Thrillers psicológicos em ambiente doméstico não são exatamente uma novidade – há quem atribua o surgimento do gênero ao Barba Azul, publicado em Paris por Charles Perrault em 1697 –, mas de tempos em tempos eles ressurgem e fazem barulho. Nos últimos anos, especialmente depois de Garota Exemplar (2012), 15 milhões de exemplares vendidos, 137 semanas na lista do New York Times e 37 em primeiro lugar e adaptação cinematográfica com indicação para o Oscar, o gênero virou uma das grandes apostas do mercado editorial internacional, ávido por descobrir a nova Gillian Flynn. E agora ganha fôlego também nas livrarias brasileiras.
A lista de lançamentos é grande e alguns deles devem chegar às listas de mais vendidos. Por exemplo, se A Garota no Trem, de Paula Hawkins, foi o sexto livro mais vendido no País em 2016, somando mais de 77 mil cópias, e o sétimo em 2015, com 42 mil, segundo o Publishnews, é natural que o livro seguinte da escritora britânica desperte o interesse de seus leitores. Essa é a aposta da Record, que acaba de mandar para as livrarias Em Águas Sombrias e vai trazer a autora mais festejada do gênero neste momento para a Bienal do Livro do Rio (31/8 a 10/9).
A Intrínseca, que publicou Garota Exemplar no fim de 2014, também aposta no gênero e já tem dezenas de títulos em seu catálogo. Entre os mais recentes estão Quem Era Ela, de JP Delaney, e Deixei Você Ir, de Clare Mackintosh. A Rocco tem uma coleção dedicada ao thriller psicológico, a Luz Negra, que lançou na semana passada Querida Filha, de Elizabeth Little. Ainda este ano, a Alfaguara publica Sempre Vivemos no Castelo, de Shirley Jackson. E a lista continua.
O que os títulos guardam em comum é que eles se afastam de clichês comuns dos romances policiais – detetives homens em busca da solução de crimes comuns, por exemplo – para construir ambientes domésticos perigosos e instáveis, com todo tipo de relações familiares e amorosas. Na mistura, estão suspeitas de infidelidade e demais traições, desconfianças, desaparecimentos repentinos, memórias nem sempre confiáveis, mortes, e, às vezes, toques de um realismo nem sempre 100% preso ao real.
A maioria deles também traz protagonistas mulheres que, frente a situações complicadas, seja de abuso dos homens que as cercam ou relacionadas a mortes e desaparecimentos, nunca se colocam como vítimas indefesas, e sim como engrenagens ativas de investigações e às vezes de crimes quase perfeitos.
“Era uma tendência no passado que a mulher fosse sempre o corpo morto na primeira página, mas os thrillers domésticos estão lidando com a vida de mulheres de uma forma diversa, levantando questões caras a elas de um jeito muito sério. Vemos mulheres como mães, filhas, irmãs, amantes, esposas. E também como vítimas ou investigando e reagindo a um crime. Isso é o que é interessante no thriller doméstico”, diz Paula Hawkins ao Estado.
Para JP Delaney (pseudônimo do escritor britânico Tony Strong), nos últimos anos, esse tipo de livro mostrou como a literatura policial pode ser sofisticada. “Gillian Flynn, em particular, mostrou em Garota Exemplar que personagens mulheres não precisam ser ‘admiráveis e mal-humoradas’, mas também podem ser complexas, cheias de camadas e moralmente ambíguas”, comenta. Em seu livro Quem Era Ela, a personagem Jane busca um recomeço e se encanta por uma casa e seu incomum proprietário – para então se descobrir envolvida em uma história sinistra de duplicidade e mentiras. Os direitos do livro foram vendidos para 41 países e deve virar filme pelas mãos de Ron Howard.
Outro sucesso de público e crítica que chega ao Brasil agora é Deixei Você Ir, de Clare Mackintosh: mais de um milhão de livros vendidos em 30 línguas, prêmio de melhor policial do ano no Reino Unido e um dos 10 melhores livros policiais do ano para o The New York Times. O romance é sobre uma mulher que se muda para uma parte remota do País de Gales depois que seu filho, criança, é atropelado e morre.
“Thrillers psicológicos sempre foram populares”, diz Mackintosh, “e livros como Rebecca (Daphne du Maurier, 1938) nos mostram que o arranjo doméstico sempre foi uma fonte de fascínio para o escritor de policiais. Num mundo cheio de perigos externos – terrorismo, guerra, desastres naturais – nós olhamos para nossas famílias e nossas casas como locais de segurança e conforto. Ao ambientar thrillers psicológicos nesse ambiente doméstico, estamos abalando as estruturas no primeiro lugar que os leitores esperavam que fosse seguro.”
A escritora trabalhou por 12 anos na polícia da Inglaterra, lidando com diferentes crimes: desde assaltos, assassinatos até abuso doméstico. “Se meu livro despertar uma discussão sobre questões contemporâneas como abuso doméstico, isso me agrada. Romances policiais frequentemente oferecem um espelho para a sociedade”, diz Mackintosh, ressaltando que a intenção não é essa.
E o espelho de uma sociedade. “Desde cedo somos ensinadas a olharmos para nós como vítimas potenciais. Aprendemos o que devemos saber e fazer para evitar sermos vítimas de um crime. Não acredito que ensinem coisas assim para homens, que digam: não beba demais, não pegue táxi, não volte andando para casa, não use roupa curta. Talvez a gente tenha uma relação diferente com esses livros porque nos vemos na pele de diferentes personagens”, afirma Paula Hawkins, que acredita ter mais leitoras que leitores.
Delaney também oferece uma definição para as obras de noir doméstico. “No fundo, todos esses livros são retratos de uma personagem feminina que se coloca a questão: quão bem entendemos as pessoas que amamos?”.
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