No avião a caminho do Brasil, Courtney Henning Novak vinha lendo um exemplar de Macunaíma, de Mário de Andrade (traduzido para o inglês por Katrina Dodson). Já é o quinto livro brasileiro que a influenciadora americana de 45 anos lê após viralizar com um vídeo em que declarava seu amor por Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), clássico de Machado de Assis (1839-1908).
Desde a publicação do post, em maio, ela ganhou milhares de seguidores brasileiros, entrou no fla-flu literário e opinou até se Capitu traiu Bentinho, conheceu as escritas de Clarice Lispector e Guimarães Rosa, começou a aprender português e recebeu um convite para visitar o País - nesta quarta-feira, 18, ela desembarcou em São Paulo para participar do Festival Literário do Museu Judaico (FliMUJ).
“Ainda estou tentando compreender tudo isso. É incrível. As pessoas continuam dizendo que o Machado já morreu. Ele escreveu há tanto tempo e, ainda assim, eu li o livro dele e agora estou aqui”, diz ela, ainda um pouco tímida, em entrevista ao Estadão no próprio Museu Judaico.
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Courtney participa, no sábado, 19h, de uma mesa intitulada “Por que não me avisaram que esse é o melhor livro já escrito?”, ao lado do influenciador e escritor Pedro Pacífico, o Bookster (os ingressos estão esgotados, mas outras palestras do festival ainda estão disponíveis). No domingo, 22, às 15h, ela também fará um bate-papo na Biblioteca Parque Villa-Lobos (as vagas são gratuitas, mas limitadas - veja aqui).
Um livro de cada país
Tudo começou quando a americana decidiu realizar um projeto de ler um autor de cada país do mundo. Courtney ficou dois anos com aquela ideia em mente, mas postergando, achando que seria chato e demorado. Até que, no final do ano passado, decidiu dar início ao plano.
“O mundo é cheio de gênios literários. E é simplesmente chato que a indústria editorial americana, as livrarias e a Amazon estejam sempre promovendo escritores americanos de novo e de novo e de novo. Há muito mais por aí se você procurar, muito mais do que a literatura americana e inglesa”, opina ela.
De Albânia a Botsuana, encontrou muitos bons livros, mas foi Machado mesmo que a conquistou. “Ele é tão vibrante. E é como se ele fosse seu tio doido. Você acabou de ser encurralado em uma festa e ele está te contando todas as suas loucuras depois de beber um pouco mais da conta. E é tão atual. Não sei te dizer quantas vezes fui verificar quando o livro foi publicado e quando ele estava escrevendo, porque parece algo que foi escrito há alguns anos”, diz Courtney com animação. O livro foi escrito há 143 anos.
Ela acredita, contudo, que a tradução para o inglês ajuda a tornar o livro mais fácil e a linguagem mais atual para ela: “As pessoas me dizem que é mais fácil ler em inglês se você é fluente do que é ler em português, porque é uma gramática mais antiga. Seria como eu ler Shakespeare no original, é brutal.”
A versão de Memórias Póstumas de Brás Cubas que a influenciadora leu foi traduzida por Flora Thomson-DeVeaux. Após a publicação de Courtney elogiando a obra, a versão do livro citada por ela se tornou a mais vendida da categoria “Literatura Latino-Americana e Caribenha” na Amazon dos Estados Unidos.
Ampliar o horizonte
O amor de Courtney pela literatura veio desde criança, incentivada pela mãe, que é formada em Letras. Agora, ela passa o hábito aos filhos, Pippa, de 11 anos, e Julian, de 8, que moram com ela e o marido, Nathan, em Pasadena, na California. A influenciadora também já publicou quatro livros de forma independente, dois romances e duas obras de não ficção que narram suas experiências com a maternidade. Recentemente, disse estar escrevendo um livro infantil para os filhos.
No meio de tudo isso, como sobra tempo para ler? “Eu não assisto muita TV. Eu pesquisei e o americano médio assiste cinco horas de TV por dia. E eu realmente só vejo cerca de uma hora no máximo - o resto é a maior parte do meu tempo de leitura. Mas eu também negligencio o trabalho doméstico. Eu me pergunto: quando eu estiver morrendo vou estar chateada porque o chão não esteve sempre imaculado? Não, você simplesmente tem que deixar essas coisas de lado”, diz.
