A morte do escritor português José Saramago, no dia 18 de junho de 2010, causou comoção internacional. Na manhã daquela sexta-feira, o autor de 87 anos estava em sua casa em Lanzarote, nas Ilhas Canárias, quando passou mal durante o café da manhã e, apesar de ter recebido auxílio médico imediato, não resistiu. A causa da morte foram complicações respiratórias provocadas por um fungo, além de uma leucemia crônica.
Os dez anos sem José Saramago será o tema do encontro online promovido pela ação #SempreEmCasa, live sobre literatura que o tradicional encontro Sempre um Papo realiza em seus canais no YouTube e Facebook. A partir das 18h desta quinta, 18, o jornalista Afonso Borges vai conversar com a também jornalista Pilar del Río, que foi casada com o escritor português e hoje preside a Fundação José Saramago, Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras, e Carlos Reis, professor de Coimbra.
Em Lisboa, a data será lembrada com a leitura do livro que escrevia quando morreu, Alabardas, Alabardas, publicado incompleto, no qual trata da ética de responsabilidade, questão central de seu trabalho literário, reflexo de sua atividade como cidadão.
Duas oportunidades para se discutir o legado do ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1998. Dono de uma personalidade forte, controversa (especialmente em assuntos políticos e religiosos) e de uma escrita que ainda encanta, Saramago continua oferecendo temas para debates acalorados.
As preocupações com justiça marcaram a biografia desse filho e neto de camponeses, que nasceu na vila de Azinhaga, em 1922, e que viveu sob o regime de Salazar do qual Portugal só se livrou em 1974. Suas afinidades políticas nunca limitaram suas reflexões e, apesar de ser um militante comunista durante boa parte de sua vida, às vezes criticou duramente a esquerda: “Antes, passávamos a dizer que a direita era estúpida, mas hoje não conheço nada mais estúpida que a esquerda”, disse, certa vez.
Saramago também valorizava debates aprofundados sobre o sistema democrático, convencido de que o poder real não residia nas mãos de governantes, mas nas das multinacionais. “Falar sobre democracia é uma falácia”, costumava dizer.
Seu primeiro romance publicado, em 1947, foi Terra do Pecado, quando passou a exercitar com o estilo, evoluindo livro a livro. Na biografia Saramago, João Marques Lopes reproduz o momento em que o autor, enquanto escrevia Levantado do Chão (1980), encontra seu caminho. “Quando ia na página 24 ou 25, e talvez seja esta uma das coisas mais bonitas que me aconteceram desde que estou a escrever, sem o ter pensado, quase sem me dar conta, começo a escrever assim: interligando o discurso direto e o indireto, saltando por cima de todas as regras sintáticas ou sobre muitas delas.”
Foi seguindo com essas experimentações até que seu nome fosse reconhecido mundialmente com Memorial do Convento (1982, editado no Brasil, assim como toda a obra do autor, pela Companhia das Letras), no qual criticou a exploração dos pobres nas mãos dos ricos. Com isso, sua escrita passou a ter repercussão internacional, que culminou com a publicação de O Evangelho Segundo Jesus Cristo, em 1991.
Ateu confesso, conta ali a história do Filho de Deus sob uma ótica mais terrena, anticlerical, humanizando Cristo ao evidenciar seu caráter frágil e vulnerável, além de insinuar uma relação com Maria Madalena. “O filho de José e Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo do sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse mesmo e único motivo”, diz um trecho do livro, que também ressalta o caráter punitivo de Deus: “Dizer um anjo que não é anjo de perdões, ou nada significa, ou significa demasiado, vamos por hipótese, que é anjo das condenações, é como se exclamasse Perdoar, eu, que ideia estúpida, eu não perdoo, castigo.” A reação foi imediata e violenta. Em Portugal, o então subsecretário de Estado adjunto da Cultura, Sousa Lara, vetou o livro de uma lista de romances portugueses candidatos a um prêmio literário europeu. A medida foi apoiada pelo primeiro-ministro do momento, Aníbal Cavaco Silva, alegando que o escritor não representava o pensamento da maioria dos portugueses. Revoltado, Saramago decidiu deixar o país e se estabeleceu em Lanzarote.
A fogueira voltou a arder em 1998, quando Saramago foi eleito pela Academia Sueca como vencedor do Prêmio Nobel de Literatura. A decisão foi atacada pelo Vaticano, que condenou a oferenda a “um comunista com visão antirreligiosa do mundo”, segundo noticiou na época o diário oficial do Vaticano L’Osservatore Romano. O escritor retrucou no mesmo tom. “Em vez de opinar sobre literatura, tema sobre o qual não entende, o Vaticano deveria se preocupar com os esqueletos que tem guardados no armário”, comentou. “Só podia se esperar isso desta Igreja que em toda a História vem se metendo onde não é chamada e opinando sobre coisas que não tem capacidade de compreender.”
