Escritores buscam na pandemia matéria-prima para produzir obras diferentes e vibrantes

Gisele Mirabai, Lucas Lins e Felipe Franco Munhoz estão entre os autores que já produziram textos literários sobre o momento atual

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Atualização:

A literatura costuma tomar mais tempo do que outras artes para refletir sobre o tempo presente – embora alguns clássicos continuem a fazê-lo centenas de anos mais tarde. Crônicas à parte, a pandemia começa agora, porém, a ver os primeiros trabalhos literários de fôlego tomando forma.

Uma das primeiras iniciativas nesse sentido foi da escritora mineira Gisele Mirabai, finalista do Jabuti em 2018 por Machamba (Ed. Nova Fronteira). Em apenas nove dias, Gisele escreveu seu novo (e quinto) livro, Ana de Corona – o romance foi lançado online no fim de abril e agora também está disponível em formato físico, pela Ciao Ciao Editorial.

Autores, respeitando o isolamento social. Felipe Franco Munhoz, Lucas Lins e Gisele Mirabai Foto: Hélvio Romero/Estadão

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No livro, a vida da ambientalista Ana passa por uma inflexão que envolve o corte de sua bolsa de pesquisa pelo governo, o casamento e a família, uma nova paixão – e a pandemia. “Uma noite, bem no início da pandemia, li um artigo da USP sobre o vírus durar bastante tempo no ar, nas partículas de aerossóis, que são mais leves. Ali eu entrei em pânico e pensei: todo mundo vai pegar. Fiquei sem dormir a noite toda e de manhã, eu tinha duas opções. Ou ficava letárgica o dia todo ou me sentava para escrever”, explica.

Da escrita à publicação, foram 19 dias. Também roteirista, ela conta que foge do formato fixo do roteiro, que boa parte das vezes têm arco dos personagens definidos e cenas encadeadas se movendo em direção ao final da história. Nesse caso, porém, o formato pareceu adequado. Ela estabeleceu a Páscoa como data-limite para a conclusão da escrita – “seria a minha ressurreição”. É engraçado notar que, na estrutura do livro, o próprio vírus funciona como encadeamento, espalhando-se por personagens que orbitam em torno da protagonista.

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“Quando terminei, dei o livro para doze leitores betas variados”, explica, sobre o processo editorial agilizado. “O livro tem muitas informações e eu escolhi leitores que, de alguma forma, dominavam parte daquelas informações e também podiam me dar feedbacks variados da história. Depois desses dois a três dias de leituras, foi mais uma semana para recriar o livro a partir das sugestões, lapidar a linguagem, contratar um revisor que trabalhava em paralelo comigo, e fez ao todo três revisões. No fim de semana seguinte criei o e-book junto a uma estratégia de lançamento de download gratuito.”

O trabalho anterior da escritora, já solitário, lhe deu ferramentas para enfrentar a necessidade de isolamento social: “sempre brinco que, com a minha rotina de escritora, já estava de quarentena há oito anos”.

Para ela, neste momento, a literatura pode sim ser uma forma de lidar com o contexto atual. “O engajamento nas redes sociais nos faz conhecer mais autores negros, mulheres e que não conhecíamos até então”, diz. “Quanto à criação do texto literário em si, sinto que o contexto sóciopolítico-ambiental em que vivemos estará cada vez mais presente, educando, trazendo reflexões e transformando olhares.” Uma de suas leituras, desconfortável, admite, é O Conto da Aia, de Margaret Atwood.

Lucas Lins faz a 'Poesia Para Matar o Corona'

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O poeta paulistano Lucas Lins, de 22 anos, concluiu em maio uma potente série de poesias, chamada Poesia Para Matar o Corona, pela qual compartilhou, via Instagram, poemas narrativos sobre o cotidiano de uma quarentena em São Paulo. Inspirado por Carolina Maria de Jesus, Lins percebeu que o tempo – com o trabalho numa Casa de Cultura suspenso – poderia servir, ele mesmo, de material para seus textos.

Muito jovem, ele contraria o que Graciliano Ramos dizia sobre não existir prodígios na literatura: em seus melhores momentos, sua poesia do cotidiano, recheada de imagens bonitas, faz um retrato incisivo do País (“não vale a pena ver de novo / capítulos de avenida brasil”), cuja estética, ao mesmo tempo dedicada e espontânea, acende um tipo de esperança da qual todos estão necessitados. Vidas Secas, não por acaso, foi uma leitura da quarentena.

Um trecho de um dos poemas diz: “moradores do meu bairro / preveem a chegada do gás / por causa da sinfonia do beethoven”. Outro: “o vinícius me gritou lá de baixo / perguntou se veria essa foto no instagram com oração na legenda / eu sorri / não pensei que poesia fosse reza”.

“Eu absorvi o conhecimento do slam”, diz Lins, por e-mail ao Estadão. “É essa a literatura que chega nas escolas da periferia e afeta os alunos, bem mais do que Machado de Assis. Poeta de corpo vivo, da nossa idade, da nossa cor, que fala gíria, faz performance, é um outro estado da poesia.”

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O escritor destaca que procurou no presente matéria-prima para a literatura. “Poesia pra Matar o Corona é a própria crise da covid, a falta de contato físico, situação do País, a população de baixa renda sem condições de cumprir o isolamento, eu não sabia se no dia seguinte (de quando comecei a escrever) a cidade de SP ainda estaria aberta, quanto mais o mundo pós-pandemia.”

