Livros devem ter classificação indicativa e alerta de gatilho? Discussão chega com geração Z em foco

‘Estadão’ conversou com editora executiva da Seguinte e Paralela, diretor comercial e de marketing da Rocco, dono da livraria Martins Fontes e psicóloga especializada em adolescentes para entender movimento que começa a aparecer no mercado editorial

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Foto do author Julia Queiroz
Foto do author Maria Fernanda Viana
Atualização:

Em um canto discreto das capas e contracapas de muitos dos livros expostos na Bienal do Livro de São Paulo, você pode encontrar um alerta com duas palavras: “conteúdo adulto”. O maior evento literário da América Latina, que abriu as portas nesta sexta-feira, 6, com foco especial no público jovem, que já vinha lotando os corredores da feira em suas últimas edições.

Como a classificação indicativa pode ser abordada no mercado editorial? Foto: arthurhidden /adobe.stock

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São eles, também, o ponto central de duas discussões que começam a movimentar o mercado editorial: livros devem vir com classificação indicativa? E alertas de gatilho? Essas duas práticas - diferentes, mas complementares - já aparecem em muitos livros de literatura comercial voltados para um público mais jovem.

A classificação indicativa é um tema polêmico no mercado editorial. A maioria dos especialistas concorda que não é correto determinar uma idade certa de leitura para cada livro, em especial na infância, quando o desenvolvimento e competência leitora podem ser diferente mesmo em crianças da mesma idade. Entre os jovens, o cenário que se forma é um pouco diferente.

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É o que explica Nathalia Dimambro, editora executiva da Seguinte, selo jovem da Companhia das Letras: “Há alguns anos percebemos uma demanda maior do público para saber a classificação indicativa dos livros que lançamos. Além disso, algumas lojas (como a Amazon) exibem a ‘idade de leitura’. Por isso, já há alguns anos passamos a definir uma faixa etária para [nossos] títulos (12+, 14+, 16+ ou 18+).”

Ela ressalta, contudo, que a faixa etária definida é sempre uma sugestão. Atualmente, não existe uma regulamentação sobre o assunto e a classificação fica a critério da editora. “Para definir a faixa etária, então, levamos em consideração principalmente os assuntos abordados, se há sexo ou violência, por exemplo, o quão descritivas são essas cenas e se são numerosas ao longo do livro”, ressalta Nathalia.

'A Última Parada' e 'Vermelho, Branco e Sangue Azul', de Casey McQuiston, publicados no Brasil pela Editora Seguinte. Na descrição dos produtos na Amazon, é possível ver a classificação indicativa de cada um. Foto: Foto: Seguinte | Divulgação e Reprodução de tela | Amazon

A editora Paralela, selo comercial da Companhia das Letras, usa um alerta de “conteúdo adulto” - mas sem sinalizar idade - em seus livros com conteúdo erótico desde o início de suas atividades, em 2012. “Foi na época de Toda Sua, de Sylvia Day, que relata a história de amor entre Eva e Gideon, mas também continha muitas cenas de sexo. Entendemos que embora muito da nossa divulgação e descrição na sinopse focasse no fato de que o casal protagonista se apaixonava, era importante também sinalizar que havia ‘algo mais’”, explica Quezia Cleto, editora executiva do selo.

“Também foi uma forma de livreiros identificarem isso de prontidão e poderem transmitir esse cuidado na hora de vender o livro, entendendo que alguns públicos buscariam a história de amor, mas prefeririam evitar outros aspectos do livro. E, neste caso, preferimos sinalizar como ‘conteúdo adulto’ (sem indicar uma idade ‘recomendada’), entendendo que a decisão fica a cargo do leitor em última instância”, completa ela.

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A editora Rocco também criou um sistema próprio. “Oficialmente, os livros não trazem classificação indicativa, mas nos metadados que alimentam cadastros de sites e livrarias, existe um direcionamento que é dado pelas editoras através das fichas catalográficas, dos selos que diferenciam os assuntos e gêneros, dos textos das sinopses que estão na quarta capa e nas orelhas dos livros”, explica o diretor comercial e de marketing do grupo, Bruno Zolotar.

