A escrita de Patrícia Melo se constrói a partir das sensações que lhe são provocadas pela sociedade brasileira. É o que ajuda a explicar a origem de Gog Magog, seu mais recente romance, lançado agora pela Rocco. A trama, enxuta, acompanha a rotina de um pacato professor de biologia em uma escola noturna, 54 anos e morador de São Paulo que, de repente, tema vida transformada quando Ygor, um novo e barulhento vizinho, se muda para o andar de cima e, com gargalhadas desconcertantes, acaba por tirar sua paz e lucidez.
“O que o senhor chama de barulho”, explica o novo morador do prédio, “sou eu vivendo. Viver é barulhento”. Do impasse, nasce uma antipatia mútua que logo se transforma em ódio e daí rapidamente para a violência, atitude tresloucada que remete a Gog e Magog, monstros míticos citados na Bíblia, que se alimentavam de carne humana, fetos e cadáveres.
“O que me motivou a escrever essa história é o fato, cada vez mais habitual, de como um cidadão comum se transforma em um monstro”, conta Patrícia ao Estado por telefone, desde a Suíça, onde está morando. “A violência já ronda a nossa cozinha, ou seja, tornou-se doméstica.”
Na trama do romance, o “monstro” surge a partir da relação tortuosa entre o professor e seu vizinho. “Esse é um detalhe fundamental, que marca a relação entre as pessoas nos dias de hoje, principalmente no Brasil: o outro é visto como um inimigo. Vivemos, em nosso país, o ‘fetiche dos meus direitos’ ou a força narcisística – um autofascínio que impede que a pessoa enxergue o direito do próximo. Isso cria polarização e ódio.”
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Com a possibilidade de observar a situação nacional a distância, Patrícia Melo revela-se assustada com o índice de mortandade no Brasil. “É um país homicida. O número de mortos por ano é absurdo, o que comprova que a política de segurança pública está decadente”, observa. “A violência tornou-se epidêmica e recupera índices que só eram vistos nos anos 1990. Não se trata mais de uma crise moral.”
Para piorar o quadro problemático da nossa sociedade, a escritora observa que a crescente exposição das pessoas nas redes sociais, revelando intimidades e opiniões muitas vezes bombásticas, torna as pessoas mais vulneráveis. Por fim, a cultura histérica do barulho: “Em São Paulo especialmente, o silêncio foi liquidado”, nota.
Extrapolando o problema para outros territórios, Patrícia Melo apresenta o mesmo raciocínio para o medo que boa parte das nações confessa em relação ao terrorismo. “E isso se traduz em xenofobia”, observa. “Aliás, nos aeroportos, é fácil notar que os direitos civis ficam suspensos a partir da forma como são fiscalizadas as pessoas que pretendem entrar em determinados países.”
Não se engane, porém, quem espera que o romance seja um poço de amargura – apesar do tom crítico em relação à sociedade que norteou sua escrita, Patrícia buscou uma narrativa ágil, bem-humorada, em que o desenrolar dos acontecimentos prende a atenção do leitor. E, como se tornou hábito em sua obra, aspectos científicos temperam a trama, a fim de reforçar o tom de mistério.
Especialmente quando o professor de Biologia consegue, por acaso, as chaves do apartamento de Ygor. Ele invade a casa do vizinho que, acredita, está viajando. Só que Ygor retorna inesperadamente e, ao descobrir o invasor, inicia uma luta corporal. Claro que o resultado é trágico, com Ygor despencando pela janela e morrendo em seguida. Continuar revelando detalhes seria aumentar ainda mais o spoiler, mas vale comentar o momento mais excitante do livro: o julgamento do suposto assassino.
No tribunal, o advogado de defesa argumenta que o réu é vítima de um raro tipo de epilepsia em que o barulho provoca distúrbios mentais, cegando momentaneamente suas faculdades racionais e possibilitando que ele cometa atos errados e até homicidas.
É a chamada epilepsia audiogênica, provocada por sons e ruídos diversos e que é presente em pessoas com predisposição genética. Algo semelhante ao que ficou conhecido como Pokémon Shock – distúrbio provocado em 685 crianças japonesas em 1997 que, após a exibição de um episódio do desenho Pokémon, foram internadas com enjoo e desmaios, provocados pelo piscar alucinante de luzes vermelhas e azuis apresentado no programa.
“Fiz muita pesquisa sobre esse problema, mas sempre buscando detalhes que aumentassem a curiosidade do leitor. “Essa era a minha meta: agarrar a atenção do leitor. Para isso, cheguei a cortar até 100 páginas da história. A cada releitura, eu tirava os elementos que faziam com que a trama saísse do eixo.”
Patrícia evitou também um certo ranço literário ao abrir mão de estratégias comuns em narrativas policiais, artifícios baratos para conquistar o leitor. “Eu pretendia que o livro mostrasse esse frenesi do ódio, essa força transformadora que faz um homem culto perder a razão quando é tomado por uma paixão total pelos seus direitos”, explica ela.
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