O homem passeia pelas ruas de Copacabana, olhando cuidadosamente para os edifícios. Ele não avalia beleza arquitetônica, mas busca algum lugar de onde poderia se jogar. “Os melhores prédios são os antigos, sem janelas lacradas de vidro fumê e longe das vias principais”, reflete Joel Nascimento logo nas linhas iniciais de Chuva de Papel (Companhia das Letras), novo romance de Martha Batalha.
É um começo impactante que dá o tom à obra, desde já figurando na lista dos melhores lançamentos do ano graças a uma prosa precisa e bem-humorada, que retrata a trajetória de Joel, repórter policial aposentado, um homem com mais de 70 anos, barrigudo, decadente, endividado (sofre para pagar pensão de filho e aluguel de quarto na Lapa), dono de apenas um bem (um abajur) e, por tudo isso, com o único propósito, naquele momento, de dar cabo da própria vida.
“Meu ponto de partida era responder a uma pergunta: como é possível viver em uma cidade que continuamente te desafia e te choca?”, comenta Martha. “Por isso, eu estava menos interessada na ação e mais no mundo interior dos personagens.” Ou seja, como jornalista que cobriu crimes e tragédias, Joel conviveu com o chamado mundo cão, o lado B do Rio de Janeiro que é escondido dos turistas e ignorado pelos mais abonados.
DOR. Ao lidar com tantos relatos de dor, ele viu seus sentimentos endurecerem a fim de suportar aquele submundo que alimentava os jornais sensacionalistas nos quais trabalhou. Ao mesmo tempo, despertou nele a desesperada necessidade humana de colocar ordem no caos, para dar sentido a um universo violento e irracional. “Em seu ofício, ele lidou com os piores momentos da vida humana”, conta Martha que, como repórter, trabalhou com profissionais que a ajudaram a traçar o perfil e a narrar a rotina de Joel – nomes como Luarlindo Ernesto e Antonio Werneck, que foram testemunhas factuais e sentimentais da cidade.
“No jornalismo, é possível ouvir as melhores histórias humanas, ou seja, uma fartura para um escritor. Além disso, como repórter, descobri o outro lado da cidade, o que me permitiu desenvolver a empatia pelo outro, algo que utilizo na ficção, quando entro na cabeça dos personagens”, diz Martha, autora também de A Vida Invisível de Eurídice Gusmão (2016), livro que inspirou o filme A Vida Invisível, de Karim Aïnouz.
É o que o leitor descobre quando Joel fracassa pateticamente na sua tentativa de suicídio. Depois de hospitalizado, vai morar de favor na casa da tia de um colega de redação, que aguarda a chegada de um jornalista famoso, mas recebe um homem com alma frágil e feridas não cicatrizadas. Mas é justamente essa mulher, Glória, que vai promover uma virada na vida de Joel.
Com a pandemia, são obrigados a conviver confinados em um apartamento de fundos do primeiro andar de um prédio de pastilhas amarelas no bairro da Tijuca. Dos embates entre os dois, Glória passa a ganhar terreno no romance, especialmente por seu humor ácido que compete e é derrotado por uma profunda bondade.
“Nessa segunda parte do livro, Glória ganha projeção porque Joel descobre que ela não era a pessoa que ele julgava ser”, comenta a autora. “Graças a seus preconceitos, ele via uma mulher marcada por vários estereótipos, mandona e limitada, longe da realidade.”
E a descoberta vem por meio de manuscritos de um livro autobiográfico que Glória escreveu ao longo dos anos e, apesar de ter a garantia de publicação, insistiu em manter guardado. “A leitura surpreende Joel com o surgimento de uma mulher que viveu o feminismo possível em seu tempo, várias camadas de emancipação de alguém que nunca abandonou o afeto, mas que sempre precisou brigar para sobreviver.”
Assim, se a primeira parte oferece o lado B do Rio de Janeiro, na segunda o leitor descobre um outro lado B, o de uma mulher convalescente de uma trajetória marcada por provações, mas também um espírito fecundo, que acredita no futuro.
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