Imagine a seguinte situação: seu filho já é um bom leitor e consumiu histórias infantis que você escolheu para ele, mas agora quer um desafio maior. Um dia, ele chega da escola dizendo que um colega o indicou um livro.
Você reconhece o título, já o leu anos atrás e até gostou da trama, mas lembra que ele tem uma cena de assassinato. Ou os personagens consomem muita bebida alcoólica. Ou um deles comete suicídio. Ou é uma leitura da moda que você desconhece. E agora? Você incentiva a leitura, explica ou simplesmente não o deixa ler?
Outra possibilidade: sua criança acaba de ser alfabetizada e está encantada com a leitura - e começa a pedir livros grandes. Naquele momento, você só tem nas mãos um exemplar de A Ilha do Tesouro, de Robert Louis Stevenson, numa adaptação juvenil, e o entrega ao seu filho.
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Horas depois, ele retorna perguntando o que é rum. Quando você abre o livro, após tantos anos, encontra ali não apenas a referência à bebida preferida dos piratas, mas uma gama de situações que não fazem parte, ainda, do universo da criança. O que você faz? Ignora e deixe que ele explore a leitura? Oferece um livro alternativo e guarda aquele por mais alguns anos?
Essas dúvidas podem ser comuns a muitos pais. Mas será que existe idade certa para ler determinado livro? Uma criança de 11, 12 anos já pode ler um livro da Agatha Christie, por exemplo? E Jorge Amado? E os clássicos? Existem conteúdos que eles não estão prontos para consumir? As dúvidas são várias e, para refletir sobre essa questão, o Estadão conversou com especialistas em leitura e em livros para a infância.
Apesar de diversas, as respostas apontam para um caminho: cada jovem, independentemente da idade, pode ter uma vivência e uma compreensão diferente de determinado livro. Proibir nunca é o ideal. Conversar, perguntar e entender os sentimentos dos filhos sobre aquela história, sim. Crianças e adolescentes estão descobrindo o mundo e os livros, ancorados na ficção, podem ser o espaço mais seguro para que eles conheçam alguns dos obstáculos da vida.
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Quem responde
- Denise Guilherme: idealizadora e curadora da Taba, empresa especializada em curadoria de livros infantis e juvenis com foco na formação de leitores.
- Márcia Leite: escritora de livros infantis e juvenis, editora, educadora e duas vezes finalista do Prêmio Jabuti.
- Isabel Lopes Coelho: publisher na FTD, especialista em literatura infantojuvenil e autora de A representação da criança na literatura infantojuvenil (Ed. Perspectiva, 2020).
Há uma idade certa para ler determinado livro? Por quê?
Denise Guilherme: Não existe idade certa para ler um livro, simplesmente porque os leitores são diferentes. Há crianças de 11 anos que são capazes de ler e compreender a versão original de Dom Quixote e outras que só serão capazes de fazê-lo na vida adulta.
Por isso, não faz sentido nenhum uma classificação de livros por faixa etária como um limitador do alcance da obra. Elas servem, no máximo, como uma sugestão (nunca como uma imposição) e existem mais para atender a uma demanda de mercado que necessita categorizar os produtos para, supostamente, alcançar um público-alvo. O que difere os leitores é seu repertório, a qualidade das experiências de leitura que eles têm ao longo da vida e, sem dúvida, a qualidade das mediações que os apoiam na compreensão de uma obra.
Bons livros são bons para qualquer leitor: seja ele adulto ou criança. No entanto, às vezes, o conteúdo de um livro adulto exige uma experiência de mundo que algumas crianças não têm. E aí é que entra a importância da mediação.
Márcia Leite: Em minha experiência profissional e pessoal, que abarca mais de 30 anos como educadora, escritora, editora, mãe e, mais recentemente, avó, prossigo fortalecida na certeza de que não existe uma idade “determinada, ideal ou correta” para que aconteça uma boa relação entre livros e leitor. “Depende” pode ser a melhor resposta, uma vez que cada leitor é único e singular em seu desenvolvimento emocional e cognitivo, suas preferências temáticas, seu contexto de vida, tenham eles 5, 10, 15, 25 ou 50 anos.
