Como o último pedido da mãe originou o novo livro de uma das maiores escritoras portuguesas

A mãe de Lídia Jorge queria que ela escrevesse um livro chamado ‘Misericórdia’, mas ela não queria. No último encontro entre as duas, numa casa de repouso em Portugal, ela pediu mais uma vez. Veio a covid-19. Maria Alberta foi uma das milhares de vítimas. O romance está pronto

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Foto do author Ubiratan Brasil

Durante três anos, a escritora portuguesa Lídia Jorge ouviu o mesmo pedido da mãe: escrever um romance que tivesse o título de Misericórdia. Ao mesmo tempo, Maria Alberta Nunes Amado registrou em áudio histórias e pensamentos durante o período em que viveu em um lar de idosos de Loulé, cidade no sul de Portugal.

Lidia Jorge, autora de 'Misericórdia'. Foto: Franck Ferville

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Apesar da resistência da filha (“um título tão solene, tão ontológico, tão religioso”), a mãe insistiu, especialmente na última vez que se viram, em 8 de março de 2020, que era importante esse livro, “para que as pessoas sentissem compaixão umas das outras”. Maria Alberta, assim como outros pacientes, foi vítima da covid-19. Ao receber alguns objetos da mãe, como o depoimento captado em um pequeno gravador de pilhas, Lídia decidiu assumir o compromisso - não para honrar quem tinha partido, mas os que tinham ficado.

Assim, com uma escrita que une ficção e realidade, Misericórdia (lançado agora pela Autêntica) narra a história de dona Alberti (Maria Alberta é seu nome), que foi levada para um “lugar de exílio”, ou seja, transferida de sua casa para um lar de idosos, o antigo Hotel Paraíso, agora reconvertido. Lá, ela grava suas impressões sobre o cotidiano.

Uma das personagens da trama, que cria um laço sentimental com Alberti, é uma cuidadora jovem, que veio do norte do Brasil e está grávida. Assim como ela, outras personagens que trabalham na casa de repouso são latinas e algumas cenas da obra revelam bastidores de maus tratos aos idosos indefesos.

'Misericórdia', de Lidia Jorge. Foto: Divulgação | Editora Autêntica

Lídia destaca a problemática questão migratória em Portugal e as condições de trabalho precárias oferecidas aos estrangeiros, especialmente para os brasileiros. “Minha intenção primeira era a de mostrar a batalha pela vida que existe nesses locais. Mas, ao reconstituir a rotina de uma dessas instituições, sem ser minha intenção, acabei por descrever situações que acontecem, que são penosas e que merecem ser corrigidas”, disse ela ao Estadão, em entrevista pelo Zoom.

Como foi o processo de criação de ‘Misericórdia’?

O início foi difícil, pois minha mãe pediu-me durante três anos para eu escrever um livro com esse título. Um pedido um tanto extravagante, sobretudo porque o título me parecia algo de natureza religiosa, ontológica, filosófica. Jamais teria passado pela minha cabeça escrever um livro assim. Mas, quando encontrei os elementos suficientes, iniciei, digamos, uma espécie de homenagem. À medida que o luto passava, era como se a literatura fosse um local de resgate. Aliás, o (sociólogo Roland) Barthes dizia que a literatura nesse campo é um lugar de nobreza e, mesmo sendo crítica a seu trabalho, um livro dele, Journal de Deuil, que me foi enviado por um amigo, teve uma importância extraordinária neste processo. Percebi que aquele homem, que tinha uma visão desidratada da literatura, escreveu um texto que eu jamais teria coragem de fazer, que é uma espécie de relato lamurioso pela falta da mãe. Foi quando decidi fazer um livro diferente do que já fiz, tirando o peso de ser uma homenagem para se transformar em um ser vivo, isto é, algo com estrutura própria.

Como foi utilizar as gravações deixadas por sua mãe?

Eu joguei com dois tipos de materiais, o áudio, onde a voz era clara, mas, como a minha mãe já não tinha força nos dedos, muitas vezes eram registros sincopados. E com papéis. Minha sorte é que a minha mãe deixou escritas as últimas folhas sobre o último ano. Ela sempre escreveu um diário e, no final, no último ano, já não conseguia tão bem. Então eu levava pequeninas folhas e ela escrevia apenas frases. Ora, também foi um ano muito agitado na minha vida e eu fazia minhas próprias notas e misturava com as dela. Juntei tudo com as conversas que tive com ela e transformei naquela espécie de pequenos poemas, que encerram alguns capítulos. Misturei, digamos, com aquilo que era a memória da voz. Foi um trabalho que me levou seis meses, mas que fiz como uma espécie - vou utilizar a palavra - de triunfo.

