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Jeferson Tenório fala sobre cota racial, censura e o material biográfico de sua literatura

Novo livro do autor de ‘O Avesso da Pele’, ‘De Onde Eles Vêm’ aborda o início do sistema de cotas nas universidades. Nesta entrevista, o escritor, convidado da Flip 2024, fala sobre a reação ao seu livro mais famoso, que trata de racismo e violência policial, sua experiência como cotista e, claro, literatura

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Foto do author Julia Queiroz
Atualização:
Foto: Alex Silva/Estadão
Entrevista comJeferson TenórioEscritor

Jeferson Tenório aparenta uma tranquilidade surpreendente para alguém que teve o nome alçado ao debate público nacional da forma como ocorreu com ele. Não dá para dizer que foi do dia para a noite: o escritor de 47 anos já havia publicado dois romances bem recebidos antes de vencer o Prêmio Jabuti, em 2021, pelo livro O Avesso da Pele (Companhia das Letras).

Foi no início deste ano, no entanto, quando a obra foi alvo de censura, que o rosto de Tenório passou a ser ainda mais conhecido. Entre as disputas judiciais e notícias diárias, a atenção na rua cresceu, especialmente no bairro em que Tenório se estabeleceu em Porto Alegre (nascido no Rio de Janeiro, hoje ele se divide entre a capital gaúcha e São Paulo). “Já teve vezes em que tive que sair disfarçado. No auge da história da censura, eu tive que botar boné”, diz o escritor, que recebeu o Estadão no apartamento que mantém na capital paulista.

O “auge”, como ele descreve, foi em meados de março, quando o livro, parte do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), foi recolhido de escolas do Rio Grande do Sul, do Paraná e do Goiás por supostas “expressões impróprias” para menores de 18 anos. Naquela semana, as vendas do livro aumentaram em 400% na Amazon.

Depois de uma ação da editora Companhia das Letras, a Justiça ordenou a volta do livro às salas e bibliotecas. Em julho, um parecer do Ministério da Educação (MEC) considerou que o livro não faz “apologia ao uso de drogas, à violência contra a mulher, ao uso de expressões vulgares e sexuais” e que as cenas narradas têm “coerência interna”.

Marcado por este cenário, Tenório lança, no final de outubro, seu próximo romance: De Onde Eles Vêm (Companhia das Letras), cujo personagem principal, Joaquim, é um dos primeiros jovens negros a entrar na universidade pública pelo sistema de cotas raciais, em meados dos anos 2000 - uma experiência vivida pelo próprio autor. “Talvez seja o livro mais realista que eu tenha feito nos últimos anos”, afirma ele.

O escritor e professor Jeferson Tenório em seu apartamento na região central de São Paulo. Foto: Alex Silva/Estadão

A divulgação nacional começa nesta quarta, 9, com a largada da 22ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Pela primeira vez presencialmente, Tenório é convidado da programação oficial e vai discutir sua produção literária ao lado do senegalês Mohamed Mbougar Sarr. Ele sabe, porém, que o peso de sua participação neste ano é diferente.

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Nesta conversa, editada para melhor compreensão, o autor discutiu como sua própria experiência aparece no novo romance, os episódios de censura e suas consequências, o elitismo na Flip e os aprendizados que a literatura e os dez anos de carreira lhe apresentaram.

Como surgiu a ideia para este livro? Por que falar sobre o sistema de cotas e, especificamente, o início dele?

A ideia surgiu a partir da publicação de O Avesso da Pele, em 2020. Foi quando eu comecei pensar nesse livro. A ideia era contar esse período que eu considero histórico: a entrada de pessoas negras na universidade. Achei que foi uma revolução silenciosa na sociedade, de modo geral. Queria pegar justamente o início da implantação das cotas para mostrar o avanço e, ao mesmo tempo, as dificuldades desses estudantes permanecerem na universidade. Então, De Onde Eles Vêm é esse percurso da entrada, mas também da luta pela permanência na universidade.

Este é um tema caro a você e à sua trajetória acadêmica. Quanto de sua própria experiência está refletida no livro?

Tem muito a ver com a minha trajetória. Acho que é impossível escrever um livro sem material biográfico, mas a minha trajetória foi diferente. Eu sou aluno cotista, mas eu já estava na universidade quando eu fiz o vestibular. Fiz o vestibular várias vezes, trocando de curso. E, no caso do Joaquim, ele é esse rapaz da periferia que entra na universidade. Ele já é um leitor. No meu caso, era diferente, eu não era um leitor ainda. Mas há uma mistura aí, da minha pessoa com a do Joaquim e também com os colegas que eu tive na universidade.