“Quando a Rocco modernizou a sua marca em 2020, criou um sistema de elementos gráficos aplicados à sua marca presente nas capas para auxiliar na identificação por parte de livreiros e leitores de faixas etárias sugeridas para cada título. Então a Rocquinho é para até 8 anos. A marca Rocco com um elemento gráfico do sorriso indica livros para jovens, que não trazem violência ou sexo, por exemplo”, diz.

Alertas de gatilho

Para as fontes ouvidas pelo Estadão, os alertas de gatilho não estão associados à classificação indicativa, mas são complementares à discussão. Os gatilhos emocionais acontecem quando uma pessoa entra em contato com algo que aciona determinada emoção, memória ou trauma. O termo já era usado para se referir a sentimentos positivos, mas o seu uso para se referir a sensações desagradáveis cresceu com o aumento da conscientização sobre saúde mental.

Dessa forma, os alertas de gatilho são avisos de que, naquele livro, o leitor vai entrar em contato com algum tipo de conteúdo que pode lhe desencadear essas sensações ruins. Neste caso, a decisão de incluí-los ou não costuma vir do próprio autor. A editora Sextante, por exemplo, diz que eles “estão presentes em todos os livros dos nossos autores que julgaram necessário destacá-los”.

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A Rocco, por outro lado, prefere evitar os alertas de gatilho. “Nos textos de capa, orelha e na divulgação em redes sociais, deixamos claro sobre o que os livros e as histórias tratam e cabe aos leitores fazerem as suas escolhas e evitarem os temas que não lhe agradam”, diz Zolotar.

Para Nathalia, da Seguinte, o assunto é complexo e exige cuidado, em especial se tratando do público jovem: “Muitas vezes o leitor sensível a determinado conteúdo poderia justamente se beneficiar da leitura de um bom livro sobre o tema; afinal, a literatura pode trazer acolhimento, a sensação de que somos vistos e de que não estamos sozinhos”.

Ela acredita, contudo, que “incluir o aviso de conteúdo entrega essa decisão ao próprio leitor, que é quem sabe melhor se quer ou não lidar com aquele assunto naquele momento”. Os alertas podem incluir temas como agressão física e psicológica, abuso sexual, homofobia, transtornos alimentares, automutilação e suicídio.

O leitor sensível a determinado conteúdo poderia justamente se beneficiar da leitura de um bom livro sobre o tema; afinal, a literatura pode trazer acolhimento, a sensação de que somos vistos e de que não estamos sozinhos”

Nathalia Dimambro, editora executiva da Seguinte

Demanda da geração Z

E o que mudou para que isso virasse assunto no mercado? A demanda vem, em parte, dos próprios leitores. Para Quezia Cleto, da Paralela, a conversa cresceu em dois momentos distintos: primeiro, quando os alertas de gatilho começaram a ser mais amplamente discutidos e, com isso, veio uma preocupação em sinalizar potenciais preocupações com o público consumidor.

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Contudo, ela aponta que a conversa se intensificou por conta do crescimento das capas ilustradas para livros de romance com cenas eróticas, que não fazem alusão clara ao conteúdo sexual presente no livro. O Estadão explicou a tendência há cerca de um ano e mostrou como e por quê essas capas vinham crescendo no mercado editorial. Leia abaixo:

Quezia acrescenta que as capas ilustradas vieram com o boom do gênero “new adult” (”novo adulto”, em português). “[Ele] mescla personagens em uma fase de transição de vida e pode apelar para leitores mais velhos e mais jovens também. Assim, ficou mais difícil de identificar quais livros eram ‘hot’ ou não”, explica.

Capa e contracapa de 'Atrás da Rede', lançamento de setembro de Paralela, com o aviso de 'conteúdo adulto'. Foto: Paralela/Divulgação

Saber o que se está prestes a consumir, ou deixar claro o que se recomenda para outra pessoa, parece ser um desejo da geração Z. “Os próprios jovens perguntam nas nossas redes sociais qual a classificação indicativa do livro, caso não esteja informado no post. Também notamos que influenciadores literários, como os booktokers, também passaram a incluir com mais frequência essa informação nos conteúdos criados”, afirma Nathalia, da Seguinte.

