Será que um gênio conhece a si mesmo? Adrienne Rich achava que sim. Ela argumentou que Emily Dickinson escolhera se isolar não por ser excêntrica, mas por um motivo prático: para aumentar sua concentração e manter as distrações sob controle. Como artista, Dickinson “estava determinada a sobreviver”, escreveu Rich, “a usar seus poderes, a fazer as economias necessárias”. Será que um gênio teme a si mesmo? Uma outra figura surge agora, hesitante sob a camuflagem costumeira - terno escuro, rosto obscurecido sob os óculos de coruja e o bigode espesso - mais um virtuose das economias necessárias que permitem que a imaginação floresça. É o incomparável Fernando Pessoa, o poeta, crítico, tradutor, místico e gigante do modernismo português. Ele publicou alguns livros que passaram despercebidos, mas circulavam rumores de que em seu quarto havia um baú cheio com a verdadeira obra de sua vida. Após sua morte em 1935, o baú foi descoberto, repleto de anotações e rabiscos em envelopes, cartões de visita e qualquer papel que parecesse útil. Eram de autoria não só de Pessoa, mas de um rebanho de suas personas (ou “heterônimos”, como ele os chamava): um médico, um classicista, um poeta bissexual, um monge, uma adolescente apaixonada. Entre seus escritos se encontrava um maço de papéis que viria a se tornar sua obra-prima: O Livro do Desassossego, uma espécie de confissão em falsos começos e aforismos dissimulados e desesperadores: “A vida ativa sempre me pareceu o menos confortável dos suicídios”. No total, Pessoa criou dezenas de heterônimos, a maioria com biografias, obras, resenhas e correspondência. Ele era maravilhado e assombrado por sua mente, por sua “superabundância”.
Que relação isto poderia ter com uma história familiar de instabilidade nervosa? Gigantesca, definitiva e sublime, a nova biografia de Richard Zenith, 'Pessoa', nos apresenta um retrato coletivo do escritor e seu elenco de eus alternativos - além de uma leitura perspicaz sobre o que significou para Pessoa se multiplicar (ou se fraturar?) assim. Que problemas isto resolveu - e criou? Zenith escreveu o único tipo de biografia verdadeiramente possível para Pessoa, o relato de uma vida que vai arrancando cada uma das fronteiras e fardos da noção de um eu. Será que “Fernando Pessoa” era apenas o primeiro heterônimo? Se aceitarmos que a biografia, como Julian Barnes escreveu certa vez, é, na melhor das hipóteses, “uma coleção de buracos amarrados com barbante”, como alguém faz para escrever a biografia de uma pessoa alérgica à personalidade? Que Pessoa signifique “pessoa” em português deve ter lhe dado uma satisfação quase perversa - ele que escrevia a palavra “eu” entre aspas. “Estou começando a me conhecer. Eu não existo”, escreveu ele. “Sou a lacuna entre o que gostaria de ser e o que os outros fizeram de mim”. Ou “o palco vazio onde vários atores atuam em várias peças”. Ou, escreveu ele num poema, “apenas o lugar / Onde as coisas são pensadas ou sentidas”. Seus heterônimos eram viciados em sua obscuridade, vaidosos quanto à sua privacidade e sofriam quando eram forçados a “publicar” seu trabalho. É o eu concebido feito um torrão de açúcar: precisa se dissolver para ser degustado. Quando criança, Pessoa professou ódio por “atos decisivos” e “pensamentos definidos”. Sua maior obra em livro foi, na verdade, “um não livro por excelência”, como Zenith o descreve ao traduzir uma edição: trata-se de “uma grande mas incerta quantidade de textos discretos, em sua maioria sem data e sem ordem sequencial, de modo que todas as edições publicadas - a depender de uma imensa intervenção editorial - é necessariamente falsa em relação a um inexistente ‘original’”. Seria mais fácil laçar uma nuvem. Mas Pessoa teve uma vida após a morte feliz e foi agraciado por seus tradutores - nunca mais do que com Zenith (outro nome bem apropriado). Quando elogiamos as biografias, muitas vezes aplaudimos o fôlego e o esmero, uma espécie de densidade de detalhes - tanto que o biografado parece ganhar vida mais uma vez. Ao ler Pessoa, foi a necessidade de um certo tipo de tato que mais me impressionou. Zenith reconstrói uma vida com erudição maleável e bem medida, aplicando a quantidade certa de pressão sobre aquelas experiências formativas de infância, luto, ansiedade sexual, humilhação e extáticos primeiros encontros com a arte - mas nunca perdendo de vista o fato de que a vida real de Pessoa acontecia em outro lugar, assim como a de muitos escritores: sozinho e em sua escrivaninha.
Seu nascimento foi notícia de primeira página, prova da popularidade dos seus jovens pais na sociedade lisboeta. As palavras foram os primeiros brinquedos - ele adorava placas de rua - e era sério, sobrenaturalmente reservado e respeitável, mesmo quando criança. A tragédia veio de repente. Seu pai e seu irmão morreram de tuberculose quando ele era menino - e, de forma muito desconcertante, após seis meses de luto, sua mãe se apaixonou. Ela se casou e se mudou para a África do Sul, levando Pessoa consigo. Ele voltaria a Lisboa para mais estudos e travaria um flerte epistolar com uma jovem que parecia produzir nele mais agitação do que desejo. Ele permaneceu, escreve Zenith, “quase certamente virgem”. Foi cofundador de uma influente revista literária. E bebeu muito. Morreu em 1935, de cirrose. Esse resumo nos diz muito pouco sobre a verdadeira vida de Pessoa, que se desenrolou em sua imaginação. “Dizer as coisas! Saber dizer as coisas!”, ele escreveu certa vez. “Saber existir através da voz escrita e da imagem intelectual! É disto que se trata a vida: o resto são apenas homens e mulheres, amores imaginários e vaidades fictícias, desculpas nascidas da má digestão e do esquecimento, pessoas se contorcendo sob a grande rocha abstrata de um céu azul sem sentido, como insetos quando você ergue uma pedra”. Apaixonado pela nulidade e pela encarnação do mundo, ele transmutou toda a vida em experiência literária - do tipo mais puro. Criou personas para que discutissem entre si (e para esvaziar suas próprias certezas). Espalhou enigmas para seus biógrafos e para seus leitores deixou uma visão do mundo como “um grande livro aberto”, como ele escreveu, “que sorri para mim numa língua desconhecida”. / Tradução de Renato Prelorentzou.
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