Lacan era péssimo motorista, mas não por uma questão de coordenação motora, já que as habilidades como dançarino e desenhista evocavam admiração. Arrumava a biblioteca pessoal com um sistema peculiar e indecifrável ao outro, mas encontrava o livro que quisesse com facilidade. A carta ao pai – “meu querido paizinho” – é endereçada com afeto: “seu filho grande que te ama”.
Bernard Clavreuil, o livreiro de Paris, lembra dos cabelos azulados – “seus olhos formidáveis e aquela cabeleira um pouco ridícula”. Ele fala de Jacques-Marie Émile Lacan (1901-1981), que morreu sem saber que Clavreuil guardou, por mais de 40 anos, um exemplar de sua tese de doutorado em psiquiatria com anotações feitas por Salvador Dalí.
Passados mais de 40 anos da morte de Lacan, o que mais pode ser dito sobre o psicanalista francês costumeiramente mitificado e reduzido às batidas caracterizações de uma genialidade excêntrica e aversiva? A julgar pelas informações que abrem este texto, extraídas do livro Lacan redivivus, lançado no Brasil pela Zahar, ainda há muito a conhecer sobre este pensador do século 20. O homem endeusado ou execrado não resiste às minúcias de sua singularidade, e o que emerge é um sujeito dividido, que escapa aos significantes que tentam aprisioná-lo.
Restauração da memória de uma figura complexa
Das 624 páginas depura-se que a proposta dos psicanalistas Jacques-Alain Miller e Christiane Alberti, que organizam a obra, não é meramente acrescentar ao que já se sabe; é, antes de tudo, uma restauração da memória e uma tentativa polifônica de captura da complexidade do homem Lacan por meio de registros cotidianos e íntimos. É um exercício biográfico livremente estruturado sobre manuscritos, cartas, escritos inéditos, depoimentos de familiares, analisandos e colegas, tornados públicos só agora, e tendo como fios condutores a curiosidade, a contradição e a surpresa.
Aproximamos de um Lacan que é avô, pai, filho, amigo, colega, amante e participante ativo dos acontecimentos de sua época. Não é a primeira empreitada biográfica dedicada ao psicanalista, e em vários momentos, sob diferentes vozes, há reações de reprovação ao retrato conduzido pela historiadora francesa Elisabeth Roudinesco, que, segundo Alberti, pinta a imagem de um “excêntrico ávido por poder e dinheiro”.
A ambição de Lacan era o trabalho, argumentam os entrevistados e também uma carta que já demonstrava a obstinação na infância. Sobretudo a tarefa clínica, expressa nos atendimentos na Rue de Lille, número 5, e na apresentação de pacientes no Hospital Sainte-Anne, ambos em Paris. Ele tinha “uma disponibilidade integral ao sintoma do outro”, destaca Alberti, que é presidente da Associação Mundial de Psicanálise (AMP) e membro da Escola da Causa Freudiana.
A dedicação era irrestrita também à transmissão da psicanálise, em seminários que reuniam nomes ilustres como Claude Lévi-Strauss, Jean-Claude Milner e Émile Benveniste. As articulações orais, que começaram com cerca de 12 cadeiras em um salão no número 3 da Rue de Lille, passaram a ser disputadas e rendiam interesse de intelectuais de diferentes campos das ciências, mas foi com os trabalhos escritos que Lacan explicitou sua autoria e atingiu um público mais diversificado.
Curiosamente, a filósofa francesa Judith Miller, fruto do casamento de Lacan com a atriz de cinema Sylvia Bataille (nascida Sylvia Maklès), escrevera uma carta ao pai sugerindo que ele, à época com 62 anos, já devesse publicar suas ideias. Mas a prioridade de então era o consultório e o hospital.
“Quando ele dava um grito, eu dava outro”
Gloria González, que por mais de 30 anos dedicou-se à assistência de Lacan em seu trabalho, foi a principal testemunha do dia a dia, bem como depositária de confiança integral, inclusive no acompanhamento das finanças. Ela lembra que “o dr. Lacan fazia seus pacientes pagarem, é normal, mas não era alguém que amasse o dinheiro. O dinheiro ele me entregava. Se amasse dinheiro, ele o teria contado todas as noites para saber o quanto ganhava e teria guardado suas notinhas”.
A relação entre os dois, aliás, garante alguns dos momentos mais divertidos e afetuosos do livro e ilustra os efeitos de um relacionamento firmado pela recusa de Gloria em ser intimidada pelo chefe. “Eu sim, era um pouco doidinha. Eu não era muito fácil, mas ele também não. Quando ele dava um grito, eu dava outro.”
“Tudo o que está aqui publicado me causa horror”
O livro caracteriza momentos agudos da vida de Lacan, como quando ele foi proibido de formar analistas na Sociedade Francesa de Psicanálise, de onde era membro, especialmente sob o argumento de que suas sessões curtas seriam problemáticas. Sua deposição como analista titular, feita por colegas e amigos, vinha de uma imposição da Associação Psicanalítica Internacional.
