Livro relata últimos dias de Gabriel García Márquez e sua dor pela perda de memória

Obra escrita pelo filho de Gabo, Rodrigo, mostra que os lapsos de memória foram uma pré-despedida

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Foto do author Ubiratan Brasil

O sinal de alerta acendeu quando o cineasta Rodrigo García recebeu, em 2014, uma mensagem de sua mãe, Mercedes: “Desta, a gente não sai”. Ela relatava a provável consequência do resfriado que seu marido, o escritor colombiano Gabriel García Márquez, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura (1982), havia pegado. Então com 87 anos, o autor de Cem Anos de Solidão revelava uma fragilidade física e mental irreparável.

“Voei de Los Angeles, onde moro, para a Cidade do México, onde eles viviam, para acompanhar os derradeiros dias de meu pai”, conta Rodrigo ao Estadão, em conversa por Zoom. Ao longo do tortuoso período, ele tomou notas sobre os acontecimentos diários, registros que o ajudaram a escrever depois Gabo & Mercedes: Uma Despedida, livro que sai agora pela editora Record.

Gabriel García Márquez e Mercedes são retratadosno livro 'Gabo & Mercedes: Uma Despedida' Foto: Acervo Gabriel García Márquez

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Em um primeiro momento, trata-se do delicado retrato de uma família que sofre com a perda de um ente querido. Mas a situação de Gabo (um dos apelidos do autor) despertava atenção mundial e, até sua morte, em 17 de abril de 2014, em consequência de uma pneumonia e infecção respiratória, o foco estava no que acontecia naquela casa na capital mexicana. “Acompanhávamos a cobertura da imprensa e buscávamos reconciliar a figura retratada com aquela com quem passei as últimas semanas, doente, morrendo, e que finalmente se transformou em cinzas guardadas em uma caixa. E também com o pai de minha infância, aquele que eventualmente se tornou meu filho e de meu irmão Gonzalo.”

Rodrigo começou a tomar notas para preservar detalhes dos acontecimentos daqueles dias. “Mas era algo pessoal, minha intenção era guardar as anotações para que minhas filhas e minhas sobrinhas soubessem, no futuro, como foi a despedida do avô”, conta Rodrigo que, tão logo retornou a Los Angeles após a morte de Gabo, passou a limpo seus rascunhos. “Eu queria reter o frescor das lembranças, temendo perder detalhes importantes.”

Inicialmente, não havia intenção de transformar as notas em livro. “Especialmente por causa da minha mãe, que não se sentia à vontade com a divulgação de histórias pessoais.”

O 'Clube dos Quatro': o casal Gabriel García Márquez e Mercedes com os filhos Rodrigo e Gonzalo Foto: Acervo Gabriel García Márquez

Foi só depois da morte de Mercedes, em 2020, por problemas respiratórios provocados pelo tabagismo, que Rodrigo se sentiu encorajado a seguir com o projeto. “Mas decidi ampliar o foco e incluir minha mãe, pois eu não queria escrever um livro apenas sobre a morte de um pai famoso, mas sobre a despedida de ambos.”

Sociável

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Gabo se casou com Mercedes Barcha em 1958 e, ao longo da carreira ascendente do escritor, aquela menina colombiana provinciana nascida na década de 1930 aos poucos se tornou uma mulher que se relacionava com naturalidade com presidentes e outras figuras internacionais. “Era uma pessoa gregária, sociável, mas também reservada. Fiquei satisfeito com os comentários de pessoas que a conheciam e a reconheceram no livro.”

A obra, portanto, traz um pouco da história de como morreram os dois fundadores do Clube dos Quatro, brincadeira familiar que incluía ainda os filhos Rodrigo e Gonzalo.

Eu queria reter o frescor das lembranças, temendo perder detalhes importantes

Rodrigo García, filho de Gabriel García Márquez

O livro é pleno de detalhes curiosos que, graças ao cuidado de Rodrigo, jamais resvalam na fofoca. Certamente um dos pontos altos é a percepção de Gabo de que estava perdendo a memória. “Meu pai tinha plena consciência disso, o que o angustiava muito pois dizia estar perdendo sua principal ferramenta de trabalho”, recorda-se Rodrigo que, com o tempo, não era mais reconhecido pelo pai, assim como seu irmão. “O preço de ver uma pessoa naquele estado de ansiedade e ter de tolerar suas intermináveis repetições é enorme.”

Acalmar

Rodrigo conta que era normal manter ao redor da cama do escritor pessoas conhecidas, como a secretária, o motorista, a cozinheira, que trabalhavam na casa havia anos. “Isso o acalmava”, diz. “Cada rasgo de memória era festejado, assim como detalhes insignificantes como ‘comeu bem’ ou ‘sorriu’.”

O escritor colombiano Gabriel García Márquez, Nobel de Literatura Foto: Albert Gea/ Reuters

Doloridos mesmo foram alguns momentos em que Gabo não reconhecia Mercedes, que inicialmente reagia com raiva, inconformada com o olhar desconfiado lançado por ele. Ao mesmo tempo, havia humor, como o dia marcado pelas gargalhadas das diversas mulheres que cercavam o escritor depois de ouvir dele o comentário malicioso de que não conseguiria amar todas. “Escrevi uma carta de despedida”, reflete Rodrigo. “Não foi fácil, cheguei a entrar em pânico quando o livro estava para sair, mas precisava deixar esse registro.”

Em maio, e como parte das celebrações dos 40 anos da conquista do Nobel por Gabo, a Record vai lançar Diatribe de Amor Contra um Homem Sentado, a única peça escrita pelo autor colombiano, que traz o relato íntimo e sincero de uma mulher prestes a completar 25 anos de casada.

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Também está prevista a publicação de Duas Solidões: Um Diálogo Sobre o Romance na América Latina, transcrição de uma conversa entre Gabo e o também vencedor do Nobel (2010) Mario Vargas Llosa, ocorrida em 1967, sobre literatura latino-americana, e também de García Márquez: História de um Deicídio, tese de doutorado de Llosa sobre a obra do colombiano - inicialmente amigos fraternos, eles romperam a relação em 1976, aparentemente por causa de uma fofoca envolvendo Patrícia, então mulher do peruano. Seja qual for o motivo, o rompimento foi marcado por um soco dado por Llosa no olho de Gabo. 

Trecho do livro 'Gabo & Mercedes: Uma Despedida'

Os momentos de demência de Gabo

Houve alguns meses muito difíceis, não faz tanto tempo, em que recordava sua esposa da vida inteira, mas achava que a mulher que estava na frente dele, garantindo que era ela, não passava de uma impostora.

“Por que essa mulher está aqui dando ordens e controlando a casa se não é nada minha?” A mãe reagia com raiva. “O que está acontecendo com você?”, perguntava com incredulidade. “Não é ele, mamãe. É a demência.” Ela me olhava como se eu tentasse enganá-la. Surpreendentemente, esse período passou, e na mente do meu pai ela recuperou o lugar que pertencia à minha mãe como sua acompanhante principal. 

Quando meu irmão e eu o visitamos, ele olha longa e vagarosamente para nós, com uma curiosidade desinibida. 

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