O artigo abaixo foi escrito por Lucas Lima a convite do Estadão. O músico costuma postar indicações de livros e impressões sobre suas leituras no Instagram. Um destes posts, sobre A Morte de Ivan Ilitch, fez disparar as vendas de Liev Tolstoi no Brasil. O post seguinte sobre A máquina de fazer espanhóis, ganhou comentários do autor, Valter Hugo Mãe, e da ex-mulher, Sandy. Sobre o português, Lucas disse que “a arte salva”; sobre o russo, que o texto “deu uma chacoalhada legal no Lucão”. Qual é essa salvação? De onde vem a força para a chacoalhada? Qual é a relação de Lucas Lima com a literatura? No avião a caminho da Europa, onde faz uma turnê com Sandy, ele escreveu a resposta a seguir.
“É só ler!” Eu me lembro exatamente do dia em que descobri essa verdade e que mudou tudo. Eu tinha 16 anos e, como de costume, deixei pra folhear pela primeira vez o livro - que deveria ser comentado na aula do dia seguinte - somente na véspera.
O professor Lucas, do primeiro ano do ensino médio, tinha mandado a gente ler O Alquimista para a aula de Literatura e eu não li. Para não boiar na aula, fui lendo e pulando algumas páginas, só pra entender do que se tratava e me esconder atrás de algum detalhe decorado caso fosse requisitado. Eu era muito mais esperto que o professor Lucas.
Mas eu comecei a gostar. Comecei a ficar curioso, envolvido, empolgado. Aos poucos, parei de pular as páginas para não perder os detalhes e, pela primeira vez, li um livro de cabo a rabo numa tarde! Uau! Até então, todos os livros que eu tinha lido haviam sido um suplício e encarados única e exclusivamente como tarefas irritantes que os professores nos impunham. Mas esse não, esse eu gostei, esse era tri.
Na mesma tarde fui a uma livraria (aos mais jovens: livraria era algo tipo uma pop up permanente onde se vendiam versões físicas de e-books) e comprei tudo que eu achei do Paulo Coelho. Devorei em algumas semanas Nas Margens do Rio Piedra, Diário de um Mago, Brida, O Monte Cinco… Nossa, como eu era culto, lendo um livro atrás do outro…
Num desses, o autor citava como tinha sido impactado pela escrita do Oscar Wilde na juventude. Pensei: “Bah, se esse cara que eu tô amando gosta tanto assim desse outro cara, pode ser legal. E é só ler… Pera aí: eu posso conhecer absolutamente qualquer história já contada e registrada na história da humanidade? É só… ler?”
Aí, eu li. Li boa parte da bibliografia do Oscar Wilde e minha cabeça dos 16 pros 17 deu uma leve explodida, sendo Dorian Gray e Des Profundis os grandes destaques na época. Em algum dos textos que li, Wilde citava A Divina Comédia e esse nome não me era estranho, eu já tinha ouvido o professor Lucas falando deste livro, então pensei “ué, por que não? É só ler”.
Entendi? Não muito. Consegui saborear a quantidade de simbolismos e referências que tinham ali? Nem um décimo. Só que agora eu sabia que meio que dava pra ler qualquer coisa, era só ler. E se for grande, é só ler por mais tempo. E se não entender tudo, não tem problema, de alguma coisa serve, alguma coisa fica. Trinta por cento de alguma coisa é infinitamente mais do que cem por cento de nada. E quando a gente lê porque quer, não tem prova. É só pra gente.
É difícil para mim mensurar a importância que a leitura passou a ter, dali pra frente, na minha vida. É tão diferente de todas as outras maneiras de receber histórias, tão completa, tão precisa e ao mesmo tempo aberta, tão explícita e subjetiva. E aí quando a gente descobre que a maioria dos nossos filmes e séries favoritas são só versões menos completas, menos legais de livros…
Que nosso raciocínio começa a ficar mais organizado quando a gente é constantemente estimulado por ideias, frases e parágrafos que foram pensados e arquitetados com arte, com precisão. Que um livro, apesar de ser algo caro para a realidade brasileira, ainda assim, tem um custo-benefício inacreditável em termos de entretenimento, do tempo que dura esse entretenimento e de benefícios que te traz.
Aí a gente entende que dá pra gostar da Ilíada (que eu descrevia pros meus colegas de escola como “é tipo Cavaleiros do Zodíaco só que com mais falas!”) e ao mesmo tempo de Harry Potter; que ser um “leitor” não é um status, não é moeda social. Eu me lembro que nos anos 90 tinha uma vinheta na MTV que dizia algo como “desligue a TV e vá ler um livro”. Aquilo me irritava tanto! “Eu vim ver TV porque fui dar uma pausa na leitura, tchê!” Mas me incomodava também porque eu sentia um elitismo velado por trás daquilo, algo que até hoje enxergo em pessoas que se escondem atrás da leitura para embasar uma arrogância que, na verdade, vem de outro lugar.
Eu sinto que eu sou mais ou menos engolido pelo hábito da leitura dependendo do momento, dependendo, na verdade, da necessidade. Às vezes o mundo é demais, a vida é demais e a gente precisa sair um pouco. Não só de casa, do bairro, da cidade, mas de nós mesmos.
Já cheguei a passar dois anos sem levantar um livro e já tive épocas de acordar mais cedo do que precisava pra garantir meia horinha a mais de Frodo e Sam. Isso acontecia de forma inconsciente, mas hoje eu enxergo, reconheço isso e uso a leitura calculadamente, seja como ferramenta de saúde mental, de aprendizado ou só de puro prazer.
E é, sim, um dos meus maiores prazeres. Que combinado com outros, fica ainda mais incrível. Sou xingado por amigos quando escolho o livro do mês atrelado diretamente a viagens que faço. “Pô, deixar de ver e viver coisas em outro país pra ficar uma hora lendo na cafeteria?”. Sim, e é espetacular. Eu li Elena Ferrante sentadinho na Fontana de Trevi, li cartas da Clarice na frente do apartamento em que ela morava em Berna, li Luis Fernando Veríssimo em Bagé, li Dan Brown em Istambul procurando conspirações em cada esquina, li Ensaio Sobre a Cegueira no Brasil durante a pandemia (não foi das melhores ideias em termos de ansiedade, mas definitivamente adicionou intensidade à experiência…).
Tem uma frase que amo e que não lembro onde li que diz algo do tipo “um leitor vive mil vidas” e eu acredito demais nisso. Viver por um tempo na cabeça e no universo de alguém que foi inventado pela cabeça e universo de outro alguém tem, pra mim, um valor imensurável. E assim, quando eu falo que “é só ler” mudou minha vida, falo sem medo de exagerar. Para mim, entender isso foi tipo um superpoder que eu recebi aos 16 anos do professor Lucas quando ele me mandou ler O Alquimista e que - atenção pra forçada de barra aqui - transformou aquela tortura que era ler um livro, em ouro.
Depois desse contorcionismo aí, seguem 5 livros que eu amo:
- As Cosmicômicas (Italo Calvino) - para ver como tem gente melhor que a gente nesse mundo e o Calvino é um deles
- 1984 (George Orwell) - para entender tudo e se desesperar
- Fundação (Isaac Asimov) - idem
- 100 Anos de Solidão (Gabriel Garcia Márquez)- pra ver que o mundo pode ser bonito
- O Filho de Mil Homens (Valter Hugo Mãe) - idem
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.