Opinião | ‘Hospício é Deus’ é o diário de uma psicótica? Um testemunho da vida no manicômio? Literatura?

Livro de Maura Lopes Cançado a aproxima mais de Lima Barreto do que de nomes como Sylvia Plath e David Foster Wallace ao falar sobre a loucura - mas não de dentro da loucura

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Hospício é Deus, livro de Maura Lopes Cançado (1929-1993), é um objeto voador não identificado que cruzou o espaço editorial brasileiro e que, como um cometa, retorna agora suscitando as mesmas questões que despertou na época de seu aparecimento - ele foi lançado originalmente em 1965. É o diário de uma psicótica? É um depoimento testemunhal dos abusos da institucionalização dos doentes mentais nas décadas de 50 a 70? É um escrito literário?

Quem foi Maura Lopes Cançado?

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Maura era a nona filha de uma prole de 11 de um rico fazendeiro de Minas que, cercado de jagunços, exercia seu poder com grande violência. Sua mãe pertencia a uma família tradicional. Considerada muito inteligente, sempre foi uma menina “estranha”, “epiléptica”, que inventava histórias. Era a preferida do pai que lhe fazia todas as vontades. Sofreu abusos sexuais na infância, que manteve em segredo. Aos 14 anos ganhou de presente da mãe um avião e, contra o desejo do pai, casou-se com um sócio do aeroclube de 17 anos. Foi mãe aos 15 e logo se desquitou.

Tentou estudar em Belo Horizonte, mas não foi bem aceita nos colégios por ser uma moça que vivia fora dos padrões considerados como adequados. Rompeu com a família e mudou-se para o Rio de Janeiro, onde dissipou sua herança de forma extravagante e escandalosa. Aos 17 anos se internou voluntariamente num hospital psiquiátrico. Era a primeira de 19 internações no correr de sua vida. Numa delas, em pleno surto, estrangulou uma outra paciente, grávida, de 19 anos.

A mineira Maura Lopes Cançado, autora de 'Hospício é Deus' Foto: Acervo da família de Maura Lopes Cançado via Companhia das Letras

O livro de Maura Lopes Cançado

Hospício é Deus está centrado em sua terceira internação. Naquela ocasião, gozava de certa celebridade por seu comportamento não convencional e por seu incipiente prestígio literário porque alguns de seus textos tinham sido aceitos pelo Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, condição que lhe garantiu inúmeros privilégios no hospital.

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Como estratégia narrativa, Maura deu a seu livro a forma de diário que se inicia com uma espécie de introdução (p. 9 – 31), ao que se seguem as entradas diárias, onde relata os acontecimentos comezinhos das relações pessoais características desse espaço confinado – brigas entre os internados, as discussões com as guardas e autoridades, o contato com os médicos e enfermeiras e sua patética paixão transferencial pelo médico Dr. A.

Ela entremeia esses relatos com reflexões sobre seu estado mental e sanidade e sua visão crítica das estruturas de poder instaladas no hospício. Na introdução e nesses trechos se evidencia a dimensão literária do livro, o uso estético da linguagem, sua capacidade de perceber seus conflitos e de transmitir o drama que vivencia.

Há ainda no livro pequenas peças extraídas do contexto, material que Maura talvez pretendesse desenvolver posteriormente como contos, desde que lhes deu títulos – O Jogo, O Crime da Gravata Nova, Dona Georgiana, Gatolândia, Sua majestade vai em cana, O bureau, O carro de bolinhas brancas, Grandes confusões”, Pausa 1 e 2, Domingo.

Na maioria das entradas diárias, Maura coloca-se como observadora do comportamento das outras internas e dos funcionários da instituição (médicos e enfermeiros). Isso empobrece o relato, pois a loucura fica colocada nos outros e a dela mesma só se evidencia nos surtos de agitação psicomotora, em sua conduta violenta e agressiva.

Ao falar sobre os internados no hospício, Maura os divide em duas categorias: os “loucos” e os “doentes mentais”.

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Diz ela: “O que me assombra na loucura é a distância – os loucos parecem eternos. Nem as pirâmides do Egito, as múmias milenares, o mausoléu mais gigantesco e antigo possuem a marca da eternidade que ostenta a loucura.(.....) Ainda que só diante do louco tenha experimentado a sensação de eternidade. Nele não encontramos a falta. Nos parece excessivo, movendo-se noutra espécie de vibração. Junto dele estamos sós. Não sabendo situá-lo, fica-se em dúvida: onde se acha a solidão? O louco é divino, na minha tentativa fraca e angustiante de compreensão. É eterno. (....) São poucos os loucos. A maioria compõe a parte dúbia, verdadeiros doentes mentais. Lutam contra o que se chama doença, quando justamente essa luta é o que os define: sem lado, entre o mundo dos chamados normais e a liberdade dos outros. (...) Transposta a barreira, completamente definidos, [os loucos] passam a outro estado – que prefiro chamar Santidade. (...) O que aparentam é a inviolabilidade de seu mundo. Como os mortos, nada fazem para voltar ao estado primitivo – e embora todos tenhamos de morrer um dia, poucos alcançam a santidade da loucura (e quem prova estar o louco sujeito à morte, se passou para uma realidade que desconhecemos?”. (p. 30).

