Uma das poetas mais queridas do Brasil, Cora Coralina morreu há 30 anos, em 10 de abril de 1985, em decorrência de complicações pulmonares. Nascida Ana Lins de Guimarães Peixoto Bretas em agosto de 1889, meses antes da proclamação da república, ela começou a escrever muito cedo, antes dos 15 anos, mas só foi publicar seu primeiro livro, Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais, em 1965 - depois de casar, trocar sua Vila Boa de Goiás natal por São Paulo, criar quatro filhos, enviuvar, vender linguiça, banha, doce e livro. Àquela altura, já era uma senhora de 75 anos.
À obra com a qual estreou na literatura pela José Olympio, seguiram-se outras duas: Meu Livro de Cordel (1976) e Vintém de Cobre - Meias Confissões de Aninha (1983). Publicaria mais um volume, Estórias da Casa Velha da Ponte, previsto para 1984, mas ela estava cansada. Em Vintém de Cobre, escreveu: “Tudo em mim vai se apagando. / Cede minha força de mulher de luta em dizer: / estou cansada. / A claridade se faz em névoa e bruma. / O livro amado: o negro das letras se embaralham, / entortam as linhas paralelas. / Dançam as palavras, / a distância se faz em quebra luz. / Deixo de reconhecer rostos amigos, familiares. / Um véu tênue vai se incorporando no campo da retina. / Passam lentamente como ovelhas mansas os vultos conhecidos / que já não reconheço. / É a catarata amortalhando a visão que se faz sombra. / Sinto que cede meu valor de mulher de luta, / e eu me confesso: / estou cansada."
Muitos outros livros foram publicados ao longo das últimas décadas pela Global, que não deixou de fora do catálogo as famosas receitas da poeta, uma quituteira de mão cheia. Veja, por exemplo, no final desse texto, como ela fazia seu doce de mamão vermelho. Os lançamentos mais recentes são: Contas de Dividir e Trinta e Seis Bolos (2011), A Menina, O Cofrinho e a Vovó (2009), Doceira e Poeta (2009) e As Cocadas (2007). A editora deve lançar mais um título ainda em 2015.
Cora dizia que quando começou a escrever não tinha estudo – e ela não terminaria o colégio – ou leitura, apenas seu imaginário “bem distante do comportamento das moças” de sua época. Por isso até criou esse pseudônimo “sonoro”. Considerava que o que escrevia tinha qualidade e poderia ajudar quem lesse, mas não tinha muitos leitores. Hoje, ao contrário, sua página no Facebook tem 212 mil fãs e suas frases disputam a atenção dos internautas com as de Clarice Lispector, Caio Fernando Abreu e Carlos Drummond de Andrade.
Drummond, aliás, é tido como o responsável por apresentar Cora Coralina, uma pessoa “rica apenas de sua poesia”, a literatos e leitores. Num artigo publicado pelo Jornal do Brasil em dezembro de 1980, dedicado integralmente a ela, o poeta mineiro apresentava Cora como a pessoa mais importante de Goiás. Ele escreveu ainda: “Na estrada que é Cora Coralina, passam o Brasil velho e o atual, passam as crianças e os miseráveis de hoje. O verso é simples, mas abrange a realidade vária.” E a simplicidade foi mesmo a sua marca.
Quinze anos antes desse artigo, o Estado já estava atento à poeta e seu primeiro livro, Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais, figurou entre os lançamentos do Suplemento Literário de 26 de junho de 1965. O texto comentava que Cora dizia, na apresentação da edição, que ali não estavam impressos versos, mas sim “um modo diferente de contar velhas estórias”.
Cora Coralina viveu a vida simples que tanto valorizava e seus leitores podem conhecer um pouco desse universo visitando sua casa na Cidade de Goiás, que foi transformada em museu em 1989 e abriga sua memorabilia - incluindo seu lendário fogão de lenha.
Leia frases e poemas de Cora Coralina
“Venho do século passado. Pertenço a uma geração ponte, entre a libertação dos escravos e o trabalhador livre. Entre a monarquia caída e a república que se instalava. Todo ranço do passado era presente. A criança não tinha vez, os adultos eram sádicos e aplicavam castigos humilhantes.”
“Nasci num berço de pedras. Pedras têm sido meus versos, no rolar e bater de tantas pedras.”
“A vida é boa. Você pode fazê-la sempre melhor, e o melhor da vida é o trabalho.”
"Na minha alma, hoje, também corre um rio, um longo e silencioso rio de lágrimas que meus olhos fiaram uma a uma e que há de ir subindo, subindo sempre, até afogar e submergir na tua profundez sombria a intensidade da minha dor!..."
“Quando escrevo, escrevo por um impulso interior que me vem do insondável que cada um de nós trás consigo. Mas uma coisa eu digo a você: ontem nós falamos nas pessoas que ainda estão voltadas para o passado. E eu digo a você: não há ninguém que não faça sua volta ao passado ao escrever. Nós todos fazemos. Nós todos pertencemos ao passado. Todos nós. Queira ou não queira. É de uma forma instintiva. Nós todos estamos ligados muito mais aos nossos avós do que aos nossos pais.”
Meu Epitáfio (de Meu Livro de Cordel)
Morta... serei árvore
Serei tronco, serei fronde
E minhas raízes
Enlaçadas às pedras de meu berço
são as cordas que brotam de uma lira.
Enfeitei de folhas verdes
A pedra de meu túmulo
num simbolismo
de vida vegetal.
Não morre aquele
que deixou na terra
a melodia de seu cântico
na música de seus versos.
Todas as vidas (de Poema dos Becos de Goiás e Estórias Mais)
Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...
Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
- Enxerto de terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo ser alegre seu triste fado.
Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida -
a vida mera das obscuras.
Confira a receita de doce de mamão vermelho de Cora Coralina
Mamão de qualquer tamanho, vermelho, quase maduro, super firme.
Descasque o mamão, retire as sementes e corte em pedaços.
Coloque os pedaços em água com bicarbonato ou cal virgem de construção, uma colher de sopa para cada mamão médio.
Depois de uma hora lave os pedaços em água pura.
Prepare, à parte, calda em ponto de espelho, quantidade suficiente para cobrir os pedaços.
Quando ela estiver no ponto, coloque os pedaços de mamão e em fogo lento espere até que fiquem macios. Deixe dormir na calda, apurando no dia seguinte.
Com o auxílio de uma colher de pau ou escumadeira, coloque para escorrer em peneira de taquara. Enquanto isso, apure bem a calda restante, até que comece a açucarar.
Depois de escorridos, passe os pedaços de mamão na calda apurada para que fiquem glacerizados. Acabe de secá-los ao sol.
Nota
O bicarbonato ou o cal servem para deixar os frutos durinhos por fora e macios por dentro.
Ingredientes
1 mamão de 2 quilos
1 colher (sopa) de bicarbonato ou cal virgem
1 quilo de açúcar cristal
Preparo
Siga a receita, mas antes de colocar os pedaços de mamão na calda, faça furos com o garfo para que a calda penetre durante o cozimento.
Dica
Se quiser uma apresentação mais simples, você pode levar a calda ao fogo, deixando apurar em ponto de calda firme, enquanto os pedaços já cozidos escorrem. Acrescente o mamão, deixe ferver por mais ou menos 10 minutos, coloque em uma compoteira e sirva frio.
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