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José Luís Peixoto lança 'Morreste-me', delicada narrativa sobre a morte de seu pai

Este foi seu livro de estreia; depois, ele venceria o Prêmio José Saramago e se tornaria um dos principais autores de sua geração

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Foto do author Maria Fernanda Rodrigues

Em 1996, o português José Luís Peixoto tinha 21 anos e estudava para ser professor de inglês e de alemão. Não sonhava que ganharia o Prêmio José Saramago, para jovens autores, e que em poucos anos construiria uma carreira literária internacional respeitada. Mas a morte de seu pai naquele ano, depois de um sofrido tratamento de saúde, e a experiência de voltar, de fato ou em pensamento, à casa da infância, vazia, mudaria seu destino. Nascia, ali, um escritor - não que ele tivesse consciência disso quando começou a escrever o que se tornaria, depois, Morreste-me, que só agora ganha edição no Brasil.

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Foi então com esta narrativa em que o filho conversa com o pai “impossivelmente morto”, enquanto relembra os últimos momentos vividos em casa ou no hospital e fala sobre o presente, ou seja, o regresso “a esta terra cruel. A nossa terra, pai. E tudo como se continuasse”, que Peixoto estreou na literatura.

José João morreu em janeiro. José Luís começou a escrever sobre sua perda em maio. Achava que se tratava apenas um texto, mas ao terminar sentiu que tinha mais a dizer - e continuou. “Cada frase foi escrita com muita dificuldade. Lembro-me de passar muito tempo diante da folha e, no fim do dia, ter duas, três frases, não mais”, conta. Encerrado o processo que durou um ano, ainda não considerava que estava diante de um livro. “Foi só mais tarde, quando percebi que nunca poderia escrever algo que se lhe comparasse, que me apercebi do quanto se tratava de um texto único. Então, decidi publicá-lo.”

Obra do autor português foi tema de trabalhos na área de psicanálise Foto: Patrícia Pinto/Divulgação

O primeiro capítulo saiu no suplemento juvenil do Diário de Notícias, em 1997. Depois, a versão integral seria incluída na Colectânea de Textos Jovens Criadores 98. Em 2000, Peixoto bancaria uma edição de autor porque não queria que a obra precisasse da aprovação de nenhum editor - e eles vieram com o tempo. Nesses 15 anos, foram 20 edições em Portugal, o que representa cerca de 80 mil exemplares vendidos. Morreste-me foi lançado também em francês, espanhol, catalão, inglês, italiano e croata. “Este livro tem se mantido sempre por demanda dos leitores. Não sou capaz de fazer uma avaliação fiel dos resultados, mas creio que tem muito que ver com a identificação que as pessoas que já perderam alguém encontram nessas páginas. Além disso, hoje em dia, não é fácil encontrar livros que não tenham medo de falar sobre a morte”, comenta. 

Peixoto não teve medo de mergulhar nesse luto, de se apresentar menino diante de sua dor e de se mostrar homem diante da situação do pai: “Pai que nunca te vi tão vulnerável, olhar de menino assustado perdido a pedir ajuda. Pai, meu pequeno filho”. O autor tampouco tem medo de encarar esta sua primeira obra. Em 2012, ele fez uma leitura integral de Morreste-me e emocionou o público que lotou a Casa de Cultura de Paraty, numa programação paralela à Flip. E, desde a semana passada, viaja pelo País para divulgar o lançamento. Nesta quinta-feira, 7, ele participa de debate com a escritora Paula Fábrio, cujo próximo romance, Ponto de Fuga (título provisório), tem temática similar. 

Voltar ao livro, diz o autor, continua o emocionando. “Por mais tempo que passe, nunca me consigo alhear daquilo que aquelas palavras transportam. Ainda assim, essa relação está em constante mudança. Hoje, muitas vezes, quando digo ‘pai’ sou eu o pai ou, às vezes, esse pai são os meus filhos. O amor, no entanto, é o mesmo.” Um ano depois de perder o pai, nasceu João, o primogênito de Peixoto. André, o caçula, tem 10 anos.

Para o autor, escrever, pensar e falar sobre a morte é, em primeiro lugar, uma forma de contribuir para uma reflexão sobre a vida e prestar atenção em temas fundamentais como o tempo e o amor, entre outros. “Vida e amor”, ele responde, é o que o interessa na literatura. “Para mim, a literatura é cartografia invisível. Por meio dela, tentamos encontrar sentido, referências para não nos perdermos do essencial. Ela dá proporção, equilibra a memória, limpa o pensamento”, completa.

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Depois de Morreste-me, Peixoto lançou Nenhum Olhar, venceu o Prêmio José Saramago e resolveu assumir que era escritor. Lançou, ainda, entre outros, Uma Casa na Escuridão, Cemitério de Pianos e Livro. “Existe um antes e um depois muito claros marcados pela escrita desta obra. Essa mudança acompanha a grande alteração que aconteceu na minha vida com a morte do meu pai. Ainda fico impressionado ao lê-lo e ao constatar como ele condensa muitos dos temas essenciais daquilo que tenho desenvolvido no que escrevo. Sinto muita alegria por ter escrito este livro nessa idade. Foi uma ajuda enorme e permitiu que me organizasse e clarificasse aquilo que me importa”, diz.

Nascido em 1974, em Galveias, Peixoto é um dos principais autores portugueses de sua geração. “Tenho muita pena que meu pai nunca tenha imaginado que, um dia, eu me tornaria escritor. Sempre que alcanço alguma realização com meus livros, sinto sempre essa falta”, confessa. E, a certa altura do livro, o narrador diz: “Pai. Nunca envelheceste, e eu queria ver-te velho, velhinho aqui no nosso quintal, a regar as árvores, a regar as flores. Sinto tanta falta das tuas palavras. Orienta-te, rapaz. Sim. Eu oriento-me, pai. E fico. Estou”. SENSIBILIDADES LUSÓFONASLivraria Martins Fontes. Av. Paulista, 509. Quinta, dia 7/5, 19h30. Com José Luís Peixoto, Paula Fábrio e Antonio Xerxenesky (mediação)

MORRESTE-MEAutor: José Luís Peixoto Editora: Dublinense (64 págs.; R$ 29,90)

Confira trechos da obra

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"Regressei hoje a esta terra agora cruel. A nossa terra, pai. E tudo como se continuasse. Diante de mim, as ruas varridas, o sol enegrecido de luz a limpar as casas, a branquear a cal; e o tempo entristecido, o tempo parado, o tempo entristecido e muito mais triste do que quando os teus olhos, claros de névoa e maresia distante fresca, engoliam esta luz agora cruel, quando os teus olhos falavam alto e o mundo não queria ser mais que existir. E, no entanto, tudo como se continuasse." "Olhávamos-te sem poder falar. Faltava muito para a hora do medicamento, pai. Faltava em nós o que aprendemos de ti, a força. E o quarto ficava com a doença e não a fechava, estendia-a por toda a casa e tudo o que se podia tocar. Do quarto, o cheiro escuro podre da doença. O cheiro que ainda hoje senti no quarto abandonado só. Abri as gavetas da cômoda, procurei-te, abri as portas do armário." 

"Cheguei onde sei que estás, onde ficas, ficaste; onde estás sob uma campânula de tempo cristalizado, tempo que não passa, mármore. Tem o teu nome, pai. O teu nome importante, pai. Escrito para sempre, como as nuvens, como as coisas que não morrem."

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