‘Literatura é o lugar de pessoas complicadas’, diz o escritor Jonathan Franzen

Um dos grandes prosadores norte-americanos, ele fala sobre ‘Encruzilhadas’, seu mais recente romance, que trata do dilema moral de uma família

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Foto do author Ubiratan Brasil
Atualização:
Foto: Janet Fine
Entrevista comJonathan FranzenAutor americano

Aclamado como um dos grandes nomes da atual literatura norte-americana, Jonathan Franzen exerce o ofício literário quase que com um fervor religioso, tamanho o cuidado com a escolha das palavras e seu poder criativo, especialmente no efeito que vai provocar na imaginação do leitor. É o que acontece com seu mais recente romance, Encruzilhadas, lançado agora pela Companhia das Letras.

São 600 páginas de um romance cuja ação se desenrola praticamente em um único dia (23 de dezembro de 1971) da história de uma família de Chicago que vive um momento de crise moral e religiosa. O pastor Russ Hildebrandt vai terminar um casamento infeliz com Marion, mulher que se volta para o catolicismo em busca de apoio. Clem, o filho mais velho, decidiu largar os estudos para lutar na Guerra do Vietnã. Já Becky, embora popular na escola, está flertando com a contracultura, e Perry, o caçula, vende drogas para alunos da sétima série, mas decidiu que quer ser uma pessoa melhor.

Personagens à beira de um precipício, cuja imperfeição conquista a simpatia do leitor graças à bela prosa de Franzen - seu uso astuto e inesperado da linguagem, a ressonância emocional trançada na narrativa, tudo impulsiona a narrativa. “A literatura é o lugar de pessoas mais complicadas”, disse ele ao Estadão por Zoom.

O escritor americano Jonathan Franzen, autor de Encruzilhadas, primeiro livro de uma trilogia Foto: Janet Fine

Autor de As Correções (2001) e especialmente de Liberdade, obra que, em 2010, lhe garantiu o título de “o grande romancista americano” conferido pela revista Time (que o destacou em uma de suas capas), ele falou direto de sua cozinha muito iluminada e simples em Santa Cruz, Califórnia, onde mora com a escritora e editora Kathryn Chetkovich.

Por que a religião te atrai tanto?

Acredito que isso surgiu a partir do meu engajamento com a religião e o ativismo pelo clima, pelo ambientalismo. Percebi que os padrões de pensamento do protestantismo cristão replicavam perfeitamente no discurso sobre o destino do planeta e nossas responsabilidades. E também a noção de um juízo final, de viver em um tipo de fim dos tempos. Foi isso que me fez começar a pensar no livro porque, há uns cinco anos, eu estava escrevendo sobre a situação climática e imaginando como pensar nisso, tanto como pessoa quanto como alguém comprometido com a conservação da natureza. Enfim, como tenho esse histórico com o cristianismo, tendo crescido em uma igreja, envolvido no grupo de jovens, e tendo admirado muito da ficção cristã, não foi difícil fazer essa conexão.

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Ao terminar de ler seu livro, vem a lembrança do início da história e a descoberta de como os personagens passaram por muitos altos e baixos. Você parece gostar de fazer o leitor se importar com pessoas imperfeitas.

As ficções mais interessantes são sobre personagens que são falhos. Há algumas maneiras simples de distinguir entre puro entretenimento, um tipo de cultura de massa, e o que pode-se chamar arte, ou literatura. Umas dessas maneiras é notar que a literatura é o lugar de pessoas mais complicadas. Não é sobre heróis e vilões, mas sobre o bem e o mal em cada um de nós. Não penso que esteja fazendo algo particularmente diferente, mas sei que não escrevo sobre heróis e vilões. Acredito que é divertido, é obrigatório ler sobre pessoas que erram. Se as pessoas não erram, é difícil escrever um romance, que trata de pessoas que fazem coisas que podem não ser boas para si, mas que sejam ruins para outras pessoas. Se não fossem as pessoas que erram, romancistas não existiriam.

Russ é um personagem cômico, mas por que tudo que ele faz é tão humilhante?

Tive algumas experiências como essas. Eu me senti humilhado por um grande números de coisas, especialmente quando adolescente. Parte do luxo de envelhecer é que sou mais difícil de ser humilhado da mesma forma. Honestamente, o que me lembro sobre os momentos em que me senti envergonhado, ou que fiz erros terríveis e me senti humilhado, são as memórias que realmente permanecem comigo. Não foi um grande passo para uma pessoa cujas humilhações têm significado espiritual. E, novamente, pode ser divertido ler sobre um personagem que sabe exatamente o que fazer sem errar, mas me parece muito mais divertido ler sobre pessoas que fazem tudo errado. E uma das razões é porque pode ser muito mais engraçado. A imagem de um cara que passa pela sala que tem uma casca de banana no chão: se você cria um personagem que vai escorregar, é divertido. É a maneira como a comédia funciona.

Capa do livro Encruzilhadas, de Jonathan Franzen Foto: Companhia das Letras

A trajetória de Marion é uma das partes mais intensas do romance, especialmente por seu enquadramento católico. Coisas terríveis acontecem em sua infância e ela se volta para o catolicismo em busca de consolo.

