Não é tarefa simples resumir 3.800 anos de história em pouco mais de 300 páginas, mas é este o desafio autoimposto por Mario Sznajder, doutor em Ciência Política e professor emérito da Universidade Hebraica de Jerusalém, no livro História Mínima de Israel, que chega ao Brasil pela editora Perspectiva. Leia um trecho abaixo.
O título da obra já alude ao fato de que o estudioso pretende fazer um resumo de todos aqueles fatores, desde o surgimento do povo judeu, que levaram à criação do estado de Israel, em 1948, e os processos históricos e sociológicos pelos quais o território passou em suas sete décadas de existência. Com o subtítulo “A História de um Povo, de uma Região e de um Conflito”, o livro tem tradução de Margarida Goldsztajn.
Sznajder passa por uma síntese da trajetória do povo judeu, analisa e explica a criação de movimentos políticos, do processo migratório e do espírito nacionalista que ajudaram a formar a Israel de hoje, além do conflito entre árabes e judeus na Palestina que culminou na guerra que atualmente é travada no território. Na introdução do livro, o autor explica como cada tema é abordado e os maiores desafios de escrever a obra. Confira, junto com parte do primeiro capítulo:
Leia trecho de ‘História Mínima de Israel’
A História Mínima de Israel representa um desafio complexo que envolve diversas tarefas simultâneas. A primeira é esclarecer a relação entre certos conceitos básicos que são com frequência confundidos, como judeu, israelita e israelense. A segunda pretende abreviar a história milenar do povo judeu e apresentar alguns dos seus problemas como o antissemitismo, o messianismo, o retorno à terra bíblica e as variantes do judeu em níveis cultural, social e político. Posteriormente, analisa-se a criação do moderno Estado de Israel e os problemas que ainda afetam a sua existência.
Quando falamos de judeus ou israelitas usamos vários conceitos: povo, nação, religião, grupo étnico, diáspora. No entanto, Shmuel Noah Eisenstadt, um sociólogo israelense, propôs o conceito de civilização israelita, uma vez que nenhum dos anteriores era suficientemente amplo, nem explícito, para definir judeus e israelitas. De acordo com Eisenstadt, o mais marcante dos fatores distintivos judaicos tem sido a religião, por exemplo, a relação peculiar ideológica e metafísica dos judeus com a terra de Israel, da qual se sentiram exilados durante os últimos dois milênios. A antiga civilização israelita apresentou a primeira religião monoteísta, que proclamou o conceito de um Deus universal e transcendente que criou o universo e impôs sua vontade e lei.
O termo Israel implica novos elementos de conceituação que em português estão relacionados às acepções israelita e israelense. Atualmente, são chamados de israelenses os nascidos no Estado de Israel ou os cidadãos desse país, enquanto israelita é sinônimo de judeu ou membro do povo de Israel, o povo judeu. O termo judeu está relacionado ao território da Judeia, assim denominado porque, segundo fontes bíblicas, foi ocupado pela tribo de Iehudá-Judá-Judeia durante a conquista de Canaã, após o êxodo do Egito. Israel é o nome que o patriarca Jacó adquiriu depois de sua luta com o anjo do Senhor, de acordo com o Antigo Testamento. Esse patronímico deu nome ao reino de Davi, no século X a.C., tendo sido usado para identificar os judeus como israelitas ou membros do povo de Israel. O termo judeu(s) – no plural, em hebraico, iehudim – foi mencionado pela primeira vez no Livro de Jeremias.