Courtney não é uma pessoa famosa ou uma celebridade. E não está acostumada com a atenção que vem recebendo. “No começo, eu fiquei em choque. Me senti na equivalência mental da posição fetal. Não conseguia ler todos os comentários. A ironia é que sou uma devoradora de livros. Estou acostumada a sentar em uma poltrona fofa e ler sozinha.”
E como se conta para a sua família que seus vídeos viralizaram em outro país? A situação foi inusitada, mas os parentes dela logo chamaram a atenção para o fato de que os comentários eram todos positivos. “Não é como é nos Estados Unidos, em que você receberia 50% ou mais de comentários maldosos. Isso foi uma experiência maravilhosa”, explica.
A influenciadora diz que vê o Brasil como “amigável e vibrante”, mas confessa que não foi sempre assim. “Isso se deve aos livros e às interações que tive nas redes sociais. As imagens que eu tinha antes bem negativas - vindas da mídia americana sobre ser apenas perigoso e não um lugar que deveria estar no radar de um americano para visitar.”
“Eu tinha primos que estiveram aqui para um casamento 20 anos atrás e foi um grande evento. Eles foram ao Rio e era algo do tipo ‘você só pode ir aos lugares neste ônibus que designamos’. E é muito fixado na ideia de ‘você vai entrar em uma favela e nunca mais vai sair’”, conta, antes de lembrar de outra imagem que associava ao País: o futebol.
Ela afirma que a literatura foi essencial para “expandir seus horizontes”, como descreve - e reconhece a dificuldade de encontrar títulos brasileiros (e de outros países) traduzidos para o inglês. “As pessoas frequentemente perguntam: como você encontra o livro? Como você escolhe? Bem, às vezes, há literalmente um autor que foi traduzido, dois ou três no máximo. Você está pegando o que eles [a indústria dos EUA] decidiram.”
Courtney diz isso vai além do Brasil: “Eu amei o livro que li de Bangladesh. É como um argumento feminista contra um casamento muçulmano tradicional. Mas muitas pessoas de países muçulmanos me perguntaram por que não leio algo sobre uma mulher em um casamento muçulmano feliz e tendo sucesso. E eu fico tipo: ‘bem, esses livros simplesmente não são publicados. Não consigo encontrá-los.’”
Festival judaico
A participação no Festival Literário do Museu Judaico é simbólica para a americana, que é meia judia. “Foi muito especial que meu primeiro convite para vir ao Brasil tenha sido feito também por essa herança - e que eu pudesse unir dois amores tão importantes”, diz. O FliMUJ teve início na quarta, 18, e vai até sábado, 21, e discute, com autores nacionais e internacionais, temas como guerras, crises ambientais, políticas e sociais e desigualdades históricas - além de literatura, claro.
“Neste momento, a situação de Israel está muito complicada e volátil nos EUA, e há opiniões muito divididas. Alguém me marcou [em uma publicação] e disse que se inspirou em mim para iniciar um projeto ‘Leia ao redor do mundo’. Ela disse que não estava incluindo Israel e respondi que ela estava perdendo o ponto da coisa”, conta Courtney.
“Se você vai começar, [teria que ler] mesmo que não concorde com a política de um determinado país. Eu não teria lido a China, por exemplo. Quero dizer, você está construindo pontes. E muitos dos escritores importantes não são necessariamente os principais. Você sabe... homens brancos mortos”, continua.
Neste mesma missão de conhecer diferentes vozes, a americana pretende ler mais livros brasileiros - não antes de ler um pouco mais de Machado. Os próximos na lista são O Alienista e Quincas Borba (que vai virar um videogame que ela foi convidada a testar). “Quero começar a ler autores mais recentes também. E tenho um pouco de Clarice na minha mochila, além de uma longa lista de autores. As pessoas vivem me recomendando.”
Ela diz ainda que a literatura brasileira é muito vibrante e viva. “Ela simplesmente brilha. É engraçada, tem um senso de humor muito bom. E é muito inteligente sem fazer você se sentir burro. Essa é a questão. É uma das coisas que eu adorei no Machado... o fato de ele estar fazendo todas essas referências. Muitos autores americanos, se fizessem isso, seriam do tipo: ‘olhe para mim, sou tão inteligente’. E Machado é do tipo: ‘venha passear’. Há algo de muito acolhedor nisso”, completa.
Festival Literário do Museu Judaico - FliMUJ 2024
- 18 a 21/9, das 10h às 18h (última entrada às 17h30).
- Museu Judaico de São Paulo (Rua Martinho Prado, 128, Bela Vista)
- Gratuito
- Consultar mesas e horários
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