É preciso coragem para dedicar um livro ao nazismo e ainda intitulá-lo A Revolução Cultural Nazista. Johann Chapoutot, 44 anos, historiador e professor na Sorbonne Nouvelle, em Paris, é o autor da proeza, em seu precioso livro de 2017, lançado no Brasil pela Livraria Editora Da Vinci no final do ano passado. Ele parte, oito décadas depois, das palavras usadas por Primo Levi para descrever o Dr. Panwitz, em plena Segunda Guerra Mundial, no campo de extermínio que virou sinônimo do horror nazista, Auschwitz. Químico, o prisioneiro havia sido destacado para assisti-lo num projeto de fabricação de combustível sintético: “Seu olhar não era o olhar de um homem para outro homem; e se eu fosse capaz de explicar verdadeiramente a natureza desse olhar que parecia trocado por trás do vidro de um aquário, entre dois seres pertencendo a dois mundos diferentes, estaria explicando a própria essência da loucura do III Reich”.
Ferramenta, fator de produção útil e utilizável, que no devido momento pode ser substituído por outro em fundação das necessidades do projeto. É assim que Panwitz enxerga não só Levi, mas todos os judeus. Em suas memórias, este diz que gostaria de voltar a vê-lo, “não para se vingar, mas para satisfazer sua ‘curiosidade da espécie humana’”. Com este gesto, segundo Chapoutot, “a vítima faz o esplêndido gesto recusado pelo carrasco: reconhecer no outro a humanidade, a filiação à espécie humana e uma ‘interioridade’”.
É neste sentido que o livro é revelador e surpreendente. Apresenta o nazismo como uma revolução cultural. De fato, “além de uma inacreditável série de crimes”, este enfoque do III Reich compôs também “uma narrativa e um corpus normativo”, cujo objetivo era levar os protagonistas desses crimes a aceitarem que seus atos eram legítimos e justos.
A narrativa, palavra hoje super na moda, é o enfoque nazista da história: a raça germânica é, desde suas origens, alienada e desnaturada por influências culturais e biológicas, “que a destroem aos poucos para em breve fazê-la desaparecer”. É preciso, então, reler “pelo prisma da biologia racial” a história da raça, desde a Grécia antiga.
E a norma compõe-se dos imperativos deduzidos desta história: “É preciso agir rápido, para evitar que a raça germânica tenha este terrível destino”. Hitler, Goebbels, Himmler, Bormann e outros expoentes nazistas, incluindo juristas, médicos, cientistas, policiais, altos funcionários, militares e ideólogos, sonharam, imaginaram e planejaram futuros possíveis para a raça germânica. Mais do que o futuro, diz Chapoutot, “a salvação”. Por igual motivo, rechaçaram com ferocidade e afinco estereótipos colados na mentalidade alemã: o sentimentalismo, a afetação, o humanitarismo. Este campo de batalha é a revolução cultural a ser aplicada ao corpo e alma do povo alemão. “Revolução no sentido pré-revolucionário”, adverte o autor. É preciso voltar às origens, ao que era o “homem germânico” para salvá-lo.
A história germânica é a narrativa de uma alienação biológica e cultural: “O pensamento antigo se perdeu, o direito germânico foi adulterado, os princípios políticos mais sadios foram varridos pela Revolução Francesa”, que os nazistas abominam. Por isso é urgente voltar às origens, a um pensamento sadio da natureza e do homem. Chapoutot resume o raciocínio nazista assim: “Essa volta às origens permite refundar a norma jurídica que rege a ordem interna, mas também a ordem internacional e, por fim, a procriação, que garante o futuro da raça. E, além da norma jurídica, é toda a moral que vem a ser refundada, por meio de categorias que autorizam a agir, dominar e exterminar”.
Os nazistas foram muito eficientes nesta tarefa. Chapoutot mergulha então numa análise minuciosa do arcabouço jurídico alemão que deu alguma consistência teórica - embora distorcida - ao discurso panfletário das ruas. Os juristas adoravam o exemplo da Esparta da antiguidade, em que 6 mil cidadãos plenos dominaram sem problema por longo tempo 350 mil hilotas (servos/escravos). “Foram algumas centenas de milhares de adeptos que construíram e adotaram a visão de mundo nazista”. E ele chama a atenção para este detalhe fundamental: “Essas ideias não foram impostas pela violência ou intimidação; foram escolhidas por indivíduos convencidos de encontrar nelas as respostas necessárias às questões, aos problemas e aos males da época”.
É preciso ler com atenção também o capítulo que trata do modo como a Alemanha viu-se ultrajada e vilipendiada desde o day after da rendição na Primeira Guerra Mundial. A Paz de Versalhes sempre foi considerada aviltante para eles.