Com um caminho bem formado como escritor e pensador crítico do mundo, Saramago começou, com Ensaio sobre a Cegueira, uma trilogia involuntária ao lado de Todos os Nomes (1997) e A Caverna (2001), revelando sua visão de mundo na mudança de séculos. Lançado em 1995, o livro mostra como um motorista parado no sinal se descobre subitamente cego. É o primeiro caso de uma “treva branca” que logo se espalha incontrolavelmente. Isolados em quarentena, os cegos se percebem reduzidos à essência humana, em uma verdadeira viagem às trevas. É o ponto de partida para o escritor revelar sua visão aterradora e comovente de tempos sombrios. Para ele, é preciso lembrar “a responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam”. O brilho branco da cegueira ilumina as percepções das personagens e a história torna-se não apenas um relato de sua sobrevivência, mas também de suas vidas espirituais e da dignidade que tentam manter. Mais que olhar, importa reparar no outro. Só assim o homem se humaniza novamente.
Acumulou fãs e seguidores em todas as esferas, assim como desafetos. Em 2003, o crítico literário norte-americano Harold Bloom reforçou a fama de provocador ao afirmar que Saramago era, em sua opinião, o mais talentoso escritor vivo daquele momento. O único a ombreá-lo seria o também americano Philip Roth. Era o início de uma amizade intensa, marcada tanto por afagos desse quilate como por troca de farpas, especialmente quando suas opiniões discordavam em relação à política internacional.
“Saramago não utilizava a literatura para passar mensagens políticas. Era um cidadão comprometido com uma forma de ver e analisar o mundo, tinha causas e partidos, mas isso não influenciava seu trabalho literário, ainda que fosse evidente que seus livros não são de um conservador de direita”, comentou ao Estadão, em 2010, a também escritora Pilar Del Río, com quem o autor foi casado. “(Seu legado são) seus livros, que são monumentos. Mas, à margem deles, sobressai sua atitude diante do mundo. Era um transgressor, que não se calou para não incomodar. Dizia sempre o que pensava, propôs questões fundamentais e tratou de encontrar respostas. Afirmou que faltavam dois pontos à Declaração Universal dos Direitos Humanos: o direito à heresia e à dissidência. Ser dissidente para não se acomodar. Ser herético para não ser calado por dogmas. Um belo plano, não?”
10 frases marcantes de José Saramago
- "Se não ouço as palavras dentro da minha cabeça na hora de principiar um livro, se não consigo escutar uma voz a dizer o que vou escrevendo, o livro não sai. Aos leitores que não entendem o que escrevo, digo para ler em voz alta duas ou três páginas até descobrir o ritmo, a música."
- "No geral, ainda que sem esquecer as exceções de um lado e do outro, penso que as mulheres são melhores (personagens) que os homens. No particular, isto é, como escritor criador de ficções, tenho-me rendido à força com que se me apresentaram as minhas personagens."
- "O território do romance, pela sua vastidão, permite e muitas vezes reclama por deslocações nos planos temporais, mas creio não ser esse o caso do teatro. A lógica de encadeamento é distinta, o teatro não suporta digressões, avança em linha reta. Nesse sentido, o teatro é implacável."
- "Há sempre algumas pessoas que são insistentemente reacionárias. Daí se manifestam quando suas crenças estão em perigo."
- "Hoje, o homem é incapaz de entender o mundo sem guerras. Mas, há um tipo de guerra que não entra na minha cabeça, que me recuso a aceitar, embora também tenha sido algo que acompanhou a história da existência humana, que são as guerras da religião. Se realmente existe um deus (e eu não acredito nisso), deve existir apenas um só. Não faz sentido existir um deus para uns e outro para outros. Mas, se por causa das diferentes interpretações da existência desse deus as pessoas se matam, se torturam e se devoram, a conclusão dramática é que as religiões nunca serviram para aproximar as pessoas. Acontece ao contrário, com adeptos de religiões diferentes se vendo como inimigos. Esquecem-se todos que, matar em nome de deus, significa transformar esse deus em um assassino. É triste constatar mas, na história humana, milhões de pessoas já morreram no mundo em nome de Jesus Cristo, de Alá e outros deuses."
- "Deus não é confiável. Que diabo de Deus é esse que, para enaltecer Abel, despreza Caim?"
