THE WASHINGTON POST - Em 1991, quando John Grisham e A Firma, sua criação literária, decolaram nas livrarias mais rápido que um Learjet, tanto o autor quanto o protagonista do livro, Mitch McDeere, eram jovens advogados idealistas e entusiasmados, circulando por Memphis com sede de sucesso. A regra “escreva sobre o que você conhece” valeu ouro para Grisham: o livro, seu segundo depois de Tempo de Matar, vendeu mais de 7 milhões de cópias e estabeleceu o padrão para o gênero de suspense jurídico.
A Firma mostrou ao mundo editorial como era enorme o apetite por advogados que se tornassem autores, capazes de misturar o olhar de especialista com um enredo veloz de mocinhos contra bandidos, tendo no centro um protagonista moralmente complicado, mas charmoso. Como Grisham explicou numa entrevista em 1992, “nós, advogados, nos envolvemos com pessoas que bagunçaram suas vidas, e seus erros geram histórias fascinantes”.
Naquele ano, seu agente recebeu mais de 100 manuscritos não solicitados de advogados – e assim nasceu o efeito Grisham. Uma sequência teria sido natural, mas não tinha vindo até agora. The Exchange, o 49º livro de Grisham, acaba de chegar às lojas dos EUA (no Brasil, o livro sai pela editora Arqueiro em 2024, ainda sem data exata nem título definidos).
Como é a sequência de ‘A Firma’?
A sequência será tão boa quanto o original? Ou será um adorno desnecessário? Os fios soltos vão se resolver? E, em se tratando de uma continuação de A Firma, livro onde as mulheres parecem ser sido escritas por moleques de faculdade e as representações de pessoas não brancas são constrangedoras, será que os personagens de minorias vão conseguir um lugar de destaque?
Vejamos em que ponto Grisham tinha deixado as coisas.
No fim de A Firma, Mitch McDeere, nosso intrépido herói, encarnado tão naturalmente por Tom Cruise, tinha conseguido se livrar do corrupto escritório de advocacia tributária Bendini, Lambert & Locke. Com a ajuda de seu irmão condenado e de Abby, sua esposa, McDeere passou na frente do FBI e da Máfia, entregou aos agentes federais tudo o que precisavam para as acusações e embolsou incríveis US$ 10 milhões. Os McDeere acabaram nas Ilhas Cayman e, embora parecessem ter escapado, era óbvio que a perseguição estava só no começo.
The Exchange começa em 2005. Aos 41 anos, Mitch está na meia-idade, cheio de dinheiro e comendo pizzas com trufas. (Esta última parte não é culpa dele: Abby não é mais professora, mas sim editora de livros de receitas).
Os dois filhos de Kentucky viraram adultos ricos em Nova York, com um casamento perfeito: Mitch é sócio da megaempresa fictícia Scully and Pershing e vive harmoniosamente com Abby e os filhos gêmeos. “A Máfia nunca esquece” era a ameaça tantas vezes repetida em A Firma, mas para Mitch – e para esta sequência – a Máfia esqueceu.
Três grandes questões são respondidas de imediato. Mitch e Abby realmente deixaram todo mundo para trás, voltaram em segurança para os Estados Unidos e Mitch é um advogado de sucesso, mais uma vez. O trabalho rolou porque Mitch foi contratado em Londres e mostrou sua carteirinha de Harvard – muito fácil!
O trabalho gastronômico de Abby se justifica porque, depois das Ilhas Cayman, os McDeere viveram na Itália por três anos, onde Abby teve aulas de culinária, Mitch estudou vinhos e eles aprenderam a falar italiano fluentemente. Resumindo, se assassinos estão atrás de você, relaxe na Toscana e faça bruscheta.
Outra grande questão que vem com toda sequência: você tira os personagens do lugar que estava tão bem desenhado que virou um personagem por si só? No caso dele, Memphis. E você permite com que os protagonistas façam as pazes com o passado?
Grisham leva Mitch de volta a Memphis, para investigar um caso do corredor da morte, mas é só uma desculpa para um encontro com Lamar Quin, ex-melhor amigo e sócio da Bendini. Sua viagem pela estrada da nostalgia leva os leitores exatamente aonde a maioria de nós teria imaginado – mas não vou dar spoiler, mesmo que essas pontas soltas sejam todas amarradas logo nos primeiros capítulos. Mitch deixa Memphis, pronto para começar um novo capítulo – ou neste caso, ao que parece, um livro totalmente novo que não lembra em nada uma sequência de A Firma.
O salto geográfico na trama é parte da razão pela qual The Exchange parece uma história separada. Desta vez, o drama não é jurídico, mas financeiro, já que Giovanna Sandroni, sócia ítalo-britânica da Scully, foi sequestrada na Líbia e uns personagens bem obscuros estão pedindo um resgate de US$ 100 milhões.
O dinheiro deve vir da Scully, já que a intermediária exige que governos e polícias fiquem de fora. (Sim, as mulheres e os personagens não-brancos conseguem um pouco mais de atenção). O drama principal vem do tempo se esgotando na vida de Giovanna e das exigências terroristas que levam Mitch a viajar o mundo todo na tentativa de arrecadar dinheiro.
É uma história intrigante, com a violência, as negociações suspeitas e a trama veloz que os fãs de Grisham adoram, mas o problema é o seguinte: quase não tem nada a ver com direito e há muito pouco do corajoso e espirituoso Mitch McDeere. Ele simplesmente parece outro homem.
Mitch virou um marido e pai dedicado, uma pessoa que planeja uma noite tranquila com a esposa, digamos, ficando nu na praia, roubando dinheiro sujo e fazendo exigências malucas ao FBI. Talvez seja o excesso de trufas, mas ele é brilhante e perfeito, até mesmo quando precisa lidar elegantemente com terroristas – mas isso não vai contra o padrão que Grisham tinha estabelecido para o personagem?
No capítulo três, conversando com a esposa sobre Memphis, Mitch diz: “Olha, Abby, faz muito tempo que tomamos a decisão de viver uma vida normal, sem ficar olhando para trás... O que aconteceu lá agora é passado”. Dá para sentir a distância daqueles dias de Memphis e, com The Exchange, os leitores entendem que um personagem sem falhas é a maior falha de todas.
Serviço
- The Exchange
- Editora: Doubleday
- Autor: John Grisham
- 339 páginas; R$ 249,75 | Ebook: R$ 51,51 (em Inglês - no Brasil, sai pela editora Arqueiro em 2024, ainda sem mais detalhes)
Karin Tanabe é autora de seis romances, entre eles A Woman of Intelligence, The Gilded Years e, mais recentemente, Sunset Crowd.
/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
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