Essa história começa em 2012. O ano da grande loucura, como E L James chama. Foi quando sua trilogia erótica Cinquenta Tons de Cinza chegou às livrarias de todo o mundo e virou um fenômeno instantâneo.
Para onde quer que se olhasse, alguém estava lendo a história de Anastasia e Christian Grey. Em todas as rodas de conversa, lá estavam eles. Falava-se bem, e mal. Muitos autores tentaram copiar a fórmula, livros eróticos que antes ficavam mais reservados nas livrarias foram colocados em destaque. Em Macaé, um juiz mandou recolher a obra e todas as outras do gênero. Para ele, esse conteúdo deveria estar lacrado. Deu o que falar – e deu cria. Anos depois, E L James, que já tinha levado os livros para o cinema, resolveu recontar essa história de amor entre uma menina virgem e um bilionário e que envolve muito sexo e um contrato sadomasoquista a partir do ponto de vista dele. Livre, o último volume da série Cinquenta Tons de Cinza Pelos Olhos de Christian, acaba de ser lançado pela Intrínseca.
E L James falou com exclusividade ao Estadão, pelo Zoom, desde sua casa em Londres. Confira trechos da conversa sobre literatura, pandemia e seus livros, que venderam 165 milhões de cópias no mundo e 7,5 milhões no Brasil.
'Cinquenta Tons de Cinza' foi o último grande fenômeno do mercado editorial. Como se sente sendo a última pessoa que conseguiu fazer algo novo?
Não acho que isso seja especialmente novo. Essa é uma história de amor romântica, um pouco pervertida em alguns lugares – mas não muito. É sobre alguém incrivelmente danificado, que encontra alguém que o aguenta. Ainda não entendo por que a série teve esse sucesso todo. É assombroso. Isso mudou a minha vida, e espero que para melhor. Mas não é nada novo. É algo como A Bela e a Fera.
Mas depois de seus livros escritores tentaram fazer algo similar. Romances eróticos sempre existiram, mas não eram lidos pelo grande público – nem em público.
Acho que é daquelas coisas sobre as quais você não pode falar a não ser que você tenha lido. Mas, basicamente, essa é uma história de amor. Uma fantasia, uma fuga. É escrito para mulher, por uma mulher. Os livros permitem que as pessoas se desliguem da vida cotidiana e fujam para esse mundo onde elas encontram homens capazes de fazer quase tudo, exceto cozinhar. Acho que é isso que os livros representaram: uma fuga agradável.
Você disse que sua vida mudou depois de 'Cinquenta Tons'. Quem era você antes e qual é o seu projeto literário agora?
Antes disso tudo eu trabalhei por muitos anos com televisão. Eu gostava muito e uma das coisas das quais sinto falta é do contato. Ser uma escritora é uma experiência muito solitária. Sinto falta dos meus colegas de trabalho, de construir algo junto. Pensando para a frente, eu tenho vontade de fazer outro filme e de escrever mais livros. Tenho muitos personagens na minha cabeça, talvez quatro ou cinco livros em mente. Só preciso encontrar tempo para mandá-los ao mundo.
O que a literatura significa para você como escritora e leitora? E o que busca ao escrever um livro?
Acho que o que eu busco é algo que me cative completamente. Recentemente, eu li The Songs of Achilles, de Madeline Miller, uma história de amor entre dois homens, situada na Grécia Antiga e lindamente escrita. Acho que é isso o que as pessoas buscam: algo que vai arrebatá-las e não vai deixá-las soltar o livro. Não há muitas sensações melhores do que essa de fugir por meio de um livro.
E o que significa, para você, o ato de escrever?
Escrever é uma fuga, também. Durante a pandemia, estávamos todos presos, não podíamos sair. Escrever me deu uma fuga, uma saída. Sempre fui uma sonhadora, e escrever me deu a oportunidade de canalizar esses sonhos diurnos e me permitiu ter algumas experiências, por meio dos meus personagens, que eu não teria. É por isso que escrevo histórias de amor. Escrevo histórias de amor para me apaixonar mais uma vez.
Esse livro teria sido diferente se não tivesse sido feito na pandemia? Ela deixa alguma lição?