O primeiro capítulo deste livro nos leva do século XVIII a.C. ao século XVIII d.C. por meio de uma brevíssima síntese da história do povo judeu durante mais de 3.500 anos. O segundo capítulo analisa com maiores detalhes o surgimento do sionismo e de outros movimentos políticos judeus; também destaca as duas primeiras migrações judaicas modernas, o retorno à terra de Israel e a oposição que esse fenômeno desperta entre a população árabe local. No terceiro capítulo, centrado no período em que a Palestina se converteu no Mandato Britânico, o texto enfoca o processo de construção institucional e nacional do que será o futuro Israel, o aumento da violência intercomunitária e das tentativas de resolver os dilemas do confronto árabe-judaico. O quarto capítulo examina os primeiros anos de vida do Estado de Israel em um Oriente Médio hostil e as mudanças demográficas, sociais e econômicas de grande magnitude que afetaram a estabilização e a consolidação do novo Estado. Uma vez estabelecido, o Estado de Israel entrou em um longo período de guerras internacionais, que são o tema do quinto capítulo. O capítulo seis examina a busca pela paz entre Israel e seus vizinhos árabes, sempre num contexto saturado de violência. O sétimo e o último capítulos abrangem a década de 1980 do século XX ao início do século XXI, para mergulhar em um Israel envolvido nos processos de paz e de guerra.
Ao longo do texto, diversas hipóteses são apresentadas a fim de esclarecer as causas que explicam as consequências dos processos analisados na História Mínima de Israel. A primeira versa sobre a diferença entre as narrativas sobre Israel – e sobre os conflitos árabe-israelense e palestino-israelense – e o seu impacto em ambos os lados. Essa análise mostra que embora Israel opere formalmente de maneira democrática desde os tempos pré-Estado, o eleitor médio expressa sua vontade eleitoral e pública sobre uma realidade que conhece muito pouco. Isso também se aplica aos partidos árabes, em contextos menos democráticos. A segunda visa explicar a sobrevivência da sociedade judaica e o panorama de Israel, um Oriente Médio sempre hostil, com base na modernidade material e cultural do modelo utilizado pelo sionismo desde o início das modernas imigrações judaicas ou do retorno à terra bíblica. Dialeticamente, o modelo moderno de Israel desencadeia processos de retorno a identidades coletivas tradicionais. A terceira hipótese sustenta que a capacidade de improvisação que caracteriza as elites israelenses contribui sobremaneira para a resolução dos problemas que surgem no projeto sionista; no entanto, ao não se basear em estratégias de longo prazo, o fato de mensurar o progresso no sentido de seus objetivos e propor soluções eficazes para problemas ad hoc cria complicações que geram uma sensação contínua de crise.
Neste texto preferiu-se usar a terminologia original para mencionar fenômenos, fatos e instituições, bem como personagens, em uma transliteração para o português dos idiomas originais (hebraico, árabe e outros) que respeite tanto a fonética original quanto sua correta pronúncia em português.
No texto, são mencionadas obras em hebraico, espanhol, inglês, francês e alemão que serviram de base para a preparação desta obra, porém nas referências as fontes hebraicas são omitidas por serem numerosas demais.
O objetivo é que este livro desperte curiosidade suficiente para que os leitores decidam estudar mais a fundo os temas aqui apresentados sob o título: História Mínima de Israel.
1. O POVO DE ISRAEL
(século XVIII a.C. - século XVIII d.C.)
No relato bíblico há elementos históricos confirmados por fontes primárias externas à Bíblia, por exemplo, as Cartas de Tel Amarna (Egito, século XIV a.C.) escritas em acadiano, nas quais se faz referência aos habiru – antigos hebreus – ou as Cartas de Laquis ou Cartas de Hosaías ( Judeia, século VI a.C.) escritas em hebraico durante o reinado de Zedequias. A Bíblia hebraica – Biblia hebraica em latim, ou Tanakh (Torá, Neviím, Ketuvím em hebraico) – consiste em uma compilação de textos escritos em hebraico a partir do nal do século VII a.C. por vários autores. No debate sobre arqueologia bíblica surgiram controvérsias especialmente sobre o período dos monarcas do Reino Unido de Israel e de Judá – Saul, Davi e Salomão – em relação à sua realidade histórica e existência. Os minimalistas, por um lado, questionam a existência do reino ou o confinam a limites muito reduzidos de cidade-reino, ao passo que os maximalistas, por outro lado, sustentam que o relato bíblico é histórico. A descoberta de dois pequenos pergaminhos de prata do século VII a.C. em Jerusalém e dos 981 manuscritos ou Manuscritos do Mar Morto, encontrados em Qumran, a partir de 1946, bem como novas descobertas arqueológicas na área de Siloé-Cidade de Davi, em Jerusalém, e no vale de Elá – local em que, segundo o texto bíblico, Davi derrotou Golias –, corrobora parcialmente alguns relatos bíblicos.