“Levar a sério e estudar essa ‘visão de mundo’ nazista que se pretendia uma revolução cultural - vale dizer, um rejuvenescimento do homem germânico pela volta às origens, à natureza, à sua natureza - permite transformar plenamente o nazismo em objeto de história”. Este é o maior objetivo das criteriosas e bem fundadas pesquisas de Johann Chapoutot.
Ou seja, ele toma a vasta literatura jurídica nazista como “testemunho de um espírito próprio da cultura nazista que de fato irriga as práticas de violência, acompanhando-as mais que as provocando, envolvendo-as numa aura de legitimação que facilita e torna menos árduo passar à ação”.
Muitos resquícios perversos permanecem vivíssimos em pleno século 21. É inegável que o mundo vive hoje - neste momento em que a invasão da Ucrânia pela Rússia resulta numa guerra cujo final parece a cada dia mais distante - o renascimento de formas de violência de algum modo resultantes do processo nazista de normatização da violência e do crime. Há também heranças mais “soft”, menos cruéis e que não horrorizam ninguém hoje em dia - mas não menos nazistas e deletérias em essência.
Heranças perversas que Chapoutot analisa em outro livro precioso, Libres d’obéir: le management, du nazisme aujourd’hui (Ed. Gallimard, 2020). Aqui Chapoutot concentra-se em duas figuras e suas trajetórias: Reinhard Höhn (1904-2000) e Franz-Alfred Six (1909-1975), ambos altos dirigentes da SS. O surpreendente objetivo é mostrar como técnicas de administração e marketing que fizeram sucesso nas décadas seguintes ao final da Segunda Guerra Mundial - algumas delas ainda hoje vigentes - foram gestadas, testadas e aprovadas durante o III Reich.
“As reflexões sobre a organização do trabalho, otimização dos fatores de produção, por uma sociedade produtiva mais eficiente foram numerosas e intensas durante o III Reich”, escreve. Mestres e estudantes fizeram do Serviço de Ensino da SS seu ninho “think tank”.
Reinhard Höhn[1904-2000], diz Chapoutot, “é o arquétipo deste intelectual tecnocrata”. Ele é um dos cerca de 6500 membros da SS que fortaleceram uma “rede poderosa” de apoio mútuo espalhada no ‘management’, na universidade, no mundo jurídico e na economia mundo afora. Em 1953, Höhn era diretor da Sociedade Alemã de Economia Política que pesquisava os métodos de administração mais eficazes. A tal Sociedade acabou criando uma escola de comércio para formar “os novos quadros econômicos”. Meta declarada: “Desenvolver e ensinar as formas de gestão de recursos humanos mais adaptadas ao nosso tempo”. Meta real: formar “managers” à americana, “líderes polivalentes”. Ou seja, “diferentes dos especialistas doutores nisso ou engenheiros daquilo que pululam na Alemanha desde o reinado de Guilherme II. O modelo é a Harvard Business School”. Assim nasceu a escola em Bad Harzburg, com um corpo docente basicamente formado por ex-nazistas da SS. O lema: “Liberdade para obedecer, obrigação de ser bem-sucedido”. Indisfarçavelmente nazistóide. Chapoutot vai na mosca ao afirmar que “ele mostrou-se perverso, tão perverso quanto um (antigo) nazi celebrando a liberdade”.
Ex-alunos da Escola de Formação de Profissionais de Administração na Alemanha em Bad Harzburg ocuparam - depois de desnazificados pelo Tribunal dos Aliados no imediato pós-guerra em 1945/47 - cargos de direção em grandes grupos empresariais que você conhece: Hoechst, BMW, Bayer, Telefunken, Krupp, Opel, e também nas norte-americanas Ford, Hewlett-Packard e Colgate. Todas estas e outras empresas “enviam regularmente seus executivos para aprender as boas lições dos antigos SS”, escreve Chapoutot.
A conclusão do livro de apenas 176 páginas é aterradoramente atual: “Disciplinar mulheres e homens considerando-os como simples fatores de produção e devastar a Terra, concebida como um simples objeto andam de mãos dadas. Levando a destruição da natureza e a exploração da “força vital” a níveis sem precedentes, os nazistas aparecem como a imagem distorcida e reveladora de uma modernidade enlouquecida - servida por ilusões (a ‘vitória final’ ou a ‘recuperação do crescimento’) e por mentiras (‘liberdade’, ‘autonomia’) das quais pensadores de gestão como Reinhard Höhn foram os hábeis artífices”.
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