Várias designações poderiam vir antes do nome de Patti Smith: cantora, compositora, artista plástica, fotógrafa amadora, precursora do punk rock, performer, ativista. Mas aquela com que ela mais se identifica é: escritora. Linha M, publicado agora no Brasil, é o seu segundo livro de prosa – houve uma dúzia de coletâneas de poemas antes de Só Garotos, que venceu o National Book Award em 2010 – e, diferente do primeiro, é mais voltado para o presente. O seu grande trunfo é justamente ser inclassificável: uma ode à solidão, um diário de viagem, um relato de suas peregrinações pelos túmulos de autores amados e pelos cafés do mundo, um delicado memorial de seus parentes mortos e, até mesmo, um livro de memórias.
Se em Só Garotos ela partiu de uma promessa feita para o amigo e fotógrafo Robert Mapplethorpe, em Linha M ela saiu, basicamente, da própria cabeça. Em uma conversa com o Estado na tarde de quinta-feira, 7, por telefone desde Paris, onde está para divulgar a edição francesa, ela: refletiu sobre o livro (que fez Michiko Kakutani escrever no The New York Times: “uma eloquente e profundamente comovente elegia para o que ela perdeu e não pode encontrar mas pode lembrar em palavras”); falou sobre Roberto Bolaño; chamou Donald Trump de “idiota”; e prometeu vir ao Brasil logo com a turnê dos 40 anos de Horses.
Só Garotos partiu de uma promessa, mas Linha M vem de outro lugar... onde?
É parcialmente de um sonho, parcialmente de meu próprio lugar. Ninguém me pediu para escrever, eu não tinha um plot. É por isso que é chamado M Train, mental train, mind train, eu só quis ver aonde eu iria. As coisas que me interessaram. Escrevi, todo dia, acumulando, e ele se tornou uma jornada.
Podemos dizer que Só Garotos é um livro sobre o passado e Linha M é sobre o presente?
Sim, pelo que posso dizer. Mas também Só Garotos é um livro que Robert me pediu para escrever, tinha uma grande responsabilidade, e em Linha M eu estava tentando ficar no presente. Enquanto escrevia, percebi que isso é meio impossível, porque a mente fica se movendo para frente e para trás, então é claro que falo do meu marido (Fred Sonic Smith, que morreu aos 45 anos em 1994), das coisas que aconteceram nas nossas vidas, no passado. O livro dá o melhor retrato do que minha vida é agora.
Então você conseguiu viver em um livro enquanto o escrevia, certo? Como foi?
Como escrevo o tempo todo, é natural. Escrevo, nem sempre publico. Como também sou uma cantora de rock, algumas pessoas imaginam minha vida como sendo algum circo do rock n’ roll, e realmente não vivo assim, tenho um estilo de vida simples. O livro então é um retrato mais verdadeiro do que a é a vida de uma escritora.
A literatura é sua primeira profissão hoje em dia?
Sempre foi, quer eu publicasse ou não. Escrevo todo dia. Não canto, componho ou me apresento todo dia, mas escrevo. É assim há muitos anos. Minha vocação é ser escritora.
E a leitura? Você escreve com paixão sobre Roberto Bolaño...
Claro, ele é um dos mais importantes do século 21. Totalmente. 2666 é a primeira obra-prima do século. Ele nos deu isso enquanto estava morrendo, é trágico. A gente só pode sonhar sobre o que ele teria escrito, porque seu último trabalho foi essa obra-prima. É triste para mim que nós o perdemos, mas somos sortudos de termos o trabalho que ele deixou.
Você comenta que passou dois anos lendo e desconstruindo o 2666... como foi isso?
(risos) Era minha preocupação de estudo, mas eu também estava em turnê. Eu visitei a família dele, de fato seu filho tocou guitarra com a gente em algumas noites. Eles vivem em Blanes, uma cidade muito legal no litoral da Espanha. Eu fotografei a cadeira de Bolaño (a foto, junto com diversas outras de Patti Smith, está em Linha M).
E o poema para Bolaño (Patti escreve que estava trabalhando num poema de 100 versos para Bolaño, como uma hecatombe)?
Eu concluí o poema. Estou finalizando um livro de poemas, e esse será o principal. Foi um desafio, e como era para Roberto eu queria que fosse tão bom quanto eu poderia fazer.
Um dos temas de Linha M é a sua mudança para Rockaway Beach (uma praia ao sul de Nova York, que sofreu muito com o Furacão Sandy, em 2012). Como está sendo a nova vizinhança?