Meus três filhos, quando tinham 8 anos, eram pessoas bem diferentes e que gostavam de ler livros também diferentes. Se, em uma sala de aula, você tem 30 alunos com mais ou menos 10 anos, nenhuma leitura contemplará o interesse e a competência leitora de todos eles. Se hoje mencionamos um livro em um grupo de amigos de nossa idade, teremos diferentes opiniões a respeito.
Claro que estamos falando de leitores genéricos, claro que existe uma cuidadosa e especial dedicação dos profissionais do livro para infância, entre os quais eu me incluo, no sentido de produzir livros que respeitem e desafiem o leitor desde a primeiríssima infância e durante a larga trajetória a ser explorada por ele, quase sempre mediada por adultos (família e escola) que buscarão os mais diferentes critérios de seleção, inclusive aquele baseado na escolha do livro pela idade, como se costuma ouvir quando estamos na seção infantil de uma livraria: você tem um bom livro para me indicar para uma criança de X anos? Seguida da indefectível e perigosa resposta-pergunta: menino ou menina?
Profissionalmente, presenciei inúmeras situações em que um leitor mostrava interesse por um livro, após explorá-lo, e um adulto o impedia de adquiri-lo ou acessá-lo na biblioteca, por não ser para sua “idade”. Quando uma criança ou jovem demonstra interesse por determinado livro, espontaneamente, mesmo diante da dúvida do adulto, que se permita que leia. Que se permita que o leitor constate se o livro é ou não para sua idade. Que se permita que o leitor desista da leitura, caso não deseje mais prosseguir. Que se permita que o leitor tenha oportunidade de exercer o direito de aprender, de tentar, de errar, de comprovar, de interrogar, de emitir a sua opinião.
Isabel Lopes Coelho: Essa pergunta é bastante delicada porque a resposta não é nem sim e nem não. Há sutilezas que precisam ser consideradas. Podemos partir do princípio de que livros de fato não têm faixa etária e que leitores da mesma idade (sejam crianças ou adultos) têm maturidades de leitura completamente diferentes. Assim, o fator idade não necessariamente é um parâmetro para escolher o livro mais adequado para um leitor. Fatores como o interesse do leitor, o grau de aptidão para leitura e abertura para descoberta do mundo transformam a experiência entre o leitor e seu livro muito mais interessante. Por outro lado, é importante considerar que crianças e adolescentes estão em processo de crescimento psíquico, de compreensão de mundo, de formação neurológica e que a adequação da obra literária ao momento sensível do leitor é um fator a ser considerado no momento da escolha da obra.
Os pais devem interferir na escolha das crianças? Se sim, quando?
Denise Guilherme: A literatura para crianças já passa por muitos filtros: do escritor, do editor, do livreiro e até mesmo do adulto que compra ou lê o livro. Ou seja, a criança mesmo tem pouco espaço para exercitar seu gosto.
Faz parte da formação do leitor escolher os seus próprios livros. Esse processo envolve muitas experimentações. Às vezes, escolhemos um ótimo livro e em outras, reconhecemos - depois de algumas páginas - que aquela obra não nos interessa neste momento. Ou que não somos capazes de enfrentá-la.
Conversar sobre as escolhas é sempre importante. Não faz sentido proibir. Mas perguntar sobre o interesse. Muitas vezes, um leitor iniciante quer escolher um livro com muitas páginas e nenhum desenho. Não porque seja capaz de lê-lo sozinho. Mas porque já percebeu o valor simbólico que as obras extensas possuem dentro da cultura de quem lê livros. Ou, ainda, às vezes, a escolha de uma obra mais extensa é um convite para uma leitura em capítulos feita em voz alta por um adulto querido.
A família pode negociar as escolhas: em um dia, a criança é livre para escolher qualquer livro que quiser. Em outro, pode seguir uma sugestão da família com base em algum tema de interesse ou de um autor favorito. Ou mesmo, procurando obras que sejam diferentes de tudo o que já foi lido pela família.
Aliás, também faz parte da formação leitora entender que a boa literatura - mesmo a infantil - trata das experiências humanas em toda a sua complexidade. E sempre vai abrir espaço para boas conversas entre adultos e crianças. Resta saber se a família está preparada para conversar sobre qualquer tema com seus filhos, mediados por uma boa literatura ou se prefere que eles façam isso sozinhos ou por meio de outros recursos que não necessariamente se utilizam da potência da Arte, como os conteúdos disponíveis nos jogos e na internet, por exemplo.