Jacques-Alain Miller relata que a ausência de palavras exprimiu o desgosto de Lacan com a decisão, nomeada por ele como uma “excomunhão”. Diante do silêncio, Miller foi atrás dos documentos da época e publicou o assunto na revista Ornicar?. Pediu um prefácio a Lacan, que apenas escreveu “tudo o que está aqui publicado me causa horror.”
Outro assunto abordado com detalhes é o pedido de Lacan para que Miller cuidasse da publicação dos seminários. O fundador da AMP e diretor do Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII ficou encarregado, nos anos 70, de sistematizar a obra após a festejada entrega de um índice de conceitos, conforme depoimento de Judith, que se casou com Miller em 1966.
Dentre os matizes menos prestigiosos, há uma incisiva e compreensível carta da psicanalista austríaca Melanie Klein cobrando de Lacan a promessa de traduzir seu livro “Psicanálise das crianças”. Apesar de o interesse ter partido do psicanalista francês, Klein ficou meses sem notícias. “Estou muito surpresa que o senhor tenha não só não me mantido informada sobre os encaminhamentos da questão como nem sequer respondido à minha carta.”
Os relatos de sonhos e as trocas de cartas com discussões pormenorizadas dão a dimensão do caprichado trabalho de tradução do livro, feito por Vera Avellar Ribeiro, Gustavo Menezes, Camila Popadiuk e coordenado por Teresinha N. Meirelles do Prado. Há, ainda, o texto inédito “Questionamento do psicanalista”, possivelmente datado de 1963.
De volta às origens da psicanálise
Plural tanto quanto são as possibilidades de um sujeito e de propostas teóricas, o campo da psicanálise tem um antes e um depois de Lacan, com especial ênfase ao papel da linguagem na escuta do sofrimento. O psicanalista francês fez-se notado a partir de sua enfática convocação a um retorno às bases de Freud quando este era descartado por não servir às intenções da cama de Procusto praticada à época: uma psicanálise que supostamente adaptava o sujeito ao mundo e produzia, sob tratamento, “uma melhor versão de si”, o controle da felicidade e do mal-estar, em um procedimento de encaixe que claramente ignorava a primazia do inconsciente e seus efeitos.
É importante frisar que o retorno a Freud não implica uma continuidade ou correspondência de conceitos. Especialmente nas décadas de 60 e 70, Lacan criou noções e difundiu uma prática clínica que apresentava novas possibilidades de pensar a constituição do sujeito desde seu nascimento e seus processos psíquicos ao longo da vida, além de estabelecer uma ética fundamentada no desejo do paciente. Sua obra, que atravessa as décadas de 1930-1980, serviu-se dos mais distintos saberes, como a linguística estruturalista, a filosofia e a matemática, para pensar a psicanálise, sem descuidar das fronteiras inerentes a cada campo e das diferenças entre seus objetos de estudo.
A herança intelectual deixada configura um instrumento de trabalho bastante vasto: com suas teorias podemos pensar o sofrimento humano, os sintomas, a cultura, a política, a linguagem, o neoliberalismo, o racismo, a violência, a educação, o direito, a digitalização da vida, a arte. É fundamental sua contribuição para o tratamento das psicoses e sua diferenciação psicopatológica; seu legado constituiu motor de descobertas feitas por outros psicanalistas, como a pioneira brasileira Neusa Santos Souza, cujo livro A psicose ganhou nova edição, também pela Zahar.
Cabe perguntar sobre a pertinência do interesse por perfis de figuras históricas: seria uma busca por identificações e confirmações? É uma possibilidade, especialmente se considerarmos um dos significantes mais robustos de nosso tempo: influenciadores.
Estivesse vivo agora, o Lacan alçado ao posto de influenciador acumularia decepções entre seus seguidores por caminhar em margens indefinidas e ser impermeável aos depósitos de expectativas. Sempre haveria um furo nesta suposta comunhão entre admiradores e admirado, o que não necessariamente implica sacrifício de sua excepcionalidade.
Mas um livro sobre Lacan é também um livro sobre a história da Psicanálise e sua produção contínua de significantes, que podem invocar um mestre, em princípio, mas acabam revelando o esvaziamento da autoridade em nome do inescapável reconhecimento das falhas, faltas e arestas. Ler sobre Lacan trouxe algumas luzes? Algumas luzes e algumas sombras.
Serviço
Lacan Redivivus
- Zahar
- Organização: Jacques-alain Miller e Christiane Alberti
- Tradução: Teresinha N. Meirelles do Prado, Vera Avellar Ribeiro, Gustavo Menezes e Camila Popadiuk
- 624 Páginas
- R$ 179,90 (impresso)
*Amanda Mont’Alvão Veloso é psicanalista e autora de Psicanálise e contradição: o conflito na ponta da língua (Dialética)
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.