A casa é maravilhosa. É um pequeno bangalô, perto do mar. Tem apenas um quarto grande, não tem nenhum armário. Tem uma abóbada. Tenho uma mesa legal, na qual posso escrever, uma cama. É tudo de que eu preciso, bem simples, bem perto do trem e do mar. É muito inspirador. Todos os cafés foram destruídos pela tempestade, e as pessoas ainda não conseguiram reconstruir. No verão, isso vai acontecer. No inverno, o clima é meio difícil, então eles também fecham. Talvez eu tenha que abrir o meu próprio café por lá.
Há dois desastres naturais presentes em Linha M, o Furacão Sandy e a tsunami no Japão em 2011. Você acredita que esses desastres agem, no livro, na contra mão da sua consciência interior?
De verdade, eu diria que sim. Ambos tiveram um efeito profundo em mim. Quando fui para o Japão no pós Tsunami foi tão chocante ver tanta destruição. E o que vi do Sandy, que foi terrível, parecia quase pequeno comparado com o que aconteceu lá. A perturbação e o caos da natureza é algo que contemplei profundamente. Porque a humanidade faz guerras, bombas, mísseis, e todo o tipo de armamento destrutivo, e a natureza pode vir e em cinco minutos destruir cidades inteiras, matar milhares de pessoas, centenas de milhares. A natureza é tão poderosa e nós esquecemos isso. Nós realmente esquecemos como o seu imenso poder funciona. Muito disso estava na minha mente. Você pensa que é mestre da sua situação, mas uma tempestade como Sandy vem e destrói tudo ao seu redor. Você percebe como somos pequenos. Essas duas terríveis tempestades me deram muito o que pensar.
E como está a recuperação em Rockaway?
Está melhorando. Muita gente não tinha os recursos para reconstruir, então eles tiveram que ir embora. Algumas pessoas tinham colocado todo seu dinheiro nesses pequenos negócios e casas e cafés, mas não tinham o seguro que cobriria as grandes perdas que tiveram. Mesmo na minha casa, ninguém me deu o seguro porque ela era velha. Tive prejuízo de milhares e milhares de dólares, tive que pagar. Eu sou sortuda, porque pude trabalhar e ter o dinheiro, mas muita gente não. Nós fazemos o que podemos. Muitos ajudaram os vizinhos. Michael Stipe veio, foi nos porões das casas ajudar as pessoas a limpar o mofo, e ele nem conhecia as pessoas, nem mora lá. Então muita gente tenta dar aos seus vizinhos uma mão. Mas é um grande caminho, toda a costa, não apenas NY, a destruição parece sem fim. Tenho vivido lá por seis, ou sete meses. É uma casa bem simples. Tem azulejos da Cidade do México, que eles fazem artesanalmente e deixam secar ao sol, então meu piso é coberto pelos azulejos mexicanos, as paredes são brancas e eu tenho uma escrivaninha, a mesa do café, alguns livros, é tudo o que eu preciso, é muito legal.
Algumas das passagens mais comoventes do Linha M são aquelas em que você fala de Fred 'Sonic' Smith. Seu próximo livro vai ser sobre esse relacionamento?
Comecei meu novo livro, vai levar alguns anos ainda. Esse livro será como a irmã de Só Garotos, porque Só Garotos é o irmão, focado em Robert, e o próximo vai focar mais na minha própria trajetória, minha vida na música, o que me levou a criar canções, encontrar Fred. Espero que seja um livro que as pessoas vão querer ler.
A sua música tem uma carga política grande, mas quão interessada em política você está enquanto escritora?
Não estou interessada, não quero escrever sobre política, não quero que seja parte do meu mundo. Porque pela sua própria natureza quase todo os políticos são corruptos. Dificilmente existe uma pessoa no sistema político em que podemos confiar. Minha energia política, eu uso nas performances, nos shows, na vida pública, mas não quero que ela macule minha escrita. A não ser que sejam ideias abstratas sobre liberdade, ou talvez sobre pessoas sofrendo, mas não estou interessado em permear minha literatura com política. Sirvo melhor a essas coisas me apresentando ao vivo. Porque para mil ou cem mil pessoas, posso dizer coisas que são, espero, de algum valor, é bem mais útil e direto.
O que está acontecendo nos EUA para que uma pessoa como Donald Trump seja um concorrente sério à Casa Branca?
Infelizmente, isso está espelhando alguma mentalidade e frustração do povo dos EUA. Nós vivemos numa cultura dirigida por celebridades, pelas mídias sociais, e ele é a epidemia de tudo que está errado com essa cultura. É terrível pensar que muitos dos nossos cidadãos considerariam alguém como ele presidente, mas a verdade é que a média do povo americano não é muito sofisticada. Eles não têm a cabeça aberta, são muito preocupados com sua própria situação, não têm interesse no meio ambiente, no sofrimento de pessoas em outros países. Eles querem respostas para eles mesmos. Trump apela para essa mentalidade superficial e egocêntrica. Ele apela para o pior nas pessoas, sentimentos nacionalistas, frustração. É muito triste porque ele não se importa com as pessoas. Para ele, é como um jogo, é como estar na TV. É difícil.
