“Se for de seu agrado, mande-me uma nota verde americana de dez dólares, na carta, porque eu nunca vi uma nota verde americana de dez dólares e gostaria muito de ter uma.” Quem escreveu isso, num inglês meio torto, foi um menino de 12 anos chamado Fidel Castro, em novembro de 1940, numa atrevida carta ao presidente Franklin Roosevelt. Esta é uma entre as 125 reunidas por Shaun Usher em Cartas Extraordinárias. Concebido a partir do blog Letters of Note, o livro reproduz, em bela apresentação gráfica, a maior parte dos fac-símiles das missivas.
Como quase tudo que vem da internet, Usher não se pautou por nenhum critério de seleção, o que só vira um problema porque desorienta o leitor incauto. De qualquer forma, libera quem lê para começar por onde quiser, numa surpreendente viagem por esses espaços privilegiados, cheios de sinceridade, farta irrestrição verbal e que conectam, quase sempre em alta voltagem emocional, o privado e o público.
Nosso olhar pode borboletear por cartas pouco conhecidas, como a do sobrinho de Adolf Hitler, Patrick Hitler – o qual um ano depois de fugir da Alemanha e já residente nos Estados Unidos foi recusado pelo exército americano. Ele escreve ao presidente Roosevelt que, afinal, autoriza o alistamento – obviamente, após intensas e detalhadas investigações do FBI. Ou pode deter-se em missivas cheias de uma humildade desiludida, como a de Gandhi para Hitler, em julho de 1939, simplesmente pedindo “pelo bem da humanidade, para impedir uma guerra que nos poderia reduzir a um estado de barbárie”.
É sempre recomendável passar ao largo de alguns bilhetes de profundo mau gosto, colhidos no setor de criminalística, como aquele de outubro de 1888, acompanhado de uma caixinha de horrível conteúdo orgânico, remetido para George Lusk, o delegado de Whitechapel, e atribuído a Jack, o Estripador: “Envio para o sinhor metade do rim que tirei de uma mulier gardei para o sinhor pois a outra parte eu fritei e comi estava muito gostozo” (sic). Melhor vaguear pelos desvãos obscuros da vitrine, relendo escritos permeados de desbocados conselhos eróticos, como a de Anaïs Nin, de 1932, numa das muitas cartas nas quais, juntamente com seu amante Henry M[/TEXTO]iller, enviaram a um fictício “Colecionador”, obcecado com sexo: “Atividade intelectual, criatividade, romantismo, emoção. É isso que dá ao sexo suas texturas surpreendentes, suas sutis transformações e seus elementos afrodisíacos. (...) Por que você está perdendo tanto tempo por causa desse periscópio na ponta do pênis quando poderia desfrutar de todo um harém de maravilhas diferentes e sempre novas?”
O leitor pode ainda encher-se de nostalgia com a intensidade de cartas cheias de declarações afetivas, dor pela falta da pessoa amada ou registros comoventes da perda e do luto – nem sempre escritas por celebridades. Em 1615, Kimura Shigenari, jovem samurai de 22 anos, se preparou para comandar seus homens no cerco de Osaka. Sua esposa, sabendo que ele jamais voltaria e, sentindo-se incapaz de conviver com sua ausência, escreveu, pouco antes de se suicidar: “Nos últimos anos, partilhamos o mesmo travesseiro como marido e mulher que pretendiam viver e envelhecer juntos, e me incorporei a ti como se fosse tua própria sombra. (...) Agora perdi toda a esperança em relação ao nosso futuro juntos neste mundo e, atenta ao exemplo daqueles homens, decidi dar o passo extremo enquanto ainda estás vivo. Estarei esperando por ti no fim do que chamam o caminho para a morte.”