Você já tinha dois romances bem avaliados antes de ‘O Avesso da Pele’, mas foi esse livro que fez seu nome ser reconhecido nacionalmente. Isso te afetou de alguma forma quando produziu este novo livro? A expectativa é diferente?

Não foi. Como eu tenho um projeto literário bastante consciente do que eu quero fazer - independentemente se o livro anterior teve um sucesso ou não -, não me senti pressionado. O meu compromisso é com o leitor, de oferecer o melhor que posso em termos de qualidade estética. A minha preocupação é essa: ser lido. E ser lido justamente por pessoas que talvez nunca tenham lido um livro inteiro antes. Esse é o meu compromisso: formar leitores. Mais do que formar críticos, eu quero formar leitores.

Qual você acha que vai ser a principal diferença que os leitores vão sentir dos seus trabalhos anteriores pra esse?

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De Onde Eles Vêm não é um livro, diferente dos meus outros, que traz uma redenção final. Em O Avesso da Pele, você tem ali uma redenção, um ponto alto do Henrique, que é justamente na morte. E no De Onde Eles Vêm, não. Ele é um livro agridoce, tem uma certa doçura e tem o amargor. Você não tem esse grande momento em que as coisas vão mudar para sempre, um grande final. Você tem a vida como ela é. Talvez seja o livro mais realista que eu tenha feito nos últimos anos.

Os personagens são muito tridimensionais. Como é para você construir isso?

O curioso é isso: esses personagens são uma mistura das pessoas que eu conheço, com quem eu convivi, do que eu li, do que eu já observei e de histórias próximas do que eu já escrevi, mas quanto mais eu tentava escrever o real, mais inverossímil ficava. Então, nesse momento, eu precisava me afastar e aí de fato entrar com a criação. Imaginar de fato esses personagens. E aí, eu conseguia esse efeito - eu tentei chegar nesse efeito de real, de realidade. Mas é sempre esse processo de olhar para a realidade e depois ficcionalizar em cima.

Jeferson Tenório lança, em 25 de outubro, o livro 'De Onde Eles Vêm', cujo protagonista é um dos primeiros jovens negros a entrar na universidade público por meio do sistema de cotas raciais. Foto: Alex Silva/Estadão

As vendas de ‘O Avesso da Pele’ cresceram muito após os episódios de censura. Como você enxerga essa situação?

O caso de O Avesso da Pele aconteceu já com outras obras. Sabemos que tudo aquilo que é censurado acaba causando uma curiosidade nas pessoas. É claro que é preciso sempre tomar bastante cuidado, porque a gente vive num país que teve essa guinada conservadora com a entrada da extrema direita. Tudo isso faz com que a gente se preocupe bastante com a censura.

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A procura pelo livro é o efeito colateral da proibição. Isso foi bastante positivo. Mas, veja, não foi só o aumento das vendas. Houve também uma defesa não só do meu livro, mas uma defesa do livro [em si], uma defesa da cultura, do conhecimento. Eu ficaria mais preocupado se houvesse apenas o aumento das vendas sem o argumento político, de dizer o quanto é importante que a gente lute contra a censura contra qualquer tipo de restrição à literatura. Houve sim um salto positivo.

Tudo isso te assustou ou te afetou do ponto de vista emocional?

Emocionalmente não. Me causou primeiro um espanto, quando eu recebi a notícia, e depois uma certa preocupação de o livro ser, de fato, recolhido e que não pudesse ser lido nas escolas. É uma certa angústia, mas não medo. Embora a gente sofra ataques, eu acho que as instituições democráticas estão funcionando bem.

Você teme que isso aconteça com ‘De Onde Eles Vêm’?

Espero que não. Estou torcendo que não aconteça novamente. Acho que eu fiz um livro que talvez vá suscitar alguns questionamentos, mas como o conservadorismo nos surpreende sempre, podem achar alguma coisa lá que que eu não tenha visto e usar como argumento para censurar.

Você pensa em abordar a censura em um próximo livro?

Para mim, as coisas funcionam de maneira um pouco mais lenta. Por exemplo, saíram muitos livros sobre a pandemia. Já tem quase cinco anos e eu ainda não me sinto preparado para escrever contextualizado a pandemia. Com a censura, é a mesma coisa. Eu acho que preciso de um tempo ainda para depois voltar, fazer uma análise e talvez escrever sobre isso.