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Acredito que parte da geração Z peça essa informação para garantir que estão lendo livros apropriados para sua idade, o que é algo que não se via tanto uma década atrás, por exemplo.

Nathalia Dimambro, editora executiva da Seguinte

“Por outro lado, outro fenômeno que temos observado é que adolescentes de 12, 13 anos têm lido cada vez mais títulos que foram pensados para o público adulto, de autoras como Colleen Hoover [de É Assim Que Acaba] e Taylor Jenkins Reid [de Daisy Jones & The Six], por exemplo. Então ter uma classificação indicativa definida não significa que essas fronteiras sejam rígidas e que os leitores não possam questioná-las ou ultrapassá-las”, acrescenta.

Vulnerabilidade emocional

Mayara Lopes Fialcoski Morais, psicóloga infantojuvenil e parental, explica que esse interesse por saber de antemão aquilo que vai consumir pode ser explicado pela vulnerabilidade emocional presente nessa geração, algo que ela atribui à ascensão da tecnologia.

“Existe uma necessidade de controle, de limites que a internet rompeu. Essa falta de limite gera uma confusão de como se posicionar, faz a gente questionar até que ponto a gente invade os valores dos outros. O adolescente não é localizado nessa confusão”, diz.

Para a psicóloga, a idade não é suficiente para determinar se existe ou não uma maturidade para consumir livros com conteúdos eróticos e cenas de violência. Ela explica que a liberdade dada aos adolescentes pelos pais e cuidadores deve ser diretamente relacionada ao que é observado com responsabilidade e maturidade pelos jovens.

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“Ter essa indicação de possíveis gatilhos permite que os jovens façam escolhas mais conscientes. Ajuda a ser mais leal e reconhecer os limites dele”, ressalta.

Caminhos e ressalvas

Na maioria dos casos, a classificação indicativa ou o aviso de conteúdo adulto aparecem na contracapa, mas as editoras dizem que também é importante que estejam na divulgação. “Principalmente em redes sociais, sempre fazemos uma explanação mais ampla sobre o conteúdo”, diz Zolotar, sobre a Rocco. Normalmente, a sinalização também acompanha a descrição e sinopse do livro nas livrarias digitais.

O maior desafio parece ser a ponte com as livrarias físicas. Zolotar aponta que é uma demanda dessas lojas que fique mais claro quando um título tem “conteúdo erótico”, especialmente com a tendência das capas ilustradas, para evitar mal-entendidos com os clientes.

Quezia também aborda a questão: “No caso das livrarias físicas, ter este aviso também é uma forma de ajudar os livreiros na hora de fazer a indicação, sem pressupor que terão lido todos os livros disponíveis. Assim não correriam o risco de indicar algo que pudesse causar algum mal estar com leitores”.

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Por outro lado, Alexandre Martins Fontes, dono da livraria Martins Fontes e presidente da Associação Nacional de Livrarias (ANL), diz que a discussão não chegou ainda ao meio livreiro, ao menos das livrarias físicas. Ele demonstra preocupação com o tema, pois acredita que a adesão à classificação indicativa pode esbarrar na censura: “Fica muito perto do que pode ou não pode ser lido. E, normalmente, essas decisões são tomadas por adultos com uma visão muito conservadora”.

As editoras consultadas pela reportagem afirmam que a classificação, quando usada, é apenas uma sugestão e que os avisos de conteúdo adulto e os alertas de gatilho funcionam para que o leitor possa ter mais consciência de antemão do que vai ler.

“Isso não significa que vamos deixar de publicar livros com temas considerados ‘tabu’. Pelo contrário: há décadas, temas como sexualidade, drogas e violência são discutidos na literatura jovem, um terreno seguro para levantar discussões com adolescentes que muitas vezes não têm abertura para falar sobre esses assuntos dentro de casa ou na escola. Nosso trabalho, enquanto editores de livros para jovens, não é fugir de assuntos difíceis, mas escolher títulos que lidem com esses assuntos de forma responsável”, finaliza a editora executiva da Seguinte, Nathalia Dimambro.

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