Um piquenique ao ar livre, um belo dia na praia, um café da manhã em uma padaria. Tudo pode virar cenário para o post ideal de uma influenciadora, em especial para mostrar aquele look escolhido especialmente para a ocasião. Um objeto, no entanto, parece ter se infiltrado em muitas dessas publicações ultimamente: o livro.
Ele tem aparecido nas estantes em fotos e vídeos mostrando roupas, no canto das imagens em publicidades e na mão das blogueiras. O Estadão conversou com uma especialista e com editoras para a entender os motivos por trás desse fenômeno recente e saber se ele pode ter impacto no mercado editorial.
São vários os exemplos. Em maio, a influenciadora Giordana Serrano, que acumula quase 500 mil seguidores no Instagram, publicou uma foto em que segurava um copo de café em uma mão e um livro em outra. A localização indicava que ela estava em Barcelona, na Espanha, e o post era, inclusive, uma publicidade para um marca de café.
Em abril, Natália Cangueiro, que soma mais de 401 mil seguidores na rede social, apareceu posando em uma livraria. “Gostosas e leitoras”, brincou na legenda. A influencer de moda tem, inclusive, um destaque em seus stories em que fala dos livros que já leu.
Mais recentemente, em agosto, a influenciadora Ana Júlia Ardito, que tem pouco mais de 81 mil seguidores no Instagram, divulgou uma publicidade para uma marca de calçados. Na imagem, em cima de uma cesta, aparecia o livro Aurora: O despertar da mulher exausta, de Marcela Ceribelli, fundadora da plataforma Obvious. Veja a foto no segundo slide:
É claro que seria um exagero dizer que os livros aparecem no perfil de todas as blogueiras brasileiras e mundo a fora. Mas estão aparecendo, e com frequência que certamente é maior do que há alguns anos. A pergunta que fica é: o que está por trás disso?
O BookTok e as estéticas da internet
A reportagem conversou com Issaaf Karhawi, doutora em comunicação pela ECA-USP e autora do livro De Blogueira a Influenciadora: Etapas de Profissionalização da Blogosfera de Moda Brasileira (2020), que levantou algumas hipóteses sobre a razão para este fenômeno recente.
A primeira delas é a influência do BookTok, nicho do TikTok que discute e divulga literatura. Em maio, o Estadão explicou o que é este espaço, o sucesso dele e como ele tem mudado o hábito de leitura dos brasileiros - leia aqui.
É justamente isso que Issaaf cita: “A gente tem um movimento em uma rede social muito específica que tem mudado um pouco a relação que a gente tem com livros, pensando na população de maneira geral”.
Ela lembra como o TikTok tem ocupado espaços em livrarias e grandes eventos, como a Bienal do Livro, e que o BookTok pode ter sido um dos responsáveis por tirar a literatura de um espaço nichado - afinal, ela sempre esteve na internet - e a colocado em um lugar mais popular.
Talvez tenha alguma coisa aí na cultura digital em que o livro passou a se infiltrar de forma mais diluída
Issaaf Karhawi
Vale pontuar também que as influenciadoras de moda estão muito presentes no TikTok, às vezes até mais do que no Instagram. E já que você vai mostrar um look, por que não fazer isso na frente de uma estante?
A segunda hipótese de Issaaf está relacionada ao que na internet se é referido como “aesthetic”, palavra que se traduz para “estética” e que faz alusão a um tipo de imagem harmoniosa e popular.
São muitas as estéticas que fazem sucesso nas redes sociais, da “Tomato Girl Summer”, que simula vida de luxo no Mediterrâneo à “That Girl”, em que pessoas buscam a ‘melhor versão de si mesmas’ com uma rotina saudável e rigorosa - ambas já foram explicadas pelo Estadão.
Para a pesquisadora, a inserção do livro nas fotos também pode ser uma tentativa de entrar dentro de algumas dessas estéticas que vão e vem. Ela cita a “estética da produtividade”, por exemplo.
“É a estética dessa jovem hiperprodutiva. As fotos dela sempre tem um computador, uma agenda, um bloquinho de anotações, lista de afazeres, um copo de café, porque ela é muito produtiva”, diz a professora.
“A gente tem sido, como sociedade, cobrados para sermos produtivos e disciplinados. E produtividade tem a ver [não só] com trabalho, mas com os livros que a gente lê, com os filmes que a gente vê”, comenta.
“As influenciadoras, sobretudo, estão nessa lógica também. Quase como quem dita o que deve ser feito, o que é um símbolo de sucesso, o que se espera de uma pessoa que é produtiva. Elas também trabalham com esses signos na produção de conteúdo”, completa.