Escrever Livre me levou para fora de casa, me tirou do isolamento, na minha imaginação. Mas ele não teria sido diferente, não. Teria demorado mais para ter sido escrito, porque eu estaria saindo e fazendo outras coisas. Eu e meu marido somos escritores, então não mudou nada na nossa rotina e na nossa vida. Mas o mais interessante é que eu nunca tinha ficado tanto tempo em casa. Compramos essa casa em 2012, no ano da grande loucura, como chamamos, e temos um belo jardim que pudemos ver em todas as estações. Mas temos sorte de continuar como se tudo estivesse normal.
E internamente?
Acho que medo. Fiquei mais temerosa. Certamente tomamos consciência de nossa própria mortalidade. Eu queria terminar Livre para o caso de algo acontecer e eu não estar mais aqui (risos). Se eu não terminasse o livro, acho que seria uma grande traição para meus leitores, que viviam me pedindo por ele.
Você disse que escreve para mulheres. Havia algo lá atrás que gostaria de dizer a elas por meio de suas histórias? E agora, quase 10 anos depois, ainda há algo a dizer?
Não estou aqui para dizer nada a ninguém – nem como se comportar, nem o que fazer. Isso depende delas e só diz respeito a elas. O que me proponho a fazer é garantir algum entretenimento a elas. Só isso. Não tenho outras pretensões a não ser entreter as pessoas com as minhas histórias. O que elas levam diz respeito a elas. Algumas pessoas gostam, outras não. Tudo bem. Eu me divirto muito escrevendo, embora escrever possa ser difícil às vezes. Mas é um ótimo processo para manter seu cérebro ativo. Enfim, eu não escolheria dizer nada a ninguém. Este não é o meu lugar.
E o que foi mais difícil: criar essa história ou recontá-la a partir de outro ponto de vista?
Recontar. Em Livre, há muitas coisas que acontecem que Christian sabe e que Ana não sabe. Então tive de construir o que ele sabe. E tem um thriller relevante ao longo do livro e tive de colocar tudo dentro. Era como um enorme quebra-cabeça colocar a informação correta no lugar certo. Foi muito difícil e desafiador e espero que tenha valido a pena, que as pessoas gostem.
A ideia de recontar a história existia desde o começo?
Escrevi um capítulo da continuação, depois um livro. O primeiro filme foi uma experiência terrível para mim e eu queria voltar aos personagens e recuperá-los de volta. Foi o que fiz. Escrevi Grey: Cinquenta Tons de Cinza Pelos Olhos de Christian. Foi um jeito de eu reatar com Ana e Christian. Eu não imaginei que as pessoas pediriam o Mais Escuro e depois o Livre. Eu teria escrito outras coisas, mas me pediram esses. Espero ter correspondido.
Você não gosta de dizer “nunca mais”. Podemos esperar algo novo dessa história, ou não?
Acho que deixei Ana e Christian num bom lugar, e quero que fiquem lá – certamente por um tempo. E quero explorar outras coisas.
Quando você pensa em um livro sempre pensa nele como uma história de amor ou gostaria de ir para outros lugares?
Sempre uma história de amor. Na verdade, tem outra coisa que quero escrever, mas tenho certeza de que colocarei uma história de amor lá. Eu quero me apaixonar de novo. É um sentimento maravilhoso. Então, por que não fazer isso por meio de um livro e evitar de chatear meu marido?
O que aprendeu sobre Christian ou sobre os homens ao escrever esses livros?
O que eu aprendi sobre homens? (silêncio) Desculpa, a palavra que me ocorre é muito rude para eu mencionar. (risos) Eu sempre soube, desde o início, que Christian era, de longe, muito mais frágil do que Ana. Minha mãe é da América do Sul, do Chile. Ela era uma mulher forte, e penso em mulheres fortes. Ana é. Christian tem que aprender isso. Ela não desiste de Christian e não desiste do que ela acredita.
Uma curiosidade, que talvez você conheça. Em 2012, os cinco livros mais vendidos no Brasil foram os seus três eróticos e dois religiosos.
(Risos) Sério? Sexo e religião... é a isso que tudo se resume. É muito irônico. Amei isso.
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Livre: Cinquenta Tons de Liberdade Pelos Olhos de Christian
Autora: E L James
Trad.: Alexandre Raposo, Ana Rodrigues, Cássia Zanon, Maria Carmelita Dias, Maria de Fátima Oliva Do Coutto e Regiane Winarski
Editora: Intrínseca (752 págs.; R$ 69,90; R$ 46,90 o e-book)
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