Análise | Rita Lee, entre ser fã ou virar mito, escolhe descer do pedestal em livro póstumo

Com humor e autoironia, a cantora e escritora explora, em ‘Mito do Mito’, a complexa relação entre fãs e ídolos, em uma história que mistura realidade e ficção

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Foto do author Damy Coelho
Atualização:
Rita Lee durante lançamento de sua 'Uma Autobiografia', em 2016. Cantora investiu também na carreira literária, tendo publicado oito livros, entre eles, duas autobiografias e dois infantis Foto: Gabriela Biló / Estadão

“Entreguei o livro e pedi que cuidasse do lançamento, mas com uma condição: só depois de morta. Artista morto vale mais, tem uns até que viram mito”. Nas primeiras páginas de O Mito do Mito, lançado em julho pela Globo Livros, Rita Lee manda um recado – que acabou virando um presente. Despedimo-nos dela, mas não de sua arte, que reverbera, inédita.

A obra póstuma da cantora – porque ela assim quis, já que estava escrita desde 2019 – tematiza a relação fã/ídolo, os sonhos, as ciladas as (des)ilusões que só quem ama demais a arte e um artista consegue compreender.

A persona-literária de Rita Lee se faz nos detalhes que os leitores já conhecem: as frases curtas, os termos em inglês misturados ao português. Para confessar estar por fora das tecnologias, optou pelo termo “analfabyte”. Para falar de animais – qualquer animal – simplificou para o termo “anymal” Foto: Divulgação / Globo

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Ao ter o livro em mãos, o leitor pode se questionar: é continuação biográfica ou ficção fantástica? A dúvida se esclarece nas primeiras páginas: é um híbrido, que a própria autora denominou “autoficção”.

A protagonista tem o mesmo nome: Rita Lee Jones, que também é nacionalmente famosa. Assim como a ídola-Rita, tem uma estrela de sete pontas tatuada na mão. E, também como uma Rita Lee vivida, que já vislumbrava a nostalgia dos que já foram, a protagonista pedia proteção por meio da tatuagem que, de alguma forma, a conectava com os abraços da mãe.

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Para além disso, alguns casos e personagens podem ter sido levemente inspirados em fatos reais. É aí, também, que reside o mistério da obra.

O mito

Paulistana - e assumidamente bairrista – Rita Lee se inspirou no centro histórico da capital para ambientar um suspense à brasileira, com doses de sensualidade vampiresca e bem longe dos castelos fakes de estúdios hollywoodianos.

Em O Mito do Mito, a protagonista decide se consultar com um psiquiatra. Porém, o médico só atende depois do pôr do sol, em um casarão próximo ao mosteiro de São Bento. Com um misto de curiosidade, medo e um pouco de atração, ela se deixa levar durante a consulta.

O que chama a atenção na obra é o fato de que, no divã hipotético criado por Rita, há liberdade total para revelar inseguranças, até aquelas que soam incabíveis. Ao psiquiatra misterioso, revela:

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Eu gostaria de dizer como o amor dos fãs me faz bem. Mas não entendo o que veem em mim

A personagem-autora Rita Lee, em 'O Mito do Mito'

Passagens como essa emocionam – ainda que descritas de forma bem-humorada, como também ocorre em Rita Lee: Outra Autobiografia (Globo Livros, 2023). Na obra, ela descreve o período em que conviveu com o câncer de pulmão – que recebeu o sugestivo nome de “Jair”. O jeito debochado para tratar de temas pesados é, inclusive, uma das marcas registradas da autora.

Transformando-se em personagem de si mesma, Rita Lee deixa transparecer a dificuldade em se entender rainha ou mito de qualquer coisa - uma certa autossabotagem comum às mulheres. Ao contrário de outros tidos mitos, Rita não vestiu essa carapuça.

Sucesso, aqui vou eu

Rita Lee conviveu com dualidade ídolo-fã desde quando era uma jovem apaixonada pelo ator James Dean que começava a se destacar nos Mutantes. Já ali, seu rosto roqueiro-angelical e a franja imitada por 10 entre 10 meninas se iluminava na tela da TV Record, durante o Festival da Música Popular Brasileira.