Muitas cartas descrevem o sempre inconformado desabafo da impotência humana em relação às tragédias da vida. Em novembro de 1905, Marc Twain, depois de perder o filho de nove meses com difteria, em seguida a sua filha Suzy, com meningite, e alguns anos depois, sua esposa, Olivia, assim respondeu a uma carta de 1904, acompanhada de um panfleto de J. H. Todd, criador e vendedor do “elixir da vida”, um remédio mágico capaz de curar todas as doenças: “Quem escreveu a propaganda é, sem dúvida, a criatura mais ignorante do planeta; sem dúvida, é um idiota (...) descendente de uma longa linhagem de idiotas que remonta ao Elo Perdido. (...) Daqui a alguns instantes, minha raiva vai passar e eu, provavelmente, vou rezar pelo senhor, mas enquanto não passa, apresso-me a desejar que o senhor, por engano, tome uma dose do seu próprio veneno.”
Mas o destaque da vitrine epistolográfica acaba, como sempre, arrebatado pelas cartas de crianças, as quais quando não escrevem – mas rabiscam seus inumeráveis desenhos entre tortuosas linhas num estilo pueril, de honestidade pura e chocante – acabam provocando as mais notáveis respostas aos seus bilhetes escritas por adultos compulsoriamente levados a desprezar papas na língua ou metáforas hipócritas. Em 1860, depois de ver um retrato ainda imberbe do então candidato a presidente Abraham Lincoln, Grace Bedell, uma menina de 8 anos, escreveu-lhe uma carta dizendo, sem mais delongas: “Eu tenho quatro irmãos e alguns deles vão votar no senhor e se o senhor deixar crescer a barba eu vou tentar convencer os outros a votar no senhor o senhor ficaria muito melhor porque tem o rosto muito magro” (sic). Lincoln respondeu à carta e até hoje se diz (sem insistir muito na verdade do fato) que ele passou a usar a barba por sugestão da menina. Já em 1897, Virgina O’Hanlon, de nove anos, seguindo o impaciente conselho do pai, que lhe dissera “se está no Sun é verdade”, escreve para o editor do jornal: “Por favor, diga a verdade para mim, Papai Noel existe?” A resposta vem em alto estilo: “Você poderia pedir para o seu papai contratar alguns homens para vigiar chaminés e pegar o Papai Noel, mas ainda que eles vissem Papai Noel entrando, o que isso provaria? (...) As coisas mais concretas do mundo são as que nem as crianças nem os adultos conseguem ver. (...) O mundo invisível é coberto por um véu que nem o homem mais forte, que nem todos os homens mais fortes juntos são capazes de rasgar. Só a fé, a fantasia, a poesia, o amor e o sonho conseguem abrir aquela cortina e contemplar e retratar a suprema beleza. Tudo isso é real? Ah, Virginia, essa é a única coisa real e imutável que existe neste mundo.”
“Lembre-se, porém, de que você e seus amigos carregarão na consciência a morte de uma criança inocente. Está disposta a assumir tal responsabilidade?” Essa foi a resposta certeira de Charles Schulz, o criador da série Peanuts a uma adolescente quando, em janeiro de 1955 ele teve que atender aos pedidos de defenestrar a personagem Charlotte Braun de seus quadrinhos, que despertara profunda antipatia nos leitores.
Diversão garantida mesmo só com as engraçadíssimas cartas nas quais Rudyard Kipling recomenda uma etiqueta escolar para o editor de uma revista de meninos, em 1898; ou na hilária resposta do humorista do stand-up, Bill Hicks, em 1993, a um padre que havia considerado blasfemo seu programa de TV: “Otimistas ou pessimistas divergem apenas sobre a data do fim do mundo”, escreve, parodiando o polonês Stanislaw Lec. Mas o arremate final vai para a carta de Groucho Marx, ainda um piadista incorrigível nos seus quase 86 anos, enviada a Woody Allen, em 1976: “O Goodie Ace falou para um amigo meu que você estava desapontado ou chateado ou feliz da vida ou bêbado porque não respondi a carta que você me mandou anos atrás. Você naturalmente sabe que responder cartas não dá dinheiro – a menos que sejam cartas de crédito da Suíça ou da máfia. Escrevo com relutância, pois sei que você está fazendo seis coisas ao mesmo tempo – cinco, incluindo sexo. Não sei onde você arruma tempo para se corresponder.” Humor marxista legítimo. Quer dizer, groucho-marxista.
*ELIAS THOMÉ SALIBA É HISTORIADOR, PROFESSOR DA USP
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