Eu não tinha nenhuma ideia específica para ela quando comecei a escrever o livro. Acho que tinha uma ideia ruim. Eu acreditava que ela era dedicada ao seu marido mesmo que ele estivesse procurando por outras mulheres, ou então que ela tentasse perder peso para ser mais atraente para o marido. E isso foi se desmanchando depois do primeiro capítulo, que trata do Russ, que é uma figura ridícula e bem dúbia. Era difícil simpatizar com a mulher que estava desesperada para permanecer casada. Ela era uma lacuna quando comecei a escrever o livro. Então, quando percebi que seu filho, Perry, que apresento no segundo capítulo, teria dificuldades com vício e com doenças mentais, me ocorreu que poderia haver algo interessante no passado de Marion e foram dois meses maravilhosos em que eu fui fundo no limbo daquele capítulo. Foi como: “eu posso ir tão longe assim”, “sim, eu posso”, “vou ainda mais longe”. E, com a noção de que ela tinha grandes segredos para esconder do marido, pensei que talvez ela tivesse sido casada, se divorciado, e não tivesse contado para ele. Não seria um segredo grande o suficiente, então precisei me forçar mais e mais para fazê-lo mais extremo.

Como foi isso?

Eu inventava enquanto escrevia e não sabia qual era a história. Esse é um lugar adorável para se estar como romancista: quando está fazendo algo, mas não sabe exatamente para onde está indo. Ou quando se tem uma ideia geral do que está tentando realizar. Isso faz de cada dia uma aventura. É como “eu não sei o que vem depois; vou me sentar aqui para ver”. Os dias em que você está nessa posição como escritor são os mais felizes.

E a conversão dela?

Bem, ela realmente se converte ao catolicismo. Nenhum personagem é criado do nada. Você conecta o personagem com as pessoas que conhece, talvez você mesmo tenha tido alguma experiência, eu certamente tive quando jovem, a de encontrar garotas que eram loucas pela religião, particularmente católicas. Conheci várias e elas eram muito atraentes para mim. Então, me conectar com a memória dessas garotas fez Marion atraente para mim, não sexualmente. Quero dizer que tive um amor juvenil pelo mistério daquelas garotas tão religiosas, isso as fazia intensas, críticas, elas me deixavam mal porque me criticavam. As memórias pessoais de mulheres assim me ajudaram a criar - o que me importa mais quando crio uma personagem é amá-la. Daí que vem Marion.

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O livro estimula questionamentos como “É possível ser bom?”

Não sei se existe um padrão absoluto de bondade que se aplica a todo ser humano no mundo, mas acho que todos a reconhecemos quando vemos. Quando meu pai morreu, não espalhamos suas cinzas imediatamente. Nós as levamos para o estado de Washington, onde ele trabalhou na linha férrea. Encontramos uma ponte onde ele certamente havia trabalhado e espalhamos suas cinzas lá. Minha mãe trouxe uma pequena cópia de uma oração que ganhou de uma amiga - era uma oração para o primeiro aniversário de morte de alguém. E a conclusão dessa oração era “faz um ano que perdemos nosso amado e ainda sentimos falta dele”. Aqui vai algo interessante: quanto mais o tempo passa, mais nos lembramos do que era bom sobre alguém que se foi. As coisas ruins que essa pessoa fez começam a se desvanecer. E o que é interessante sobre a oração é que ia além e dizia “no caminho da justiça, o que é bom permanece e o que é maligno desaparece”. Claro, isso é discutível, não sei se a maldade dos nazistas ou de Stalin ou dos colonialistas desaparecerá. Mas é amplamente verdadeiro que temos uma capacidade inata do que significa ser bom, mesmo com as diferenças culturais. Então, acredito que a bondade existe, mesmo que seja como um ideal.

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Encruzilhadas é a primeira parte de uma trilogia. O conjunto será mais que uma história de família?

Como Encruzilhadas foi parte de um plano para um primeiro livro, tenho algumas ideias sobre para onde as coisas irão, mas aprendi a não confiar nisso. Ideias são baratas. Se nos sentássemos juntos por 10 minutos e você me contasse uma ideia para uma história, eu poderia entregar um esboço que pareceria ótimo, mas talvez não fosse algo que você pudesse escrever. Voltando um pouco ao assunto de como Marion foi criada, ela estava completamente fora do meu plano original e, ainda assim, o trabalho mais empolgante que fiz havia sido ignorado no meu primeiro esboço. Então, é difícil falar sobre o que vem por aí. O que posso dizer é que pode ser difícil falar novamente sobre personagens sobre os quais escrevi um romance inteiro. Nunca fiz isso antes. Vamos ver se consigo. Mas há muitas possibilidades. Talvez as pessoas que foram personagens principais no primeiro livro sejam secundários no segundo. Mas realmente não sei. Prometi a muitas editoras uma sequência para Encruzilhadas e estou trabalhando nisso do meu jeito, aos poucos.

Imagem retirada de um vídeo mostra o escritor inglês Salman Rushdie sendo atendido no chão após ser atacado por um agressor que é retirado pela polícia, no Estado de Nova York, em 12 de agosto de 2022  Foto: AP


Você acredita que os escritores ficarão mais cautelosos ou temerosos após o ataque a Salman Rushdie?

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Tem muita gente louca por aí. E qualquer pessoa pública em um lugar público seria idiota em pensar que nenhum louco faria algo errado com você. Esse sempre foi o caso, inclusive antes do terrível ataque a Salman, mas é importante lembrarmos que o caso dele foi muito específico, pois se relacionava à Fatwa (condenação islâmica). Nos EUA e talvez no Brasil, depois de Bolsonaro ter propagado a cultura do armamento, todas pessoas, figuras públicas ou não, têm medo de violência. É bom ser cuidadoso, mas isso não pode me impedir de aparecer em público.

Você esteve no Brasil em 2012, para a Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip. Guardou alguma lembrança? Pretende voltar ao País?

Estive no Brasil há alguns anos e fui muito mal compreendido em um evento por causa da tradução simultânea. Eu estava falando de forma irônica e estou certo de que me entenderam mal. Eu adoraria voltar ao Brasil, especialmente porque sou um observador de pássaros. Seria incrível.