Márcia Leite: Considerando a resposta anterior, julgo que os pais devem acompanhar (e se possível mediar) as leituras das crianças e jovens com verdadeiro interesse e atenção, procurando manter a interlocução e o respeito pelos temas, descobertas e sentimentos gerados pela leitura.
Seria ingenuidade ignorarmos, porém, que muitas famílias e escolas interferem na escolha das leituras de suas crianças e jovens censurando e impedindo a circulação de determinados livros por critérios outros (nada literários), das mais diversas ordens, balizados por valores ideológicos, religiosos, sociais, racistas, sexistas, políticos, entre outros.
Isto posto, convém levar o holofote sobre a interferência dos adultos aos conteúdos a que crianças e jovens assistem livremente nos canais de streaming e no YouTube, ao que pesquisam no Google e aos relacionamentos que mantêm nos aplicativos de jogos e redes sociais. Os livros, ao contrário do mundo virtual, garantem que o leitor pise em um território bastante seguro, secularmente conhecido, sabidamente responsável quanto à autoria, e que garante ao leitor o tempo de interação necessária, o direito de concordar e discordar, guardar e refutar, muito distinto do imediatismo dos conteúdos anônimos ou mentirosos oferecidos pelas diferentes mídias e plataformas oportunistas.
Isabel Lopes Coelho: Não diria interferir, mas apresentar obras que sejam do interesse dos pais para construção do repertório de mundo e da família.
É importante saber o que estão lendo?
Denise Guilherme: Sim. Mais como uma curiosidade sobre os interesses das crianças do que como uma fiscalização de suas escolhas. A família pode saber o que cada filho está lendo, lendo junto.
Ler junto é construir momentos de conexão. É criar memórias afetivas em torno de um repertório comum e de um momento de prazer. Ler junto com os filhos abre espaço para descobrir seus interesses e, muitas vezes, é em uma conversa leve sobre uma determinada obra que as crianças se sentem seguras para se abrir sobre outros assuntos e encontrar em seus pais uma escuta atenta e aberta aos seus sentimentos e ao seu olhar sobre o mundo.
A formação de um leitor passa pelo pertencimento a uma comunidade de leitores. De pessoas que compartilham um repertório de leituras comuns. Nesse sentido, a escola tem um papel fundamental. Porque possibilita que, ao longo dos anos, as crianças reconheçam em sua história leitora obras que permitem conexões com seus colegas de turma e que fazem parte de sua memória literária. E isso cria laços.
Isabel Lopes Coelho: Acredito que sim, mas menos em relação a censura ou repreensão e mais no sentido de acompanhar o interesse desse leitor em vias de se tornar um adulto sensível. Conversar sobre o livro, entender porque aquela obra causou impacto, as passagens que chamaram mais atenção. Dar a mesma atenção ao que o filho/filha está lendo que se dá ao tipo de música que gostam, ou filme, ou interesses em geral, na construção de uma relação familiar saudável e de cumplicidade.
Como ajudar na escolha da próxima leitura? Como saber o que é melhor para determinada criança?
Denise Guilherme: Conhecendo nossos filhos. E sendo também leitores. Uma família que visita bibliotecas, livrarias e eventos literários vai construir uma coleção de obras, autores e temas de interesse. E isso pode ser um ótimo indicador para a próxima leitura. Assim, ao longo da formação leitora, vamos descobrindo nossos gostos.
E é importante entender que esse processo envolve muitas tentativas e erros. E investimento de tempo. E, em alguns casos, dinheiro. Muitas vezes, compramos livros que ficam anos intocados na estante. E outros que se desgastam de tanto que foram manuseados. Até encontrarmos nosso estilo, é preciso experimentar. Escolher bons livros exige uma boa dose de esforço e muita experimentação. Ninguém sabe o seu sabor de sorvete preferido tomando um só.
Há livrarias e bibliotecas com ótimos profissionais que vão além da pergunta básica - e totalmente inadequada - sobre a idade da criança e se é menino ou menina, mas que costumam buscar conhecer o leitor para oferecer ótimas indicações dentre as obras disponíveis nos espaços em que atuam.
Visitar sites de curadoria especializada, como A Taba (blog.ataba.com.br), por exemplo, também ajuda a encontrar títulos selecionados por especialistas.