O que ele sabe, porém, é que a literatura não vai criar a vacina. “A literatura vai falar de relações humanas, histórias, a vida da forma que acontece. Carolina fez isso na Favela do Canindé, Anne Frank fez isso no período do nazismo, e essas obras são atemporais. A escrita está muito mais ligado à lembrança do que ao presente.”

Felipe Franco Munhoz investe na forma como ferramenta estética

O escritor Felipe Franco Munhoz – isolado em seu apartamento em São Paulo desde o dia 14 de março – teve a ideia de construir um texto quando um disco de Pixinguinha pulou na faixa Urubu, uma gravação de 1922. “O solo de flauta de Pixinguinha repetia-se no tempo certo da música. Demorei algumas repetições para notar que não era proposital; quando compreendi, ao invés de parar, resolvi permitir que o compasso errático soasse várias vezes.” Esse foi o ponto de partida de Parêntesis – texto que se encaixaria no gênero “closet drama”, uma peça teatral para ser lida.

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No texto, um casal se forma em interações pelas janelas, cada um em seu apartamento – ideia que também partiu da vivência do escritor. “Isso fez com que eu pensasse, durante vários dias, na eventual interação entre vizinhos que não se conheciam antes de seus isolamentos: de quais maneiras, novas interações poderiam se estabelecer? Quais formas de relacionamento poderiam germinar entre janelas?” Decididos ao confinamento total, eles formam um casal “que (apesar do contato visual, apesar da proximidade) nunca experimentou o toque, é um casal que está impossibilitado do encontro físico”.

Consciente de uma busca estética a favor da fusão completa entre forma e conteúdo, Munhoz aplica aqui uma experimentação formal que já aparecia em Identidades (Nós), seu livro mais recente, de 2018. “Parêntesis simularia, de certo modo, um risco em um disco de vinil – e sua repetição, em pulos, tendendo ao infinito”, explica o escritor. “Busca espelhar certa sensação que a quarentena imprimiu em várias pessoas com quem converso: de que os dias não se diferem. Com a disposição específica do texto na página, que representa o distanciamento entre os personagens.”

Leitor voraz da literatura contemporânea, sua leitura mais recente na quarentena foi Ao Pó (Patuá), de Morgana Kretzmann. Para ele, a arte pode também estimular um combate no território político. “A literatura pode estimular o desejo pelo conhecimento (o que, inclusive, por si, provavelmente conduziria eleitores a futuras escolhas com mais discernimento)”, comenta. “Isso porque a arte lança luzes e sombras sobre as nossas próprias luzes e sombras.”

TRECHOS

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“Mas por hora, apesar de seu melhor esforço poético, Ana sente-se desconcentrada para escrever. Sua bolsa de pesquisa da CAPES foi cortada. Ela soube da notícia há pouco tempo, justamente quando mais se dedicava ao tema. Agora trabalha como freelancer na área de comunicação de uma grande empresa petrolífera - que tenta compensar seus impactos ambientais com seus projetos verdes - e enquanto isso segue estudando para, quem sabe com seu texto sobre O Fio do Novelo de Lã, possibilitar uma mudança real na consciência ambiental das pessoas. Mas sem o incentivo financeiro, fica difícil dar continuidade à pesquisa. Não apenas a dela, mas quase 12000 bolsas de pesquisa já foram cortadas pelo governo vigente. Ela precisa conciliar os estudos com o trabalho, os cuidados da casa, o casamento com Fred e a criação de sua filha Eva. Sobrecarregada pelo excesso de atividades, conseguiu negociar na escola para a filha chegar mais cedo e tem de dez ao meio-dia para escrever sua pesquisa. Sabe que é pouco tempo e hoje especialmente a concentração demora a surgir, sente-se aérea e distraída. Abre a janela em frente à mesa para ver se o ar lhe traz alguma inspiração. O vento sopra na direção de Ana. Nessa mesma hora, o vizinho de cima que sempre teve hábitos estranhos e escatológicos, vai até a janela e espirra feito um dragão. Milhões de gotículas se espalham no ar e caem dois metros à frente, no jardim do prédio. Algumas partículas mais leves, no formato de aerossóis, flutuam na fina flor do ar que Ana inspira e vão parar dentro do seu apartamento. Mais precisamente em seu sistema respiratório. Nesse exato momento, Ana se contamina.” (Ana de Corona, Gisele Mirabai. O livro está disponível em formato físico neste link)

“Todo comércio é essencial esse ano não foi letivo ventos iniciam temporada de pipas eu abaixo das linhas chilenas como abaixo das barracas na feira sempre que me vê pela biblioteca ou casa de cultura a Bia repete a mesma pergunta como estão as poesias?” (Poesia Para Matar o Corona #70, Lucas Lins. Os outros poemas estão no Instagram do poeta: @poesialucaslins)

“O parêntesis que contém a maior chuva de sensações da história, golpes e beijos e bombas de variadas intensidades, pressões, texturas. Minúcias-gestos, nesse intervalo, minúcias-movimentos humanos, salientam-se perceptíveis: pulmões, músculos, tendões. Gira, o disco de vinil, três mil quatrocentos e cinquenta e seis graus. Eu contei.” (Parêntesis, Felipe Franco Munhoz.

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