Kazuo Ishiguro declara que fantasia e realidade se relacionam bem

O escritor nipo-britânico falou sobre fragilidade humana em entrevista ao ‘Estadão’

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Foto do author Ubiratan Brasil

O escritor nipo-britânico Kazuo Ishiguro já havia escrito um terço de um novo romance quando sua rotina virou de ponta-cabeça – era 2017 e ele se tornara o novo ganhador do Nobel de Literatura. Durante um ano, portanto, até o anúncio de um novo vencedor, Ishiguro se preocupou apenas com viagens, entrevistas, feiras literárias. Quando finalmente retornou ao projeto inicial, não mudou uma linha do que já tinha produzido.  “Passo um longo tempo estruturando antes de começar a escrever. Então, no momento em que comecei, eu tinha uma ideia muito clara de como o livro seria, o formato da história”, comenta ele sobre Klara e o Sol, romance que terá lançamento mundial nesta terça, 3 – no Brasil, chega pela Companhia das Letras na quinta, 5. Ishiguro concede uma entrevista exclusiva ao Estadão, por Zoom, desde um quarto pequeno de sua casa, em Londres. 

O escritor nipo-britânico Kazuo Ishiguro Foto: Andrew Testa/The New York Times

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No local, é possível ver uma estante de livros, onde repousa, entre outras obras, a de sua filha, Naomi, intitulado Escape Routes (Rotas de Fuga), seleção de contos com temas fantásticos – nada surpreendente quando se observa a singular carreira literária do pai, que utiliza enredos típicos de ficção científica apenas como uma sedutora ferramenta. É o caso de Klara e o Sol. A protagonista é um robô movido a energia solar que vive em uma loja, à espera de ser adquirida por uma família humana. Klara, na verdade, é um modelo do tipo Amigo Artificial, com a função básica de fazer companhia para pessoas que sofrem de algum tipo de solidão. Mas, embora já existam robôs com tecnologia mais sofisticada que a dela, Klara revela-se única por apresentar impressionantes habilidades de observação, estudando com cuidado o comportamento de seus potenciais compradores. Até que surge Josie, menina que se interessa vivamente por Klara e convence a mãe a comprar o robô. Josie, no entanto, tem a saúde frágil e a escrita delicada e nada impositiva de Ishiguro faz o leitor refletir se Klara, mais que uma companhia para a menina doente, será, na verdade, uma possível substituta como filha para a mãe desalentada.

“Para mim, é natural escrever com o tipo de voz narrativa de Klara”, comenta Ishiguro. “Ela é uma estranha, pois nem mesmo humana é e, no início, Klara nada sabe sobre o mundo dos homens, embora tenha a habilidade de aprender muito rapidamente. Isso é perfeito para o estilo que sempre utilizei: alguém que está levemente de fora e cuja relação com as emoções dos seres humanos é levemente desconectada, embora muito emotiva. Klara me permitiu trabalhar com um personagem que é, ao mesmo tempo, muito sofisticado, com inteligência superior, mas, ao mesmo tempo, revela-se muito infantil e até ignorante sobre alguns assuntos, o que a leva a ter conclusões que somente um animal ou uma criança pequena teriam.” Elogiado pelo jornal The New York Times como o mais profundo observador da fragilidade humana na era tecnológica, Ishiguro se concentra, em seu novo livro, em um detalhe importante: mais que a busca por uma superinteligência, Klara quer criar e aprimorar sentimentos – especialmente em relação aos humanos. “Essa é uma das primeiras lições aprendidas por Klara: não se pode acreditar nos humanos de olhos fechados, deve-se observar com muito cuidado, pois situações que acontecem na superfície encobrem, muitas vezes, outros sentimentos.” Nesse momento, a conversa leva a outro questionamento: o amor verdadeiro pode ser substituído pela tecnologia? “É uma ideia desafiadora que está no cerne da trama”, responde Ishiguro. “A sugestão de que possivelmente você pode substituir um membro da família em caso de morte porque o Amigo Artificial tem toda informação necessária, portanto, não há nada do que sentir falta, há dados suficientes para que você continue tendo a mesma sensação de presença, para tudo isso eu não tenho uma resposta. Mas acho que é algo interessante para se pensar, não intelectualmente, mas emocionalmente: o nosso amor pelas pessoas poderia funcionar dessa forma, uma vez que há chance de reposição?” De uma certa forma, Ishiguro tocou nessa ferida em Não Me Abandone Jamais, de 2005, triste, mas belíssima fábula sobre três jovens (Kathy, Tommy e Ruth) que são clones criados para doar todos seus órgãos a quem precisa, ou seja, não passam de servidores de peças de reposição. Mas, a partir do triângulo amoroso formado, Ishiguro fala da existência, especialmente da solidão. “Eu era bem mais jovem quando escrevi esse livro, que tem uma atmosfera muito gélida e triste. Acho que, à medida que envelheci, eu me animei e queria quase que escrever uma resposta a Não Me Abandone Jamais. Eu buscava uma resposta à tristeza daquele livro, algo que tivesse um pouco mais de otimismo e esperança.” Curiosamente, Klara e o Sol foi pensado, no início, como um livro para crianças de 4 ou 5 anos. O escritor comentou sobre a trama com a filha Naomi, que trabalhava em uma livraria e entendia de obras dedicadas para aquela idade. “Esse livro não é apropriado para crianças pequenas. É muito triste e traumatizante”, disse ela, o que desestimulou o pai. O fio da meada surgiu por acaso, quando Ishiguro viajava certa noite por uma escura estrada rural inglesa, ao lado da mulher, Lorna MacDougall. No meio de uma conversa sobre ideias que poderiam resultar em livros, surgiu uma de suspense, sobre uma pessoa que, ao retornar para a casa da família depois de uma longa ausência, tem a estranha sensação de que seu irmão é um robô. “Pensei então que, em vez de uma boneca ou um animal de brinquedo, minha história poderia ser sobre um brinquedo adulto, como um robô”, relembra Ishiguro, dizendo que, nesse momento, se interessou em incorporar elementos de Inteligência Artificial, mas sem perder a inocência infantil. “De muitas maneiras, Klara, em vez de vir do mundo dos androides como o de Philip K. Dick, tem mais em comum com ursinhos de pelúcia e bonecas, que são os personagens principais no mundo das criancinhas. Ela tem o tipo de lógica estranha desse ambiente infantil. Como não tem muitas evidências, especialmente no início, Klara tira conclusões muito estranhas, como a de que o sol pode curar pessoas na rua quando elas colapsam. A literatura para crianças pequenas permite coisas assim – você pode ter a Lua falando como uma pessoa e, utilizando uma escada, você chega até ela.” Embora ambientado em um futuro incerto, o livro reflete angústias atuais, como o fato de empresas de tecnologia conseguirem cada vez mais mapear o desejo e o comportamento das pessoas, algo que Klara faz muito bem apenas pela observação. “Se vivemos em um ambiente em que o Big Data pode nos rastrear e prever o que desejaremos amanhã, o mundo realmente mudou o modo como olhamos uns aos outros. Mas, embora não seja religioso, acredito na existência de algo como a alma, que nos torna especiais e individuais. Assim, por amar muito minha mulher e minha filha, eu não seria capaz de substituí-las.”

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