Fã do Sepultura e observador de pássaros, Riad Sattouf publica livro de memórias em quadrinhos

Francês revê andanças familiares e memórias da infância na Síria e Líbia no início dos anos 1980 em 'O Árabe do Futuro'

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PARATY - O quadrinista franco-sírio Riad Sattouf já não tem mais os fios de cabelos dourados que marcaram sua infância nômade de morador da França, Líbia e Síria. Hoje, é mais parecido com o pai que ele desenha do que com o filho, ele próprio, retratados por seu traço apenas aparentemente inocente em O Árabe do Futuro, memória gráfica que o autor está lançando aqui em Paraty, pela editora Intrínseca.

O livro é o primeiro de uma série que Sattouf prepara sobre a própria infância e juventude – notadamente autor de memórias em quadrinhos e histórias (às vezes nem tanto) reais, ele escreve e desenha sua relação com a família: o pai sírio, a mãe francesa, um irmão caçula. Nos seus seis primeiros anos de vida, período que este volume cobre, a família Sattouf se move constantemente entre a Europa, a África e a Ásia, como explica Riad, especialmente pela ambição de seu pai em ajudar a moldar “o árabe do futuro” por meio da educação.

Paraty. Após a entrevista, Riad ofereceu ao 'Estado' um desenho exclusivo para ilustrar a matéria (acima); ele comentou que a cor da terra no Brasil o faz lembrar da Síria Foto: Riad Sattouf

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“É difícil falar por uma geração toda, não sei se eles foram bem-sucedidos”, explica Sattouf, muito simpático e um pouco incomodado com as abelhas, numa pousada em Paraty, onde ele participa, neste sábado, 4, de uma mesa com o francês Plantu e o brasileiro Rafa Campos, às 15h. “Mas meu pai conseguiu vencer a pobreza da sua família por meio do estudo, virou doutor na França, e ele queria muito ser professor na Líbia para educar os árabes do futuro, para fazer os países árabes independentes do Ocidente.”

A contradição que envolve o pai (nas palavras de Riad, “o paradoxo entre modernidade e tradição”) é um dos eixos do livro, composto pelas memórias (“não sei se por sorte ou azar, eu tenho muitas”) e por diálogos recriados. Ele rejeita a ideia de que a obra seja uma tentativa de mostrar como é a infância num país árabe – quer, sim, mostrar como foi a vida de sua família naquela época e naqueles países. “A Síria que eu conheço é aquela Síria dos anos 1980, antes da guerra, tudo está muito diferente”, comenta, com uma ponta de melancolia – ele diz não ter mais contato com os familiares no país, que, desde 2011, vive em guerra civil, agravada pela atuação do Estado Islâmico, a partir de 2013.

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Sattouf não tem religião. “A experiência mais mística que eu tive em toda a minha vida foi quando fumei um baseado ouvindo Dead Can Dance”, brinca, mas nem tanto, numa referência à banda australiana que faz um som estranho e solene meio indefinível – o francês também é um grande fã do Sepultura. “Igor e Max Cavalera são meus heróis”, ri – ele próprio participou de bandas de metal na adolescência. “Se você perguntar a muitos caras da minha geração na França quais são suas impressões sobre a vida cultural no Brasil, a resposta será a mesma: ‘Sepultura!’.” O autor também não é um quadrinista político no sentido estrito da palavra. “Tudo que faço tem política envolvida, mas não é o meu interesse principal, não sei como pensar questões políticas”, afirma – ele colaborou com o semanário Charlie Hebdo por 10 anos, até se retirar em 2014 para assinar uma página semanal no Le Nouvel Observateur – ele reconta histórias reais da filha de 10 anos de um amigo. “É um trabalho mais positivo para mim”, garante.

Em alguns momentos da entrevista, Sattouf se interrompe e exclama: “Desculpe, mas ali tem um pássaro muito bonito, a gente não vê desses na França”. Revela-se um sério observador de passarinhos, com binóculo e tudo, esteta preocupado que é. Em O Árabe do Futuro, ele utiliza uma cor dominante para cada país que representa – a Líbia é amarela (“sol e areia”), a Síria vermelha (“pela cor da terra”) e a França é azul (“víviamos em um lugar perto do mar”). “Há também um efeito biológico nos olhos, quando alguém passa muito tempo olhando para uma luz vermelha, por exemplo, começa a enxergar verde, e vice-versa”, explica. “Queria usar essa experiência no livro para também representar aquela espécie de estranhamento que uma pessoa sente quando chega a um país estrangeiro.”

Ele está acostumado com a sensação: somente no livro, são pelo menos quatro mudanças em seis anos – da França à Líbia (onde Muamar Kadafi, ainda jovem e bonitão, mas sempre ditador, era aceito mesmo com os estranhos “mandamentos” de seu Livro Verde, e onde também as famílias eram proibidas de colocar fechaduras nas portas, porque o ‘Guia’ dizia que tudo era de todos), depois de volta à França, na sequência, a Síria – onde as memórias de Sattouf o levam ao vilarejo da família, próximo a Homs, cidade que hoje tem um milhão de habitantes. “Lá havia muitos cristãos, mas na minha vila não, por exemplo.” 

A Síria retratada por Sattouf é um país difícil (fato reforçado pelo autor, quase sem querer, quando solicitado a fazer uma foto perto da piscina da luxuosa pousada onde se hospedam os convidados da Flip: “Perto da piscina? Mas foi uma vida tão difícil na Síria”, meio que brinca). Talvez a impressão mais forte do país fique por conta de dois meninos, que seriam reprovados em qualquer teste antibullying, Anas e Moktar. Um quadrinho diz: “Aqueles trogloditas eram meus primos”.

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A Intrínseca prepara para o ano que vem a segunda parte da série, que vai retratar o primeiro ano de escola do autor. Descobrir onde ele está é missão para o leitor cumprir.

Líbia. O 'Livro Verde' de Muamar Kadafi dava 'recomendações' aos moradores Foto: Riad Sattouf/Divulgação

O ÁRABE DO FUTURO

Autor: Riad Sattouf

Tradutora: Debora Fleck

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Editora: Intrínseca (160 págs., R$39,90, R$24,90 o e-book)

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