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Dessa forma, Maura retoma uma antiga visão da loucura, que a colocava numa posição sagrada, grandiosa, a condição dos homens santos, interlocutores dos deuses, depositários de sabedoria humana. Mas também, inadvertidamente, dá testemunho do estado maníaco, da elação e expansão de um ego isento da castração, que, em sua autossuficiência, nega toda e qualquer carência, fechado num narcisismo arrogante e onipotente, preso na megalomania.

A dicotomia entre “loucos” e “doentes” aparece no próprio livro. A Maura “louca” se expressa numa linguagem literária suntuosa, refletindo sobre si mesmo e a vida; a Maura “doente” se revelas nas entradas cotidianas do diário, onde mostra sua miserável e caótica convivência com as outras pobres mulheres do hospício, o tumulto permanente da desrazão.

Nesses momentos, as “loucas” e “doentes” não mais se distinguem. Seu talento de escritora se manifesta na descrição desse universo: “À hora do almoço, o refeitório vibra, frenético e nauseante. Uma, rasgada, dança com o prato na cabeça. Outra come ávida, mastigando de boca aberta, a gordura escorrendo-lhe pelo queixo. Falam, cantam, brigam, riem. A guarda grita.... Meu braço apoiado sente a frieza da mesa de pedra, sem toalha. Sim, digo para mim mesma – má e sem sofrimento – o refeitório das loucas. Mas sim, por que não dizer? E meus lábios gastos se contraem num ríctus, que não é de dor, mas de quase maldade. Aqui estamos nessa sarabanda alucinada, nós, mulheres despojadas, sem ontem nem amanhã, tão livres que nos despimos quando queremos. Ou rasgamos os vestidos (o que dá ainda um certo prazer). Ou mordemos. Ou cantamos, alto e reto, quando tudo parece tragado, perdido. Ou não choramos, com suprema força – quando o coração se apequena a uma lembrança no mais guardado do ser. Nós mulheres soltas, que rimos doidas por trás das grades – em excesso de liberdade”. (p. 89).

“Nós mulheres soltas, que rimos doidas por trás das grades – em excesso de liberdade”. A frase merece ser repetida pois nela a inteligência e talento literário de Maura sintetizam bem as antinomias da loucura: prisão ou excesso de liberdade?

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Pena que Maura não se aprofunde mais em seu próprio mundo interno, não nos conte mais detalhes de seus delírios e alucinações, da desestruturação de seu psiquismo, coisa que faz, por exemplo, ao dizer que, quando menina, se trancava no quarto para não ver os narizes de seus familiares, que lhe pareciam “repugnantes”...

'Hospício é Deus', de Maura Lopes Cançado, já teve uma edição recente pela Autêntica e passa a integrar, agora, o catálogo da Companhia das Letras. Obra foi publicada originalmente em 1965 Foto: Reprodução/Companhia das Letras

‘Prefiro guardar minhas verdades’

Esse empobrecimento do conteúdo da escrita é reconhecido por ela mesma quando diz: “Será deveras lastimável se esse diário for publicado. Não é, absolutamente, um diário íntimo, mas tão apenas o diário de uma hospiciada, sem sentir-se com direito a escrever as enormidades que pensa, suas belezas, suas verdades. Seria verdadeiramente escandaloso meu diário intimo – até para mim mesma, porquanto sou multivalente, não me reconheço de uma página para outra. Prefiro guardar minhas verdades, não pô-las no papel.” (p. 155)”.

E depois: “Considero meu diário simplista. Sou muito mais do que aparento ser nesse diário. Meus diálogos com o médico revelam uma inteligência rápida, brilhante, ele confessa sempre que sou mais inteligente que ele. Ao escrever, limito-me quase sempre a registrar fatos. Se me dispusesse a escrever com seriedade, aprofundando-me em meus lagos de sabedoria, estarreceria a mim mesma”. ( p.199)

Com isso, Maura se afasta daqueles escritores, como Sylvia Plath, Ken Kesey (Um estranho no ninho), Susana Kaysen (Girl, Interrupted), Antonin Artaud (Van Gogh, o suicidado pela sociedade), David Foster Wallace, Elizabeth Wintzel (Nação Prozac), William Styron (Escuridão Visível – uma memória de loucura) e Robert Lowell, que não recuaram frente ao desafio de falar de dentro da loucura e não sobre a loucura.

Maura fica mais próxima de Lima Barreto, cujo livro é mais um depoimento político de denúncia contra os abusos institucionais do que uma reflexão sobre a condição mental que o levara forçosamente à internação. Ele pouco fala de suas fantasias, seus desejos, seus temores, seus traumas de homem negro, intelectual, pobre, massacrado pelos preconceitos.

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Um ponto interessante levantado por Maura e, pelo que sei, pouco abordado por psiquiatras e psicoterapeutas, é: pode o psicoterapeuta ser menos inteligente do que o paciente? É uma questão de difícil aferição e resolução, mas que nem por isso deve ser escamoteada.

O livro contém dois bons adendos de Natalia Timerman e Mauricio Meireles, com informações críticas sobre a autora e sua obra.

Hospício é Deus

  • Autora: Maura Lopes Cançado
  • Editora: Companhia das Letras (288 págs.; R$ 99,90; R$ 44,90 o e-book)
Opinião por Sérgio Telles

Psicanalista e escritor, autor de vários livros, entre eles 'Peregrinação ao Père Lachaise' e 'Visitas às Casas de Freud e Outras Viagens'

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