Colson Whitehead era um jovem adulto de 23 anos quando decidiu entrar num avião e viajar ao Brasil, em 1994. Então crítico de cultura do popular The Village Voice, jornal independente de Nova York, decidiu o destino de sua primeira viagem para fora dos EUA depois de receber na redação um guia de viagem com as informações sobre o País. Passou por Rio, Salvador, São Paulo e Paraty – 24 anos depois, ele volta ao País e à cidade do litoral sul fluminense, dessa vez como convidado e uma das principais estrelas internacionais da 16.ª Festa Literária Internacional de Paraty, entre os dias 25 e 29 de julho.
Ele participa da programação principal da Flip no sábado, 28, às 17h30, dividindo uma mesa com o jovem escritor carioca Geovani Martins.
“Muita coisa mudou, não sou mais tão pobre”, ri Whitehead, por telefone, desde Nova York, cidade onde nasceu e cresceu. “Da última vez me lembro de estar com gripe, não ter muito dinheiro e comer salame e pão o dia inteiro. Agora é bom voltar com um estado de espírito diferente. Volto como um escritor, e não como um projeto de escritor.”
O projeto deu certo: com The Underground Railroad, lançado em 2016 nos EUA e no ano passado por aqui, pela HarperCollins Brasil, Whitehead ganhou o Prêmio Pulitzer, o National Book Award, foi elogiado publicamente por Barack Obama, Oprah Winfrey selecionou o livro para seu clube de leitura e ele acabou no número 1 da lista de mais vendidos do The New York Times.
Whitehead diz que decidiu levar a sério o desejo de escrever ficção num dia frio em São Paulo, no inverno de 1994 – ele, que se diz um cara afastado dos esportes, assistiu aqui e vibrou com todos os jogos do Brasil naquela Copa do Mundo. “Sempre quis escrever ficção, mas nunca havia me comprometido, era só um jornalista. Nunca havia dado um passo nessa direção. Então, em algum lugar no meio do caminho, percebi que ou tinha que fazer ou calar a boca sobre isso. Então comecei a trabalhar no meu primeiro romance.”
O livro que ele começou a escrever aqui foi recusado por 25 editoras. Ele decidiu então escrever um livro com uma “trama”, e o resultado é A Intuicionista, de 1998.
A Intuicionista
Embora tenha lançado outros livros nos EUA em registros diferentes, Whitehead usa nas duas obras citadas um expediente parecido: elementos de fantasia se imbuem na história, sem se afastar de temas sociais, políticos e históricos.
Em A Intuicionista, o escritor cria um mundo muito parecido com o mundo real, mas no qual elevadores ocupam um papel central na sociedade. Na história, situada no século 20 logo após o fim da segregação racial, o Departamento de Inspeção de Elevadores de uma cidade que não é exatamente Nova York entra em colapso quando um acidente derruba um elevador em queda livre num prédio central. A protagonista, Lila Mae Watson, é a primeira mulher negra a ocupar o posto de inspetora no Departamento. Além disso, ela é de uma escola crescente, mas ainda minoritária, chamada Intuicionismo – que, diferentemente dos Empiristas, são capazes de intuir o funcionamento e eventuais falhas nos elevadores, num tipo de estudo sensorial e pós-racional.
O acidente, raridade na história do desenvolvimento das máquinas de ascensão, ocorre às vésperas da eleição na Associação dos Elevadores, quando os grupos intuicionistas e empiristas se enfrentam. A busca pela resolução do caso, uma suposta sabotagem da qual Lila Mae se torna a principal suspeita, conduz a narrativa do livro com tintas de romance policial.
As premissas parecem delirantes, mas a prosa segura de Whitehead segura as rédeas da história pelas 317 páginas.
Em 2001, John Updike escreveu na New Yorker que o romance era “surpreendentemente original e elegante”. Na resenha do The New York Times na época do lançamento do livro, o escritor Gary Krist compara o que Whitehead faz com elevadores ao que Thomas Pynchon fez com os correios em O Leilão do Lote 49: usar um sistema recriado ironicamente como uma metáfora para uma maneira totalmente nova e radical de reestruturar a realidade aceita.
