Salman Rushdie lançou Versos Satânicos em 1988 e despertou a ira de alguns muçulmanos. Livros foram queimados e banidos de diversos países, pessoas foram mortas em ataques e protestos. Mas era Rushdie quem devia morrer, na opinião do aiatolá Khomeini. Foi oferecido, então, em 1989, US$ 1 milhão a quem cumprisse a fatwa. Sua “blasfêmia” nunca seria esquecida, mas com o passar dos anos a situação foi se acalmando e o escritor britânico de origem indiana continuou escrevendo e publicando seus livros, e viajando para divulgá-los – ele veio ao Brasil duas vezes. De quando em quando, sua história volta a ser notícia, como em 2013, quando ele foi incluído na lista negra de uma revista da Al-Qaeda. E agora.
Salman Rushdie foi convidado pela Feira do Livro de Frankfurt para fazer uma conferência sobre o que significa, para autores e para o mercado editorial, a liberdade de expressão. Destinada à imprensa, ela ocorre na manhã de terça-feira, 13, horas antes da abertura oficial do evento que deve reunir, até domingo, mais de 7 mil expositores e 270 mil visitantes de cerca de 100 países. É o grande encontro da indústria do livro – e isso enfureceu, de novo, o Irã, que orientou seus representantes e editores, bem como a todos os países árabes, a boicotarem a feira.
“Os organizadores escolheram o tema da liberdade de expressão, mas convidaram a falar alguém que insultou nossa crença”, disse Abbas Salehi, ministro da Cultura do Irã, ao Guardian. Antes disso, ele já havia dito que a fatwa nunca desapareceria.
Este certamente não será o único momento político do evento. “A Feira de Frankfurt tem três dimensões: a cultural, a econômica e, claro, a política. E discussões desse tipo sempre estiverem presentes na abertura”, comenta Marife Boix-Garcia, vice-presidente da feira. Ela cita dois momentos emblemáticos. “Eu me lembro quando Orhan Pamuk, convidado a fazer um discurso como escritor, direcionou sua fala ao público e ao presidente turco Recep Tayyip Erdogan, e vice-versa. E também a reação ao discurso de Luiz Ruffato em 2013”, comenta.
No ano passado, motivados pelo cenário internacional – conflitos ideológicos e religiosos, extremismos, fanatismos e violência, espionagem americana, mudanças climáticas, crise econômica, etc –, os organizadores e a escritora dinamarquesa Janne Teller lançaram o projeto Frankfurt Undercover. Ao longo dos dias da feira, escritores de diversos países discutiram essas questões e produziram um documento que seria enviado a políticos. A iniciativa se repete este ano com um item a mais na pauta: o papel da Europa frente à situação dos refugiados – dos sírios, sobretudo.
E está aí outra novidade desta 67.ª edição. No domingo, refugiados terão acesso livre à feira, que organizará, ainda, uma programação para eles. A iniciativa faz parte de uma campanha maior, apoiada pelo escritor e especialista em Oriente Médio, Navid Kermani, e que envolve a Associação dos Editores e Livreiros da Alemanha e prevê facilitar o acesso desses novos moradores do país a livros e conhecimento. Kermani, aliás, vai receber o Prêmio da Paz, outorgado todos os anos pela associação – em 2013, a mais recente Nobel de Literatura, Svetlana Alexiévich, foi a premiada.
Questões como essas estarão em destaque em outros momentos e espaços do evento, que estará um pouco diferente este ano. O longínquo pavilhão 8, das editoras norte-americanas, foi extinto e agora esses editores estarão mais perto dos mortais. A readequação dos espaços sugere um enxugamento da feira. “Estamos enfrentando tempos difíceis com a crise europeia e a agitação política, e o mercado editorial é diretamente afetado por essas movimentações”, diz Boix-Garcia. No entanto, eles estão otimistas com relação à feira e às mudanças.
Menos positivos estão os brasileiros. O estande organizado pelo Projeto Brazilian Publishers, da Câmara Brasileira do Livro e Apex Brasil, terá 36 editoras ante 41, em 2014, e 181, em 2013 – mas é preciso dar um desconto porque naquele ano o Brasil foi o país homenageado e ninguém quis perder a festa. Eles querem vender os direitos de seus livros, um caminho inverso do habitual – o País sempre foi um bom comprador de direitos e andou até se destacando pelos altíssimos adiantamentos oferecidos. Mas, com a supervalorização do dólar, a chegada será discreta.
“A alta do dólar tem um impacto direto e muito forte. As editoras imediatamente reduziram o número de contratações e as ofertas pelos contratos”, explica Lucia Riff, proprietária da principal agência literária daqui. Ela vai além: “O mercado brasileiro está mais seletivo, contratando e publicando menos. O cronograma de todas as editoras foi alterado”. Talvez assim caia em desuso a prática de comprar os direitos de um livro apenas para tirá-lo da jogada, deixando-o numa interminável fila.
Editor de Aquisições da Intrínseca, Lucas Telles diz que na atual conjuntura não será possível manter o patamar de adiantamentos. “Os agentes estrangeiros têm se mostrado abertos para entender que os parâmetros mudaram e estamos conseguindo adquirir novos títulos em termos mais condizentes com o nosso momento”, diz. No quesito adiantamento, a Intrínseca é uma das mais generosas – e, apesar do momento e antes que pudesse se iniciar um leilão, comprou os direitos de All Our Wrong Todays, romance de estreia do roteirista canadense Elan Mastai. Especula-se que ele teria ganhado, ao vender a obra para os EUA, US$ 1,25 milhão.
Sócio de uma das maiores editoras brasileiras, a Sextante, Marcos da Veiga Pereira diz que se o adiantamento de um bom livro ficava em cerca de US$ 20 mil em 2014, ele não deve passar de US$ 12.500 este ano. E os mais altos, na casa dos US$ 200 mil, ficarão entre US$ 60 mil e US$ 80 mil. Pereira diz que não vai pensando em comprar nem mais nem menos do que o habitual, mas deixa o recado: “O mercado é muito competitivo e a melhor maneira de enfrentar a crise é ter o próximo best-seller”.
Frankfurt também é local de divulgação de autores, e entre os brasileiros convidados estão Ricardo Lísias, Noemi Jaffe, Fernando Bonassi e Luis S. Krausz.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.