Segundo a narrativa bíblica, o povo judeu ou israelita é formado pelos descendentes dos patriarcas Abraão, Isaque e Jacó. Abraão emigrou da cidade de Ur, na Mesopotâmia asiática do Oriente Médio, para a Terra de Canaã aproximadamente no século XVIII a.C. Sua família residia nos arredores de Hebron e seus membros trabalharam como pastores por duas gerações. Contudo, depois de uma fome de sete anos, emigraram para o Egito e se estabeleceram na Terra de Gessen, convidados por José, um dos doze filhos de Jacó que havia alcançado uma posição elevada na corte faraônica.
Depois de ali viverem durante vários séculos e terem sido escravizados pelos egípcios, um novo líder, Moisés, guiou o povo no que é chamado de êxodo do Egito. A saída do Egito constitui, para os judeus, uma festividade, ou melhor, um vínculo de identidade fundamental que é celebrado todos os anos na festa de Péssakh. É na fuga do Egito para o deserto que o povo judeu acentuou sua identidade religiosa ao receber os Dez Mandamentos que, além de reforçarem a identidade monoteísta, estabelecem princípios morais que constituem uma parte dos fundamentos da cultura ocidental. Decorridos quarenta anos após a saída do Egito e pouco depois da morte de Moisés no Monte Nebó – localizado, de acordo com a Bíblia, em Moab, na atual Jordânia –, os judeus entraram na Terra Prometida de Canaã e a conquistaram. Canaã foi subdividida entre as doze tribos que descendem dos lhos de Jacó e, no âmbito da interação com os habitantes locais, elas começaram a se estabelecer durante a chamada “Era dos Juízes” de Israel. De acordo com Israel Finkelstein e Neil Asher Silberman, esse parece ser o período em que as práticas e os rituais da elite que, segundo a tradição bíblica, liderou o êxodo do Egito, transformaram-se em uma religião popular que regulamentou as condutas sociais da maioria demográfica de Canaã que, mais tarde, tornou-se o povo de Israel.
O último dos juízes, o profeta Samuel, ungiu Saul como primeiro rei de Israel, aparentemente no século XI a.C. Saul, por sua vez, foi sucedido por Davi, seu genro, que atuou como líder militar e rei de Israel ao mesmo tempo. Davi conquistou Jerusalém, uma antiga cidade cananeia, jebusita, na terra da tribo de Judá-Judeia. Esse centro, declarado muito mais tarde como a Cidade Santa do judaísmo e depois do cristianismo e do islã, sempre desempenhou um papel central na identidade judaica e atualmente na palestina. Salomão, sucessor de Davi, construiu ali o Primeiro Templo judaico. O objetivo da sua construção era abrigar a Arca da Aliança que continha as duas tábuas da lei com os Dez Mandamentos no Sancta Sanctorum, o Santo dos Santos. A época de Davi e Salomão forneceu os materiais necessários para construir o tipo de mito histórico que nos séculos XIX e XX os nacionalismos modernos usaram com conotações heroicas, gloriosas e românticas ao mesmo tempo. O Antigo Testamento mostra uma luta contínua entre o monoteísmo estrito dos profetas e as práticas pagãs de grandes grupos judaicos e de suas elites. Os principais profetas – Isaías, Jeremias, Ezequiel e Daniel – atuaram especialmente no Reino de Judá entre os séculos XVII e V a.C.
História Mínima de Israel
- ‘A História de um Povo, de uma Região e de um Conflito’
- Autor: Mario Sznajder
- Tradução: Margarida Goldsztajn
- Editora: Perspectiva (336 págs.; R$ 94,90)
- Data de livraria: 20/9/24
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