Márcia Leite: Quando me perguntam sobre os melhores critérios para escolher livros para crianças e jovens, penso duas vezes antes de responder: você acha mesmo que existe uma fórmula? O que sei é que ao falarmos de seleção de livros, ou melhor, da seleção de livros para leitura literária, na escola ou fora dela, não há cilada maior que estabelecer critérios na forma de receitas, ou de manuais, ou de dicas impessoais – como a lista dos livros mais vendidos, ou a dos mais adotados pelas escolas. Isso por um motivo muito simples: cada leitor é único e singular.
Selecionar livros para promover um possível encontro entre o livro e o leitor é, inicialmente, conhecer bem quem é essa dupla: quem lerá e o que será lido. Se desejamos ter algum sucesso na escolha de um livro, temos de ter um mínimo conhecimento sobre os interesses da pessoa do leitor. E, ainda mais, o melhor livro para se sugerir é aquele que entusiasmou também quem o selecionou. Fale sobre o livro, conte por que acha que o leitor vai gostar, crie um contexto afetivo favorável para essa aproximação, mostre que deseja também saber a opinião do leitor sobre o livro que escolheu para ele. Em outras palavras: mostre-se afetado pela sugestão que faz!
Um bom livro estimula a imaginação, a criatividade, a curiosidade, as descobertas, favorece que o leitor entre em contato com outros mundos, outras pessoas, outras formas de pensar. Isso desenvolve o conhecimento de mundo e a capacidade de se colocar no lugar do outro. Em outras palavras, favorece o desenvolvimento da empatia e do sentimento de pertencimento à condição humana. Talvez essa seja a maior contribuição que os adultos possam dar aos filhos e alunos, ajudá-los a construir paredes seguras que permitam que se sintam mais confortáveis em habitar seu mundo interior.
Isabel Lopes Coelho: Oferecer algumas opções pode ser uma estratégia boa para entender qual o interesse da criança em temas para leitura. Conectar temas com vivências (por exemplo: o que estão trabalhando na escola, algo que a família está vivendo, um projeto etc...), aproximar o tema da leitura do cotidiano da criança pode ser uma porta de entrada.
E, o melhor livro é aquele que ela mais gosta e que a estimula a descobrir novos livros e novas histórias.
Pais podem achar que filhos não estão prontos para ler livros em que aparecem cenas de assassinatos ou suicídio, por exemplo. Às vezes, são livros que os próprios pais gostaram de ler, de autores como Agatha Christie ou Jorge Amado, para citar alguns. Como proceder? Devemos incentivar, apresentar a leitura ou tomar algum tipo de cuidado?
Denise Guilherme: Neste caso, acho importante fazer uma distinção.
Nas leituras feitas pela escola, as escolhas dos livros são ou devem ser feitas por profissionais da educação e são ou devem ser pensadas dentro de um currículo literário que abrange diferentes conteúdos da formação dos leitores de literatura. E sempre, essas obras devem ser mediadas por um educador. Não cabe à família essa escolha ou a imposição de seus valores morais ou religiosos na decisão sobre o currículo da escolha. Essa, repito, é uma tarefa para profissionais da educação que estudam e tomam decisões didáticas e metodológicas com base no conhecimento científico específico do fazer educativo.
Dentro de casa, cabe a cada família definir seus critérios de escolha e tomar decisões coerentes com seus valores e sua visão de mundo. Não faz sentido proibir a leitura de um livro com assassinato, mas deixar que o filho jogue jogos que simulam experiências de violência. Ou mesmo impedir uma literatura que aborde suicídio, mas permitir que seus filhos tenham acesso a redes sociais e seus conteúdos, por meio dos quais é possível chegar rapidamente a vídeos que estimulam a automutilação, por exemplo.
Importante lembrar sempre que a literatura não é da esfera jurídica. Mas do simbólico. Ou seja: é justamente característico da linguagem artística a comunicação por meio de símbolos, imagens e metáforas. E por isso, ela é um excelente recurso para elaboração do mundo.
Muitas vezes, os adultos se preocupam com o tema, com o conteúdo de um livro. Mas a literatura é sobre a forma. Por isso, é possível tratar de qualquer tema ou conteúdo com um leitor de qualquer idade, desde que se use a forma e a linguagem adequadas. E que esta leitura esteja mediada por um leitor supostamente mais experiente: um adulto.