Como você chega à Flip depois de tudo isso?

É a minha primeira vez presencialmente na Flip como convidado da programação oficial. Chego diferente porque O Avesso da Pele teve uma grande repercussão no início desse ano. Já vinha tendo uma repercussão grande e acho que também é o momento desse encontro com os leitores, com os professores, com os alunos. Isso para mim é bastante gratificante, importante e mostra a necessidade que a gente tem de formar leitores.

Você acha que é um espaço de debate importante?

É um espaço de debate, embora ainda um espaço um pouco elitista. Não é qualquer pessoa que pode chegar na Flip. Acho que a gente ainda precisa repensar, no sentido de como descentralizar também esses debates. A Flip, claro, sempre foi um lugar importante de debate e também de validação de qualidade dos livros, mas a gente precisa pensar também em tornar mais acessível para a população.

É um público talvez já engajado com os temas discutidos lá. Como podemos levá-los para o público que não necessariamente tem esse interesse prévio?

Acho que a descentralização é um dos caminhos. Também tornar acessível o acesso ao livro, e não falo apenas do valor do livro, mas de fortalecer as bibliotecas públicas, as bibliotecas escolares, dar incentivo para as livrarias de bairro, de calçada, moverem eventos e levar a comunidade para dentro desses espaços. É preciso que haja um sistema cultural que dê conta dessa descentralização. Não é só a Flip, a gente precisa de todo um ambiente propício para que a gente consiga de fato chegar nessas pessoas.

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‘De Onde Eles Vêm’ trata também do poder dos livros e da literatura. Isso é algo que também aparece nos seus outros romances. É um reflexo do que a literatura fez por você?

A literatura fez muito por mim e continua fazendo. Tudo que eu me tornei foi graças aos livros e à literatura. Talvez todos os livros que eu escreverei ainda farão essa homenagem aos livros. No caso do De Onde Eles Vêm, obviamente, é um livro que está falando dessas pessoas que entraram na universidade, fala também da origem dos professores, mas fala também, sobretudo, sobre a origem da criação. De Onde Eles Vem é também de onde vem a criação, a poesia, os versos. É o questionamento que o Joaquim faz quando ele está produzindo o primeiro poema dele, de onde vem a criação, como é que ela acontece. É um questionamento estético na verdade, não apenas um questionamento político.

Você sentia essa ‘angústia’ quando começou a escrever?

Não, eu não sentia isso. Na verdade, acho que eu acabei criando um personagem que eu gostaria de ter sido, porque o Joaquim é muito consciente já de muitas coisas. Quando eu comecei escrever, eu não era nada consciente, tanto politicamente, racialmente e esteticamente. Eu só queria escrever. O Joaquim entra nessa história já como um leitor, como alguém que já sabe o que quer. Ele quer escrever, quer ler coisas difíceis, escolhe o livro para conviver com ele. Para mim não, a escolha de conviver com os livros foi bem tardiamente, foi bem mais lenta.

O que você mais aprendeu de lá para cá?

Aprendi a ter mais paciência, acho que consegui gostar mais da lentidão da escrita. Aprendi a não ter tanta pressa para terminar e entender o tempo do livro, o tempo da literatura, o tempo que ela demora. O que as pessoas chamam de bloqueio criativo, costumo pensar que é o tempo que o texto está pedindo. Se você não está conseguindo criar, é porque precisa fazer outra coisa.

Estamos em um momento de muitas pessoas entrando e conhecendo a literatura, mas ao, mesmo tempo, o mercado editorial ainda não se recuperou da pandemia. Como você enxerga o cenário atual?

Acho que temos uma abertura bem interessante. A pandemia também mostrou a importância da arte, dos livros, do entretenimento, ou seja, só passamos por aquele momento também com a ajuda dos livros e da literatura. As pesquisas também mostram que houve um aumento também do mercado editorial. Em Porto Alegre houve, por exemplo, um florescimento de livrarias de calçada. A emergência também de vozes novas na literatura. Hoje é muito comum você entrar numa livraria e ver autores tão diversos. Acho que houve uma mudança bem importante e, para quem decretou o final do livro, acho que se deu mal.

'De Onde Eles Vêm' é o novo romance de Jeferson Tenório Foto: Companhia das Letras/Divulgação

De Onde Eles Vêm

  • Autor: Jeferson Tenório
  • Editora: Companhia das Letras (208 págs.; R$ 74,90 | E-book: 44,90)
  • Lançamento: 25/10
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