Existem livros cuja leitura nos marcam para sempre. A reflexão é de Luiz Fernando Carvalho, e ele está falando de Lavoura Arcaica. O romance de Raduan Nassar foi uma revelação para ele. Luiz Fernando sentiu que devia se apropriar do livro, fazer dele a sua criação. Lavoura Arcaica, o filme, virou marco da chamada Retomada do cinema brasileiro, depois de todo aquele revertério que representou para a cultura o (des)governo Collor. É tempo de comemorar – os 20 anos do filme, os 45 anos da publicação do livro e os 85 anos de Raduan. Luiz Fernando foi tomar um café da manhã com Raduan. Ligou a câmera do celular. Conversaram de peito aberto. As pílulas do autor já foram apresentadas pelo canal Arte 1.
Nesta quinta, 10, o canal também mostra um material especial – um making of, mas não propriamente – sobre a filmagem de Lavoura Arcaica. Na sexta, passa o próprio filme. Luiz Fernando: “Há quase 20 anos (a produção é de 2001), o que mais chamava a atenção era a potência poética das imagens e dos diálogos. A força da palavra do Raduan. Hoje, nesse Brasil desgovernado, a leitura tornou-se necessariamente mais política.” A parábola do filho pródigo. O pai que não é somente o pai, mas representa a autoridade abusiva. Existe outro tema no Brasil de Jair Bolsonaro, pergunta-se Luiz Fernando Carvalho? Sim, existe, no próprio livro e filme, a mãe compassiva. Falar sobre a mãe toca em cordas profundas da intimidade do artista. Ele perdeu a mãe ainda criança. Ficou aquele vazio dolorido no peito. O repórter divaga. Doutor Jivago, o romance de Boris Pasternak filmado por David Lean. Não é o maior Lean, mas como é mesmo que começa? O enterro da mãe de Iuri, ele ainda criança. O plano dentro do caixão, o vento nas árvores. A ausência da mãe que Iuri, edipiano e adulto, convertido em Omar Sharif, tentará preencher na figura de Lara – a sublime Julie Christie.
Luiz Fernando não veste a carapuça de Édipo, nem supervaloriza o David Lean, já que Doutor Jivago não é um de seus filmes preferidos do grande diretor, como não é para o repórter. Mas a figura de Lara evoca um outro livro definidor para ele. Outra efeméride – o centenário de Clarice Lispector, neste dia 10. A Paixão Segundo G.H. O livro surgiu num ano emblemático, e problemático: 1964. Como pôde essa mulher mergulhar tão fundo na dor humana? Nas questões da identidade e da alteridade? A Paixão foi outra revelação para Luiz Fernando. Lavoura Arcaica, a autoridade, o pai. G.H., a mulher. Os dois filmes tornaram-se complementares no imaginário de Luiz Fernando. Filmar A Paixão Segundo G.H. virou outra necessidade – visceral. Ele fez o filme com a mais bela das atrizes – Maria Fernanda Cândido. Poucos diretores revelam-se mais encantados com uma atriz. “Maria Fernanda foi de uma entrega total, superou minha expectativa.” A atriz está nesse momento excepcional de sua vida e carreira. Foi a protagonista feminina de O Mafioso, de Marco Bellocchio, sobre o affair Tommaso Buschetta. Ela interpreta G.H.
O Mafioso deveria ter estreado no primeiro semestre, mas houve a pandemia, o isolamento social, o fechamento dos cinemas. O filme permanece inédito. A pandemia levou Luiz Fernando a alugar uma casa numa vila, em São Paulo. Com seu montador, e com toda segurança, editou a 'sua' Clarice. Até correção de colorido ele fez de forma remota, só falta a mixagem de som. O filme está parado, (quase) pronto. Ao retomá-lo, com sua fama de perfeccionista, Luiz Fernando não vai querer bagunçar tudo, começar de novo? O que outros temeriam, ele, de certa forma, espera que aconteça. Luiz Fernando Carvalho, seu nome é processo.
Fez Lavoura Arcaica diretamente do livro, sem roteiro. A ideia era fazer o filme com atores naturais, mas o pai tinha aquela presença, e aquela quantidade de texto. Um não profissional talvez não desse conta. Raul Cortez fez o papel, e por se tratar de um ator poderoso precisava de um contraponto, uma atriz à altura. Entrou Juliana Carneiro da Cunha. Luiz Fernando ainda pensava nos filhos como não profissionais, mas aí Raduan, o próprio, começou a lhe falar do olhar de Selton Mello para fazer o atormentado André. O elenco foi sendo completado com Simone Spoladore, Leonardo Medeiros. A família patriarcal, o pai patrão, a metáfora das relações de poder. G.H. - Clarice – insurge-se contra o patriarcado, e não apenas. Dá voz ao feminino. Uma idealização da figura da mulher? “Não, não idealização”, Luiz Fernando afirma, “mas uma figura vertical, longilínea, empoderada.”
Quem é G.H.? Identificada somente pelas iniciais, essa mulher aceita a demissão da empregada e tenta arrumar seu quarto. A essência do romance é a perda da individualidade de G.H, ligada a um episódio – ela encontra uma barata morta, esmagada na porta do guarda-roupa e, no dia seguinte, embora tente, não consegue transformar o que ocorreu em narrativa. Em crise, come a barata como um passo para o autoconhecimento. O fluxo de consciência permeia o livro. Cada capítulo começa com a frase que termina o anterior, como uma afirmação, ou para dar uma continuidade, e a essência da obra é a linguagem. As palavras afastam o ser de sua essência, ao mesmo tempo que oferecem a chave para atingi-la. Muitos críticos sustentam que a literatura de Clarice atinge nesse livro uma dimensão filosófica, comparável ao existencialismo de Jean-Paul Sartre.
A Paixão Segundo G.H. sempre teve a fama de ser infilmável, ao contrário de outros originais de Clarice Lispector - A Hora da Estrela, O Corpo -, mas Luiz Fernando assumiu o desafio e quem já viu garante que se trata de nova, valiosa e imensa contribuição do autor ao cinema braseiro. O pai/patrão de Lavoura Arcaica, a patroa/empregada, Janair, interpretada por uma refugiada, Samira Nancassa, de G.H. Os dois filmes não são exatamente adaptações, mas transcriações. Como diz o diretor, G.H. é a transformação fiel do texto em imagem, sem roteiro, embora exista um cocrédito de adaptação para Melina Dalboni. O mundo organizado de G.H. desorganiza-se. Uma frase de Lavoura Arcaica faz a ligação entre os dois filmes e livros. “Toda ordem traz em si a semente da desordem.” A Luiz Fernando o que interessa é esse diálogo como possibilidade de questionar, e entender, o Brasil. “Ambos os livros são visionários, expressam uma literatura que transcende o momento.” Ser fiel a Raduan e a Clarice é um desafio, mas também é uma recompensa. Luiz Fernando admite o medo de lançar o filme de Clarice antes da vacina. “É ingênuo acreditar que a reabertura das salas não acarretará mais mortes pela covid. O problema é que o lixo cultural de Hollywood precisa desaguar em alguma vala comum da América Latrina. G.H. vai na contracorrente. Coloca para nós, artistas e espectadores, o fluxo de uma consciência mais do que nunca necessária nesse momento de dupla crise, a sanitária e outra, que atravessa o Brasil.”