- "A generalizada e estereotipada visão de que o Brasil seria reduzível à soma mecânica das populações brancas, negras, mulatas e índias, perspectiva essa que, em todo caso, já vinha sendo progressivamente corrigida, ainda que de maneira desigual, pelas dinâmicas do desenvolvimento nos múltiplos setores e atividades sociais do País, recebeu, com a obra de Jorge Amado, o mais solene e ao mesmo tempo aprazível desmentido."
- "À medida que envelhecemos, vamos acumulando aquilo que chamo de segmentos linguísticos. Hoje (aos 86 anos), não falo como quando tinha 8 anos nem sequer quando estava com 30. Há uma espécie de camadas que vão se acumulando, do mais antigo ao mais recente. Tenho a impressão de que, durante a doença que me atacou e da qual tive a rara sorte de escapar com vida (ao menos um médico que me atendeu disse isso), camadas antigas voltaram à superfície. Ou seja, palavras que eu não mais usava ali estavam e figuram na história. Não apenas escrevi o livro (A Viagem do Elefante), mas o livro também escreveu a mim. Não posso dizer que se trata de uma verdade científica, mas algo realmente diferente se passou pela minha cabeça."
- "A escrita não se exercita num blog. Se assim fosse, o mundo estaria cheio de escritores. Mas é certo que o blog permite um contato quase instantâneo com os seus destinatários, de certo modo o mesmo tipo de diferença que existia entre uma carta e um telegrama. A obsessão da rapidez é uma das características da nossa época em todos os aspectos da vida. Mas é uma perigosa ilusão pensar que se pode vencer o tempo."
- "Tal como o conhecemos, o livro terá ainda uma longa vida. Uma biblioteca é um lugar especial, os livros são os homens e as mulheres que os escreveram. Estar numa biblioteca é estar acompanhado."
Cinco livros essenciais de José Saramago
- Levantado do Chão (1980)
É um romance que se aproxima de uma reportagem ao mostrar o destino conflituoso das pequenas gentes e das grandes fomes que assolaram a região alentejana, devido à resistência ao regime que antecedeu a Revolução dos Cravos. A narrativa traz uma prosa que não tem receio de se mostrar partidária de um dos lados. (Companhia das Letras, e-book: R$ 34,50)
- Memorial do Convento (1982)
Reinvenção do romance histórico, livro que o consagrou internacionalmente, graças à mistura entre narrativa histórica e história individual. A trama se passa desde a Idade Média e avança até o século 20. Começa com a construção do Convento de Mafra, no reinado de D. João V. Depois de muita dificuldade, o rei e a rainha conseguem ter um herdeiro, na verdade, uma menina, Maria Rebeca, que se casa com um nobre espanhol. Destaque ainda para o casal Baltazar e Blimunda. Eles se conhecem e se apaixonam num auto de fé da Inquisição, quando a mãe de Blimunda é acusada de bruxaria. O casal fica nove anos separado e se encontra em outro auto da fé em Lisboa. Só que, desta vez, quem está sendo queimado é Baltazar. (Companhia das Letras, livro: R$ 62,90, e-book: R$ 34,50)
- O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991)
Obra que gerou louvores e polêmicas por apresentar uma versão terrena de Jesus Cristo. “O filho de José e de Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo de sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse mesmo e único motivo”, diz, em determinado trecho. Segundo o poeta e tradutor José Paulo Paes, “interessado menos na onipotência do divino que na frágil mas tenaz resistência do humano, a arte magistral de Saramago excele no dar corpo às preliminares e à culminância do drama da Paixão”. (Companhia das Letras, livro: R$ 42,90)
- Ensaio Sobre a Cegueira (1995)
Um motorista aguarda a abertura do sinal de trânsito quando fica subitamente cego – é o primeiro caso de uma “treva branca”, que logo se espalha incontrolavelmente. Resguardados em quarentena, os cegos descobrem que estão reduzidos à essência humana, numa verdadeira viagem às trevas. Fantasia que alcançou grande repercussão, na qual Saramago oferece um retrato aterrador de tempos sombrios. E alerta os leitores sobre “a responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam”. (Companhia das Letras, livro: R$ 49,90, e-book: R$ 37,90)
- Ensaio Sobre a Lucidez (2004)
Em um país imaginário, acontece um fenômeno eleitoral inusitado que detona uma séria crise política: ao término das apurações, descobre-se um espantoso número de votos em branco – uma “epidemia branca”. A trama remete ao Ensaio Sobre a Cegueira, principalmente por retomar personagens e situações, revisitando algumas das questões éticas e políticas abordadas naquele romance. Em nova alegoria, Saramago agora aponta para a fragilidade do sistema político e das instituições que nos governam. (Companhia das Letras, livro: R$ 49,90)
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