Dono de uma lírica derivada do surrealismo e considerado um dos poetas mais importantes do século 20 em Portugal, Herberto Helder (1930-2015) ganhou recentemente uma edição brasileira de seus Poemas Completos, a “última e mais completa” antologia organizada pelo autor, em 2014, pela Tinta-da-China.
Com sua voz poderosa, colorida por imagens quase mágicas sobre o corpo, o amor e a morte, Helder – um escritor recluso, que não compartilhava sua vida pessoal com os leitores e recusou prêmios importantes – gozou de reconhecimento crítico em Portugal desde A Colher na Boca, de 1961, e nos últimos 50 anos consolidou, com alguns intervalos, uma extensa obra poética que lhe colou o epíteto de “poeta português mais importante desde Fernando Pessoa”.
No Brasil, a repercussão da obra poética de Helder é um pouco mais tímida, mas ele é lido e amplamente admirado por escritores e acadêmicos pelo menos desde a época de 1980.
“A poética de Herberto remonta a uma liberdade surrealista na construção das imagens e a uma visão crente no poder mágico das palavras – linhagem essa que é um tanto rara nas páginas da poesia brasileira”, diz o professor do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, Fernando Paixão.
A combinação entre o real imediato, um amor muito puro pelas coisas do universo e a consideração carnal do corpo humano constitui, para o ensaísta e poeta Luis Maffei, professor da Universidade Federal Fluminense, um “brilho excessivo” que talvez não facilite a divulgação da sua poesia por aqui. “Este brilho não deixa de se abrir a uma relação radical com a morte – por vezes fascinada, por vezes, desesperada, mas sempre explosiva, como um encontro estelar. Este réquiem gozoso que se faz numa espécie de poema único não é comum por aqui, ainda que alguns poetas brasileiros possam ter afinidades com obsessões herbertianas – penso em Murilo Mendes e Hilda Hist, por exemplo, pela celebração, não raro in extremis, do corpo”, explica Maffei – sua tese de doutorado, modificada e com elementos novos, sairá em maio de 2017 pela Azougue, intitulada Do Mundo de Herberto Helder.
Na poesia contemporânea brasileira, essa influência não é tão visível, na opinião da professora de literatura portuguesa da Universidade Federal do Pará e especialista na obra de Herberto Helder, Izabela Leal. “O que podemos associar à sua escrita é a ideia de uma poética corporal, resultante de um processo que é muito mais orgânico do que intelectual. A poética herbertiana soube dar a essa concepção um tom muito próprio, uma delicada mistura, no fundo nada delicada (risos), entre erotismo, violência e celebração do ato criador, e é esse tom que vejo presente em muitos poetas mais novos.”
Além dos Poemas Completos, o braço brasileiro da editora Tinta-da-China publicou em 2016 por aqui Os Passos em Volta, livro em prosa, coisa rara na produção de Herberto Helder. Entre edições antigas de seus livros no País, pode-se citar Ou o Poema Contínuo, publicado em 2006 pela editora Girafa, a antologia o Corpo o Luxo a Obra, pela Iluminuras, e uma edição anterior de Os Passos em Volta pela Azougue, todas esgotadas nas livrarias e raridades nos sebos.
Nascido na Ilha da Madeira em 1930, Herberto Helder publicou seus primeiros poemas em revistas locais no início dos anos 1950, e durante suas peregrinações pela Europa foi metalúrgico, funcionário de cervejaria, assistente de cozinha, bibliotecário, radialista, jornalista. Nas últimas décadas de vida, se estabeleceu em Cascais.
“É um poeta intensamente moderno e experimental, com voz e imaginação próprias, mas que nos coloca em contato com temas arcaicos e essenciais: o amor, a natureza, o corpo, a mãe”, diz Fernando Paixão. “O mundo arcaico, bem sabemos, está na raiz de nossas emoções e pensamentos. Continuamos sendo movidos por mitos (da web, em nossa era) e palavras. Quer algo mais moderno que isso?”
POEMAS COMPLETOS
Autor: Herberto Helder
Editora: Tinta da China (736 p., R$ 99)
Poemas de Herberto Helder
AOS AMIGOS
Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado. Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos, com os livros atrás a arder para toda a eternidade. Não os chamo, e eles voltam-se profundamente dentro do fogo. – Temos um talento doloroso e obscuro. Construímos um lugar de silêncio. De paixão.
(Lugar, 1961-62)
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A solidão de uma palavra. Uma colina quando a espuma salta contra o mês de maio escrito. A mão que o escreve agora. Até cada coisa mergulhar no seu baptismo. Até que essa palavra se transmude em nome e pouse, pelo sopro, no centro de como corres cheio de luz selvagem, como se levasses uma faixa de água entre o coração e o umbigo.
(Última Ciência, 1989)
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até que Deus é destruído pelo extremo exercício da beleza.
(A Faca Não Corta o Fogo, 2008)
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saio hoje ao mundo, cordão de sangue à volta do pescoço, e tão sôfrego e delicado e furioso, de um lado ou de outro para sempre num sufôco, iminente para sempre
23.XI.2010: 80 anos
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até cada objeto se encher de luz e ser apanhado por todos os lados hábeis, e ser ímpar, ser escolhido, e lampejando do ar à volta, na ordem do mundo aquela fracção real dos dedos juntos como para escrever cada palavra: pegar ao alto numa coisa em estado de milagre: seja: um copo de água, tudo pronto para que a luz estremeça: o terror da beleza, isso, o terror da beleza delicadíssima tão súbito e implacável na vida administrativa
(Servidões, 2010)
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