Gestão da própria imagem
Seja por influência do BookTok ou pela vontade de estar dentro de uma estética, a escolha de inserir um livro em uma publicação é sempre consciente. É uma decisão da pessoa que está por trás daquele perfil publicar ou não determinada foto. Mas o que se ganha com isso?
“Influenciadoras de moda - e influenciadores de maneira geral - estão sempre fazendo um trabalho de visibilidade, de gestão da própria imagem, ou seja, de escolher no que se joga luz e o que se mantém na sombra”, aponta Issaaf.
Ela explica que esse processo não é aleatório. Ele pode até ser feito de maneira “intuitiva, ou até amadora”, sem uma grande elaboração por trás, mas sempre tem um objetivo final - chamar a atenção de marcas, atrair mais interesse de um certo público, discutir determinados temas, e por aí vai.
Em agosto de 2023, a influenciadora Giovanna Ferrarezi, que tem mais de 619 mil seguidores, postou uma sequência de fotos de uma viagem. O terceiro slide mostrava uma página de um livro com um lago ao fundo. Na descrição de seu perfil, ela se autodenomina como “Rainha das Plublis” - uma alusão a “publi”, diminutivo de “publicidade”.
Giovanna não indicou de qual título se tratava, mas com uma pesquisa rápida a reportagem descobriu que o livro é A Natureza da Mordida, de Carla Madeira, escritora mineira e autora de Tudo é Rio, um dos livros mais vendidos do Brasil em 2021.
Issaaf destaca a importância de não estigmatizar e simplificar essa discussão. “Eu não quero reduzir. ‘Mostrou um livro, então é aquilo’. [Essa pessoa] pode querer um monte de coisa, mas pode não querer nada também”.
“Mas acho que também tem uma outra questão em jogo”, completa. “A moda sempre, historicamente, foi associada à futilidade e à frivolidade. Pode ser que jogar com essa possibilidade de falar de moda e de leitura - e mostrar um livro - também seja uma tentativa de evidenciar que produzir conteúdo sobre moda não tá no lugar da futilidade e do esvaziamento. Pode ser que seja possível nesse espaço, por exemplo, falar de leitura”.
Além disso, a especialista aponta que os livros também são uma estratégia de gerar engajamento com os seguidores, o que é muito importante para um influenciador. “Se eu mostro um trecho de um livro e não mostro a capa, é claro que as pessoas vão me perguntar que livro é aquele”.
E o mercado editorial ganha algo com isso?
Para Taila Lima, coordenadora de redes sociais da editora Intrínseca, a “mera aparição” de um livro nas redes sociais de uma influenciadora “não é garantia de um pico de vendas”.
“Isso vai depender do público que segue essa celebridade. O público está interessado em saber sobre essa parcela da vida da celebridade? É um público leitor ávido? E, se for, será que esse é o gênero mais interessante para ele? É um conjunto de fatores difícil de se atingir”, pondera.
Taila explica que essa aparição pode ser benéfica se for aliada a uma forte campanha de divulgação. “[Isso] contribui para a impressão de que todos estão falando sobre esse assunto, o que faz com que o leitor priorize a leitura desse livro em detrimento de outros tantos”, diz.
A literatura sempre conferiu um capital social ao leitor, e isso não é diferente para as celebridades. Além disso, o livro certo te aproxima do público que você quer atingir. Seja o best-seller do momento, uma biografia premiada ou um livro clássico do século passado, esses livros mostram o que chama sua atenção, o que te emociona, quem você é — ou quem está tentando ser.
Taila Lima, coordenadora de redes sociais da Intrínseca
A diretora de marketing da editora Sextante e do selo Arqueiro, Mariana Kaplan, afirma que a marca não percebe um impacto nas vendas quando “um macro influenciador ou celebridade simplesmente posta a foto de um livro”.
“No entanto, quando o influenciador faz um vídeo mais elaborado falando sobre o livro e de fato recomendando-o para seu público, observamos um impacto em vendas”, diz.
Ela cita alguns casos em que isso aconteceu: quando a influenciadora Camila Coutinho divulgou os livros A Marca da Vitória, biografia de Phil Knight, fundador da Nike, e Falando com Estranhos, do jornalista Malcom Gladwell, e quando Marcella Tranchesi falou sobre a obra O Poder do Hábito, de Charles Duhigg.
“[Nesses casos], o influenciador acaba virando um embaixador do livro, e fica claro para seus seguidores que aquele é um conteúdo genuíno, e não um publi. Ele mostra como o livro combina com seu estilo de vida, que é exatamente o que sua audiência quer consumir”, explica Mariana.
*Estagiária sob supervisão de Charlise Morais
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