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A senhora precisou alinhar o luto com a escrita?

É muito estranho, não é? Porque é um momento de luto, de perda, e eu o transformei em um momento de aquisição do valor do que eu tinha aprendido, não só com aqueles idosos, mas sobre a existência, sobre o fulgor da vida que as pessoas querem manter até o fim. Então, fiz esse trabalho e, digamos, acabei o livro com uma espécie de alegria, como se tivesse cumprido uma tarefa. O livro não traz em uma narrativa triste ou mórbida. É uma espécie de um teatro corretivo sobre um grupo de pessoas que carregam a memória do mundo e ali se juntam. E fazem das suas últimas memórias, dos seus últimos conflitos, uma espécie de síntese da batalha da vida, da batalha humana. Vi que havia recordação, não melancolia. Aliás, posso contar uma história curiosa? Um dos momentos mais tocantes, que é contado no livro, aconteceu quando aquelas pessoas já infectadas souberam que o (ex-primeiro ministro britânico) Boris Johnson também tinha se infectado com o coronavírus. Justamente no momento em que se tinha, especialmente na Inglaterra, uma visão darwiniana de que a infeção eliminaria os mais frágeis. Então, aquelas pessoas, mesmo doentes, se levantaram na medida do possível e dançaram, dizendo “o Boris Johnson é que vai morrer e nós vamos continuar a viver”. Era como uma vingança. Minha mãe me telefonou, era noite, e disse: “estamos muito felizes porque ele é que vai morrer e nós não”. Isto é uma maldade, mas, ao mesmo tempo, revela uma alegria de viver e de se ter esperança.

É por isso que a senhora não concorda quando tratam ‘Misericórdia’ como um livro sobre a velhice?

Sim, não escrevi sobre a velhice, escrevi sobre a condição humana da resistência e da esperança, da compreensão. Escrevi sobre a reação das pessoas quando sentem a perda do domínio físico, do domínio mental, da memória, e como fazem para se recuperar, para se manter, como continuar e como não se entregar.

Misericórdia

  • Autora: Lídia Jorge
  • Editora: Autêntica Contemporânea (384 págs.; R$ 74,90 e R$ 52,90 o e-book)

Leia abaixo um trecho do livro Misericórdia

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“Mantive-me deitada à espera que as horas passassem e que a palavra que achei e logo perdi, durante o combate com a noite, surgisse naturalmente no meu pensamento, e ouvia os pássaros cucos lá fora, e o crocito dos melros, e alegrava-me com a ideia de que a Primavera tivesse chegado. E percorria em imaginação as páginas do meu Atlas antes de ter sido destruído, folheava-o na minha mente sem pressa alguma. Pois se o nome do país de que é capital Baku não surgisse ao longo da manhã, haveria de chegar no decorrer da tarde. Eu sou daquelas pessoas que não pensa que a esperança é a última a morrer. Eu penso que a esperança é simplesmente imortal. Aquele nome ausente, com o qual ficou interrompido o confronto com a noite, haveria de surgir quando menos esperasse. Confio por inteiro nas leis do pensamento. Elas me guiam e me dão paz.Por isso, sabendo de antemão que a palavra que procurava haveria de aparecer por si própria, fiquei à escuta de como a manhã se manifestava cá dentro, à medida que os pássaros no exterior abandonavam as abas das casuarinas e os ruídos domésticos, oriundos do próprio serviço da casa, se cruzavam entre si. Por razões que desconheço, por vezes o meu travesseiro funciona como um altifalante. Muitos dos sons ao chegarem à almofada ampliam-se sob a minha cabeça. Assim, ainda cedo, percebi que a carrinha dos víveres se aproximava em rodado manso, depois parava e partia. O camião das águas roncou vergonhosamente junto ao portão de entrada, e o que me parecia ser uma bilha de gás rolou pelo pavimento com estrondo. Como não bateu na parede dos canteiros, alguém o terá impedido. Quem a terá segurado? A buzina de um carro apitou, um silvo agudo, por descuido, certamente. Uma rapariga bradou a partir de uma janela, o que não deveria acontecer, e algumas já foram despedidas por gritarem mais baixo. Os berros da rapariga de resposta ao som do cláxon foram tão agudos quanto ele. Quem teria sido ela?”

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