O livro, que contém elementos de paródia, mas não se limita a ela, deve isso à sua “exploração ambígua e ampla da luta racial e das dinâmicas do progresso social. A ideia de elevação física, é claro, tem um significado metafórico óbvio no contexto, e Whitehead se aproveita bem disso, encaixando seu tema como uma disputa entre concepções antagônicas de como melhor elevar as pessoas de um nível para o próximo”, escreve Krist.
O fato de Whitehead ter escolhido escrever sobre elevadores de maneira “aleatória”, segundo o próprio, é apenas mais uma das camadas de ironia que cercam o romance.
“Eu estava tentando fazer um romance policial, e me pareceu uma ideia estranha transformar uma inspetora de elevadores em detetive. Tentei descobrir que tipo de habilidades uma profissão dessa contribuiria para a narrativa policial, e na verdade foi nenhuma (risos). Então, o mistério se transformou e tive que criar esse mundo falso de elevadores, com escolas, leis específicas, etc. Tentei construir um mundo, como se fosse um romance de ficção científica, fazer uma proposição absurda e transformá-la numa história”, diz Whitehead, por telefone.
“A escolha dos elevadores foi aleatória, quando comecei nem tinha pensado nas metáforas com a cidade, com elevação. Na escrita, descobri esses novos significados para elevação, verticalidade… Então, passou de uma espécie de romance policial para uma metáfora real da cidade, de relações sociais.”
Leitor de Gabriel García Márquez, ficção científica e fã ávido de filmes B de terror, Whitehead acredita muito no poder da fantasia como ferramenta ficcional. “Como escritor, seu trabalho é escolher a ferramenta certa para o trabalho. Pode ser fantasia, pode ser humor... Ao crescer lendo ficção científica, terror e realismo mágico, sempre me pareceu natural usar as ferramentas desses gêneros”, explica.
Whitehead volta agora ao Brasil depois de 20 anos de sua primeira viagem ao País, de onde saiu decidido a se tornar escritor. Ele soa genuinamente animado, e ri ao contar da burocracia para tirar o vistos da família, ele, a mulher e dois filhos.
O autor volta consagrado como uma das vozes mais criativas e originais da literatura norte-americana, uma lista de prêmios em seu nome e reconhecimento internacional. “Da minha última vez em Paraty, lembro de estar com gripe, não ter muito dinheiro, comer pão e salame o dia inteiro. Agora é bom voltar em um estado de espírito diferente. Volto como um escritor, e não como um projeto de escritor.” O projeto brasileiro de Whitehead, felizmente, deu certo.
Trecho de 'A Intuicionista'
“Veja, os empiristas se abaixam para verificar supostos estriamentos no sarilho e buscam um diagnóstico por meio de cicatrizes de oxidações na polia compensatória, todo um trabalho braçal, por isso pensam que os intuicionistas levam tudo na flauta. Desleixados preguiçosos.
Alguns apelidos que os empiristas têm para seus colegas renegados: mandigueiros, homens-vodu, feiticeiros, curandeiros, Harry Houdinis. Todos os termos pertencentes à nomenclatura do exotismo negro, o estranho sinistro. Exceto por Houdini, que ainda assim tinha algo obscuro.
Alguns contra-apelidos dos intuicionistas: terra plana, velhos porcas e parafusos, estressados (“verificando sinais de estresse” sendo uma frase costumeiramente proferida quando os empiristas estão correndo as ruas), Babbits, compiladores (este último é de preferência sussurrado para obter um nível máximo de desdém).
Ninguém consegue explicar direito por que os intuicionistas têm um índice de precisão dez por cento mais alto do que os empiristas.”
A INTUICIONISTA
Autor: Colson Whitehead
Tradutora: Caroline Chang
Editora: HarperCollins Brasil (320 p., R$ 39,90; R$ 29,90 e-book)
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