ENVIADO ESPECIAL / PARATY - Desconstruir a violência imposta pelo patriarcado há séculos é uma das marcas literárias das escritoras que protagonizaram a “Festa das Irmãs Perigosas”, a última mesa da quinta-feira, 24, da 20ª Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip. Tanto a baiana Luciany Aparecida como a argentina Camila Sosa Villada constroem uma obra que questiona padrões machistas arraigados.
“Para mim, a primeira violência está na linguagem”, disse Camila, travesti que faz grande sucesso com seu livro O Parque das Irmãs Magníficas (Tusquets). “Ela nos é imposta e somos obrigadas a escrever e a ler a partir desse código construído pela violência. Sei disso por ter sido trabalhadora sexual, quando aprendi coisas que não são ensinadas pela família nem pela religião. Isso me fez aprender que o outro sempre pode representar uma possibilidade de violência.”
Apesar do tema árido, o encontro, que teve a mediação de Nanni Rios, foi descontraído e alimentado por uma plateia vibrante e participativa. Camila e Luciany deram exemplos de seus métodos de resistência literária, que arrancaram muitos aplausos. A autora baiana, que gosta de usar codinomes (ou seriam heterônimos?), explicou que mira o âmago do patriarcado para construir suas narrativas.
“Em Contos Ordinários de Melancolia (Paralelo), eu altero o lugar de quem promove a violência, ou seja, são mulheres (especialmente mães) que torturam e matam seus homens e filhos. Ou seja, escolho o elemento mais protegido do patriarcado e o coloco sob a mira da violência. Pretendo, com isso, surpreender especialmente os leitores que não se surpreendem com os índices de violência sofrida pelas mulheres”, comentou.
Já Camila falou sobre a desconfiança que sempre ronda seu sucesso. “Sou uma ameaça pois sou uma pessoa sem condição financeira, não consigo só viver para a literatura e, mesmo assim, faço sucesso. Isso faz com que os outros escritores se perguntem: ‘como ela consegue isso?’”, diverte-se.
A escritora argentina não se ilude, porém, com a literatura - tampouco lhe dá um valor exagerado. “A literatura não ajuda a resolver seus problemas, isso se consegue com a família, com amigos, com psicólogos. Aliás, a literatura para mim não faz sentido quando medimos o índice de violência contra mulheres e travestis.”
Detalhe: a única vez em que a Flip recebeu uma autora travesti foi em 2010, com a cartunista Laerte. “Agora, temos, além de Camila Sosa Villada, também a presença de Amora Moira. Portanto, não tem mais volta”, salientou a mediadora Nanni Rios.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.