Mas foi na parceria romântico-musical com Roberto de Carvalho, o “Rob”, a partir da segunda metade dos anos 1970, que ela conheceu sua maior popularidade. Gostava das manifestações de afeto, porque as entendia também como fã. Acostumou-se com filas na porta do camarim, com pessoas que a paravam para pedir um autógrafo na rua, com fãs renovados a cada geração.

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Porém, em o Mito do Mito, Rita pondera que lugar do ídolo é, também, de sofrimento – “A quantidade de sucesso pode vir a ser inversamente proporcional à sua felicidade pessoal”, escreve.

Fotos inéditas durante ensaio da cantora realizado em 1970, quando tinha 22 anos Foto: Domício Pinheiro/Estadão
Rita Lee e Roberto de Carvalho em 1987: uma dupla sucesso de público Foto: Sergio Amaral/Estadão

Sem rodeios

Mesmo não se tratando de uma autobiografia, Rita Lee se deixa transparecer ao longo da narrativa. Abre parêntese para falar abertamente, como sempre falou, sobre questões espinhosas. O uso e excesso de drogas é descortinando, fazendo uma reflexão sobre a espetacularização do usuário quando as substâncias saem de cena: “Depoimentos de ex-drogados recebem bastante recall da mídia”, destaca.

Também reconhece que desacatou autoridades masculinas compondo e cantando sobre sexo. Em contrapartida, sentia que afastava alguns homens: “O assédio até podia ser grande, mas não era maior do que o medo que os caras deviam sentir de mim.”

Porém, há coisas que Rita Lee não conta, deixando o leitor curioso por respostas que talvez nunca se confirmem: o segredo do amor longevo com seu Rob e, em uma passagem menos singela do livro, quem seria a “cantora arroz de festa” com quem o santo não batia - muitas suspeitas foram levantadas nas redes, indo de Sandy (por ter defendido rodeios) à Zélia Duncan (que a substituiu nos Mutantes em 2006).

Como faz um bom ídolo, Rita elegantemente “se abstém de comentar detalhes da vida pessoal.”

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“Artistas são deuses do exagero”

Na dúvida entre amar e ser amada, Rita Lee mostra desenvoltura ao descer do pedestal. É no lugar de fã que se sente confortável para expor vulnerabilidades e delírios.

Alguns causos da fã-Rita citados no livro merecem destaque: como quando deu um cristal phantom para David Bowie (bonitinho) e depois escreveu de batom no espelho do banheiro: “ELE SABE QUE EU EXISTO” (delírio). Ou quando ganhou um pedaço de tecido do James Dean - autenticado, ela frisa - que costumava cheirar “como se fosse a cueca dele - uma experiência transcendental”.

Confessa não entender os modismos atuais dos fãs de realities. Para ela, que teve como primeiro ídolo o personagem Peter Pan, um ídolo tinha de, pelo menos, saber voar. Ou defender a causa animal, como faz Brigitte Bardot – e como ela mesma fez, o que não deixa de ser irônico. Porém, Rita esclarece que não é fã de si mesma, “porque tem a lua em virgem.”

Diante dos casos que ouviu, o psiquatra-misterioso crava: “Como fã, você não tem cura”. Ao que a paciente Rita responde: “Nem quero. Minha vida seria besta sem meus ídolos.”

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Mais que um experimento autoficcional de Rita Lee, O Mito do Mito é uma declaração de amor. Aos ídolos que cultivou, ao público que a abraçou, à família que a formou e a que criou, à música que ouviu e que gestou. É uma carta de leitura leve e bem-humorada que ela deixa encarnada não só como mito, mas como alguém que adora outro, uma fã - a figura mais romântica desde a Grécia Antiga. Dessa maneira, presta uma homenagem a todos eles.

O Mito do Mito

Globo Livros

184 p.

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R$ 64,90 (impresso) e R$ 44,90 (ebook)

Análise por Damy Coelho

Repórter de cultura do Estadão

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