Márcia Leite: Um depoimento pessoal: tentei ler, assim que me senti capaz, alguns dos poucos livros de literatura para adultos que havia em minha casa. Aos dez, onze anos, me debrucei sobre livros cujos títulos sequer me recordo. À medida que fui crescendo, retomei alguns deles e consegui algum tipo de interação, como se tentasse falar uma língua estranha à minha em outro país e entendesse apenas os comandos básicos para não morrer de fome. Essas leituras foram apenas ensaios para a vida de leitora que eu iria desenvolver ao longo da vida. Minha mãe sequer sabia de minhas incursões. Não havia tempo para essa preocupação por parte dela. Eu lhe sou grata por essa liberdade de experimentação solitária.
A pesquisadora, escritora e especialista espanhola em literatura infantil Ana Garralón traz uma provocação interessante para fecharmos este diálogo: “Por que nos importa tanto o impacto que as histórias possam ter nos jovens a ponto de nos apavorarmos? Por acaso os jovens não leem o que querem (quando podem) e não escolhem seus próprios livros quando não são orientados por imposições comerciais e promocionais e, sobretudo, quando não têm mediadores que tiram determinados livros de seu caminho?”
Adultos costumam esquecer com frequência de que foram crianças e adolescentes, e que devem aos livros, às revistas, às notícias de jornais, aos filmes, ao rádio, à TV, às histórias contadas por vizinhos, familiares, amigos a introdução gradativa ao mundo do “Não faz de conta”. Leitores não precisam de que lhe censurem obras para que sejam protegidos da realidade, mas que leiam para que possam se preparar para vivê-la, de preferência acompanhados por pessoas que se disponham a estar ao lado na mediação, na conversa, amplificando a voz dos livros e escutando seus leitores.
Isabel Lopes Coelho: Sem dúvida, o cuidado e o bom senso vêm sempre em primeiro lugar, seja para qualquer tema. Mas é sempre importante entender que a literatura pode ser uma ficção que imita a realidade, mas que não é a realidade. Os leitores se identificam com personagens em um processo catártico, o que gera amadurecimento e reparação. Mas, ao fechar um livro após sua leitura, a vida continua com os desafios que precisam ser confrontados de maneira realista.
Fique a vontade para comentar alguma outra coisa que você ache importante sobre o tema.
Denise Guilherme: É comum associarmos a ideia de infância à pureza, alegria e nenhum acesso a problemas. Mas se recuperarmos a nossa memória deste tempo, veremos que experimentamos também naquela fase a angústia, o medo, a raiva etc. A literatura é um recurso fundamental para nos aproximarmos da experiência humana em toda a sua complexidade e aprender a nomear o que sentimos, reconhecermos nossas sombras e, também, a descobrirmos que a nossa forma de viver e experimentar o mundo é só uma dentre tantas outras possíveis.
Muitas vezes, as famílias têm a ilusão de que, se apresentarem aos seus filhos apenas as realidades nas quais acreditam e que coincidem com seus valores estarão protegendo-as quando, na verdade, estão fazendo exatamente o contrário. Estão impedindo que - por meio da literatura e com a mediação de um adulto sensível - tenham acesso seguro à diversidade das experiências humanas, sendo capazes de construir um repertório de experiências que podem ajudá-las, inclusive, a validar as escolhas de suas famílias.
Certa vez uma mãe pediu que recolhessem um livro em que havia passagem que apresentava uma manifestação religiosa diferente da sua. Esclareci que, ao saber que havia outras manifestações religiosas diferentes, as crianças poderiam, inclusive, conversar com suas famílias sobre os motivos que levaram seus pais a escolherem determinada religião.
Ou seja: a literatura é janela e espelho. Janela porque nos permite ver o mundo. Espelho por que, ao nos levar para o mundo, proporciona também que sejamos capazes de olhar melhor a nós mesmos.
Nossas crianças e jovens estão sozinhos em um universo muito perigoso, sem que algumas famílias se deem conta. O acesso a um smartphone e às redes sociais os expõem a conteúdos sensíveis e a uma explosão de necessidades de consumo e de estímulos para os quais seus cérebros não estão preparados. E eles estão adoecidos.
Talvez, mais do que nunca, seja necessário resgatarmos a importância da literatura como espaço de diálogo sobre a vida. Não só para as crianças. Mas também para os adultos.
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