Não só por causa dele, mas com todo o elenco. Não temos ninguém concorrendo que me faça sentir bem sobre as possiblidades. Que eu pense: ‘ok, essa pessoa vai ser capaz de atuar no jogo global, ou essa pessoa tem algum idealismo’. Ted Cruz é extremamente de direita, Donald Trump é um idiota, nossas escolhas estão pobres. Mesmo alguém como Hillary Clinton, quando ela era mais jovem, talvez fosse mais idealista, mas agora ela é basicamente um político. Que vai mudar de posição para servir às suas ambições políticas. Bernie Sanders, acho que ele tem boas intenções, mas ele não me atrai muito. Vamos esperar e ver. Não tenho certeza do que vai acontecer com o candidato democrata, as pessoas acham que vai ser Hillary, mas Sanders está se mostrando forte. Como as pessoas na direita estão frustradas com um certo tipo de político mentindo para eles e acham que Trump está falando a verdade, as pessoas na esquerda estão muito frustradas com Hillary como uma política. Mas nenhum deles é amado. Não há um senso de missão pelas pessoas. Estou estudando as possibilidades. Mas você sabe que não vou votar no Trump (risos).
É engraçado porque mudando os nomes você poderia estar falando do Brasil.
Sim, poderia ser sobre o mundo todo. É um momento muito ruim, eu acredito, para a política e os governos. Todos parecem ruins. As pessoas que estão no comando estão mentindo tanto, há tanta corrupção, e joguinhos. Eu não sei como isso aconteceu, nosso mundo parece que tomou uma estranha e escura guinada. Mas também sou uma pessoa otimista, não acredito que vai ficar assim. Estamos num período difícil, mas tenho que acreditar que as coisas vão ficar melhores, até para não ficar louca.
Vamos falar um pouco de música? Ano passado você fez a turnê de Horses. Como foi reviver todas aquelas canções, sobre injustiças, sobre um sentimento revolucionário jovem, depois de todos esses anos?
Eu realmente amei fazer a turnê do Horses. Eu não faria se não sentisse ainda um relacionamento forte com essas canções. Eu realmente gostei de fazer os shows, e fiquei muito feliz e orgulhosa de que tantas pessoas jovens vieram e cantaram com paixão. Eu me senti muito encorajada por isso. Se eu sentisse que não poderia oferecer essas canções de uma maneira autêntica, se não tivesse uma conexão verdadeira com elas, não teria feito. Mas me senti muito bem. Senti que a mensagem das canções, e do Horses, tem muito a ver com simplesmente uma declaração de independência, existência, de uma pessoa jovem, e sobre criar espaço para novas gerações. Eu senti que o álbum fez seu trabalho, fiquei feliz que novas geração estão abraçando.
Você está trabalhando em novo álbum, é isso?
Tivemos que tirar um tempo, porque meu baterista (Jay Dee Daugherty) foi diagnosticado com câncer na garganta. Ele é o baterista por 40 anos, tem passado pela quimioterapia, e acreditamos que ele ficará bem, mas vai tomar um tempo. Não estamos tocando ou gravando enquanto ele não se recuperar. Estamos trabalhando e escrevendo canções, mas eu quero que ele tome o tempo que precisar para se curar. Temos fé.
Além de Daugherty, quem está participando?
Minha banda, Lenny Kaye, Tony Shanahan. Meu filho Jackson vai tocar, estou escrevendo canções com minha filha Jesse. E amigos, Tom Verlaine vai tocar algumas guitarras, Flea vai tocar também. Talvez Michael Stipe me ajude com uma música. Eu estarei com 70 anos neste disco, quis que fosse não apenas um novo álbum, mas uma celebração da vida e algum tipo de declaração para esse tempo na minha vida. Vai ser importante, provavelmente meu último álbum com banda, então realmente quero pensar sobre o que estou fazendo, o que tenho que dizer. Vamos ver.
Há 11 milhões de pessoas te esperando em São Paulo (Patti nunca tocou na cidade, apenas no Rio e em Curitiba, em 2006). Venham quando puder.
Nós vamos! Tínhamos a intenção de ir à América do Sul, e ao Brasil, mais cedo, mas por causa da situação de Jay nós temos que esperar. Mas quando sentirmos que ele está bem, definitivamente é um dos destinos, eu prometo. Nós vamos levar os Horses.
LINHA M
Autora: Patti Smith
Tradutor: Claudio Carina
Editora: Companhia das Letras (216 p., R$39,90, R$27, 90 o e-book)
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