ao Brasil, também não siga as regras comuns. O diretor convidou uma amiga, a jornalista Kristine McKenna, para escrever em conjunto, mas com um formato nada trivial: Kristine fez mais de cem entrevistas, consultou datas e checou versões para produzir cada capítulo. Esse texto era lido e corrigido por Lynch que, em resposta, escrevia outro capítulo, mais pessoal, em que reflete sobre as recordações dos outros para desenterrar as suas próprias. Como a dupla informa no prefácio do volume, o que se lê é uma pessoa conversando com a própria biografia.

Lynch é adepto da felicidade plena: o artista não deve sofrer para exibir sofrimento Foto: Dean Hurley

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A sensação provocada no leitor é semelhante à de se assistir a um filme, com seu diretor sussurrando como foi arquitetada cada cena. Em uma carreira iniciada com o longa Eraserhead, em 1977, Lynch sempre exibiu uma enorme disposição em desvendar o lado desarticulado dos valores mais prezados pela sociedade americana, o que se tornou notável em filmes como Veludo Azul, Coração Selvagem e Cidade dos Sonhos, além da icônica série de TV Twin Peaks. Trabalhos que não provocam uma imediata identificação do espectador, que só vai descobrir isso depois, quando o incômodo se transforma em algo familiar.

No livro, Lynch conta como teve uma infância aparentemente feliz, período em que suas obsessões começaram a fermentar. Rapaz, revelou-se apto às artes gráficas e ganhou fama ao personalizar as T-shirts brancas de seus amigos, com desenhos personalizados. Adulto, pintou um quadro em que retratava de forma perturbadora a cidade de Boise, onde passou a infância: no canto inferior, surgem algumas casas, mas o que chama atenção é um furacão ameaçador, que surge na lateral.

Em entrevista ao site NPR, Lynch conta que a ideia do livro nasceu com Kristine McKenna. “Ela fez uma série de entrevistas com inúmeras pessoas que foram parte da minha vida. Li o que cada um falou e decidi apontar o que eles disseram errado e escrevi textos em que mostrei o que realmente aconteceu. Assim, surgiu essa conversa no livro”, comentou.

Se o formato não é o tradicional, a biografia, porém, segue o padrão ao trazer revelações, como a que envolve Elizabeth Taylor.

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Em uma carreira com 84 produções assinadas pelo seu nome (entre longas, curtas e programas de TV), o cineasta conheceu e trabalhou tanto com figuras estelares como anônimos que lhe renderam grandes histórias. Um exemplo deste último é o drama verdadeiro vivido por um viúvo de 70 anos que inspirou o filme História Real – ao descobrir que o irmão sofreu um derrame, ele decide pôr fim ao período de mais de dez anos de afastamento e cruza o país em um pequeno trator.

São esses pequenos personagens, cuja história revelam grandes almas, que sempre interessaram Lynch, como se observa na autobiografia Espaço para Sonhar. É o caso também de John Merrick, principal personagem de O Homem Elefante, longa de 1980 que teve a produção de Mel Brooks. O homem que viveu no final do século 19, em Londres, como uma aberração (sua aparência era deformada por causa de uma doença congênita), encantou o diretor justamente por sua inteligência e sensibilidade, que contrastava com seu pobre visual.

O livro detalha a provação diária passada por Lynch, então um jovem cineasta americano que despertava a desconfiança de refinados atores britânicos, especialmente Anthony Hopkins. Em uma das passagens da biografia, um irado Hopkins questiona os produtores sobre a capacidade daquele rapaz – anos depois, o ator se desculpou.

Há momentos também hilariantes – como seu encontro com Elizabeth Taylor, em 1988, na festa dos vencedores do Oscar. Lynch concorreu como diretor por Veludo Azul, mas perdeu para Oliver Stone, premiado por Platoon. Ao chegar ao restaurante Spago, Lynch cumprimentou o lendário cineasta John Huston. De repente, ele percebe estar na mira do mais famoso par de olhos cor de violeta do planeta. “Eu amo Veludo Azul”, comenta Liz, ao que Lynch retruca que ela, ao entregar a estatueta para Stone, recebeu dele um beijo. “Gostaria de ter ganhado também por isso”, flertou o diretor.

O que aconteceu em seguida seria digno de figurar no mais alto panteão da história de qualquer fã de cinema: Liz fez um sinal com o dedo, Lynch se aproximou, ela inclinou a cabeça para trás, cerrou aqueles olhos reluzentes e o diretor se aproximou lentamente, até que seus lábios tocassem os dela. “Lábios de travesseiro”, descreveu ele. “O mais fantástico e profundo beijo de Elizabeth Taylor.”

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Em sua narrativa, Lynch reforça o benefício conquistado pela liberdade reinante na sociedade americana dos anos 1950, tempo em que uma euforia dominava os cidadãos, especialmente como arma moral contra os russos, na Guerra Fria. “Havia um tipo diferente de sentimento no ar”, comenta ele, em entrevista ao site NPR. “Era um otimismo desmesurado. Gosto de dizer que essa sensação foi representada pelo fantástico cromo nos carros, além do nascimento do rock’n’roll. Bastava você observar como eram os interiores das casas enquanto ouve essa música nova, observando a forma como as pessoas se vestiam e exibiam seus sorrisos. É uma sensação daquela época.”

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Por falar em representação, Lynch aproveita para se defender de acusações que marcaram muitos de seus filmes: a de que as personagens femininas habitualmente são vítimas de violência e de obsessões, sendo normalmente espancadas ou mesmo assassinadas. “Sempre digo que as mulheres nos meus filmes não representam todas as mulheres – representam, sim, as circunstâncias que a cercam. Minhas personagens são fruto do conjunto de ideias que formulamos a partir da nossa sociedade”, justifica ele, ainda na mesma entrevista.

Lynch, de fato, é o artista que transformou o cinema em uma alucinante mistura de tempo, espaço, sexo e morte. O curioso, como ele revela no livro, é que tais ideias não nascem necessariamente de sonhos, mas de sua predileção por boas histórias. A origem de Twin Peaks, aliás, nasceu quando ele descobriu que um crime não desvendado, ocorrido na região onde passou a infância, não despertava mais atenção: a de uma moça encontrada morta, com marcas de violência. Segundo ele, ninguém na cidade se interessava em ajudá-lo a recuperar a história ou mesmo tinham curiosidade em saber quem tinha sido o autor do crime.

E é o mesmo homem que adotou a prática da meditação na década de 1970, antes mesmo de estrear no cinema com Eraserhead. O filme, aliás, era um dos preferidos do diretor Stanley Kubrick, como Lynch revela, com orgulho. A aproximação veio com o interesse pelo movimento espiritual criado pelo guru indiano Maharishi Mahesh Yogi, que seduziu outros simpatizantes como os Beatles.

Mesmo com quase 600 páginas, o livro apresenta muito pouco de David Lynch, como lamenta o próprio. “Isso é só a ponta do iceberg”, observa, no parágrafo final, no qual arremata: “Em última análise, cada vida é um mistério até que cada um de nós o resolva, e é aonde todos vamos, saibamos ou não”.

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