O ano de 1973 foi marcado pela inauguração das torres gêmeas do World Trade Center e pelo acordo parisiense para pôr fim à guerra do Vietnã. Na Vila Mariana, o adolescente Giba jogava futebol de botão com seus amigos, vivia o primeiro amor e descobria viver sob uma ditadura. Essa história, claro, deve ter acontecido com milhares de sexagenários brasileiros, mas não da forma descrita pelo jornalista e escritor paulista Oscar Pilagallo, 61, no livro que marca sua estreia na ficção, Lua de Vinil.
Autor premiado com o Jabuti (História da Imprensa, 2011) e o Esso de reportagem (Anatomia de Uma Licitação, 1993), Pilagallo faz de Lua de Vinil um Bildungsroman potente sobre a formação do caráter de um jovem que causa um acidente no prédio onde mora e se omite, deixando que um amigo, malvisto como encrenqueiro, assuma a culpa. O livro acompanha a transição da adolescência para a idade adulta do pequeno Giges, que vira o jovem Giba e, no epílogo, o quase adulto Gilberto, às voltas com o pai morrendo no hospital, o desamparo e o drama moral da omissão.
Embora não tenha pensado no seu escritor estrangeiro preferido, Ian McEwan, é notável que Pilagallo trate com a mesma atitude desarmada a questão da culpa, tema predominante nas obras do autor inglês. Sem experiência anterior na ficção, ele surpreende, inventa personagens marcantes como os de Mc Ewan e, a exemplo dele, cria situações que pedem uma adaptação para o cinema.
Pilagallo, que foi cinéfilo na juventude, diz não ter pensado nessa hipótese ao escrever o livro, entre 2013 e 2014. Queria apenas “fugir da camisa de força” do factual sem abrir mão daquilo que a linguagem jornalística tem de bom, a comunicabilidade. “Desde a sua concepção, Lua de Vinil foi imaginado como um livro para adolescentes, que teria de se sustentar pela força de sua narrativa.”
Tratando de tantos temas complexos – a morte, a descoberta dos mecanismos de repressão durante a ditadura, a fragilidade do primeiro amor, a solidão do adolescente –, Pilagallo constrói essa narrativa de forma sólida, capaz de traduzir tanto o conflito moral de Gilberto como a ironia do acaso, que o conduz a carregar uma culpa monstruosa, difícil de suportar, um pouco como a Briony de Reparação e o Joe Rose de Amor Sem Fim, ambos personagens de McEwan. “Como McEwan e Graham Greene também exploram dilemas morais, a literatura deles tem uma poderosa força de atração”, observa o autor.
Ainda que tenha evitado ler livros para adolescentes durante o processo de escrita de Lua de Vinil, é possível outra associação, desta vez com o Graciliano Ramos de Infância – com a diferença que não se trata da um relato autobiográfico, embora Pilagallo tenha se inspirado em pessoas que conheceu na adolescência para criar alguns dos seus personagens.
O protagonista, Gilberto, é um garoto que, deslumbrado com o álbum The Dark Side of The Moon, do grupo Pink Floyd, aprende inglês e descobre o “lado escuro da lua” cedo demais. Ter o disco em 1973, no Brasil, era garantia de status entre os colegas que jogavam futebol de botão. Não seria esse desejo de individuação diferente dos jovens atuais, que buscam na uniformização cultural uma defesa para não serem rejeitados?
“Não sei se a geração de agora é tão diferente dos jovens dos anos 1970, considerando que os adolescentes têm dois desejos conflitantes, o de se diferenciar e, ao mesmo tempo, de pertencer a algum grupo”, analisa Pilagallo. “Hoje, o acesso à tecnologia, às redes sociais, tem, claro, um impacto no comportamento dos jovens”, observa, atento ao paradoxo dessa necessidade de pertencimento vir acompanhada do isolamento autista diante do computador.
Pilagallo traduziu, entre outros livros, um brilhante, a reunião de ensaios Como Ficar Sozinho, do norte-americano Jonathan Franzen, que fala da invasão da privacidade e outros assuntos. Pois, usando a ficção e falando de uma outra época, Pilagallo monta também uma tese sobre o autoengano e a desilusão de um jovem que, entediado, quase provoca uma tragédia.
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