Opinião | Mafalda: A menina que não envelhece e, aos 60, continua a questionar o mundo

Criada por Quino, elogiada por Umberto Eco e ícone de muitas gerações, Mafalda surgiu em 1964, fruto do acaso e virou um fenômeno editorial e de marketing; conheça a história da personagem que fez 60 anos em 2024

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Por Wilson Alves-Bezerra
Atualização:

A fama de Mafalda, personagem de Quino (1932-2020), é muito singular no Brasil. Comparada a outros personagens estrangeiros da mesma época, como Snoopy, Calvin e Recruta Zero, percebemos que estes últimos ficaram conhecidos entre nós através da publicação em jornais (esses três, casualmente, seguem nas páginas do Estadão). Mafalda, por outro lado, nem nos anos em que era publicada na Argentina (entre 1964 e 1973), nem depois frequentou nenhum periódico nacional.

Sua fama foi sobretudo na América Latina e na Europa, onde, já em 1968, recebeu um prólogo do italiano Umberto Eco, quando a editora Feltrinelli a publicou pela primeira vez. Sua primeira aparição entre nós foi discreta e aconteceu entre os anos de 1973 e 1975, na revista Patota, e em cinco álbuns, editados por Henfil, no início dos anos 1980 para a Global. Uma edição mais sistemática só viria no fim dos anos 1980, pela Martins Fontes, que segue reeditando os álbuns até hoje.

Personagem infantil, jamais!

Mafalda nasceu em 1964, fruto do acaso. A empresa de eletrodomésticos Siam Di Tella, que fabricava a marca Mansfield, encomendou de Quino que criasse uma tirinha com uma “família-tipo” – pequeno-burguesa composta por pai, mãe e filha – que vivesse situações cotidianas e subliminarmente incentivasse o consumo dos produtos da marca. Inspirado nos personagens do norte-americano Charles Schulz (1922-2000), que havia criado Snoopy e sua turma em 1950, surgiram a Mafalda e seus pais.

Criação da Mafalda, famosa personagem de Quino, completou 60 anos em 2024. Foto: Reprodução/Quino

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O nome se devia à necessidade de que o início do nome da protagonista fosse igual ao da marca. O jornal Clarín começou a publicar as tirinhas, mas logo rescindiu o contrato por entender que estavam publicando propaganda de forma gratuita. Assim a família consumidora inveterada submergiu no anonimato.

O chefe de redação do jornal Primera Plana naquele mesmo ano propôs a Quino que reativasse a tirinha nas páginas de seu jornal. Assim, em 29 de setembro, Mafalda renascia: o mesmo traço, a mesma família, o mesmo lar pequeno-burguês, mas agora com liberdade criativa. Mafalda tornou-se uma garotinha atônita diante dos acontecimentos do seu tempo: a chegada dos estadunidenses à Lua, a guerra do Vietnã, a guerra fria, a música dos Beatles.

Filha de um funcionário de agência de seguros e de uma dona de casa, os valores que a formavam estavam longe de ser os da extrema-direita que tomava o poder em diversas ditaduras pelo continente, e também distantes dos da esquerda revolucionária: o conhecimento do mundo chegava a Mafalda pelo rádio e a televisão.

Nesse microcosmo, nasceu uma das características marcantes de Mafalda, o inconformismo e o desejo de questionar tudo: as desigualdades, o poder, os políticos, os pais. A base é uma certa crueza, despida de rodeios: a criança simplificava problemas complexos e por vezes reproduzia algum lugar comum burguês, noutras, pela não observância das convenções sociais, atingia o âmago dos preconceitos sociais de modo certeiro.

Tirinhas da Mafalda publicadas pelo Estadão ao longo dos anos Foto: Quino/Acervo Estadão

Assim, sem travas, pruridos ou noção, Mafalda ganha a dimensão do D. Quixote, de Cervantes, ora nos comovemos com seu idealismo, ora rimos do seu ridículo. E seria preciso acrescentar, através dela também rimos ou nos lamentamos da nossa própria condição. É poder sustentar essas contradições que conferem à personagem uma dimensão cativante, pois Mafalda não se furta ao questionamento jamais. O mecanismo da autoironia, por outro lado, impede que a tirinha derivasse para um lamento contemporâneo de rede social.

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A fúria de Mafalda não escapou ao semiólogo Umberto Eco que, em 1969, no prólogo Mafalda, a contestadora, disse: “Mafalda é uma verdadeira heroína ‘rebelde’, que rejeita o mundo tal como ele é.” Para ele, diferentemente do Charlie Brown, de Schulz, que buscava o bem-estar e a adaptação; Mafalda rejeita adaptar-se ao mundo que lhe é oferecido: “Na verdade, Mafalda tem ideias confusas em matéria de política. Não consegue entender o que acontece no Vietnã, não sabe por que existem os pobres, desconfia do Estado mas têm receio dos chineses. Tem, por outro lado, uma única certeza: não está satisfeita.”

Mafalda, por seu criador

Embora ficasse muito satisfeito com o sucesso de sua personagem, Joaquín Lavado, filho de andaluzes que migraram para uma cidade argentina fronteiriça com o Chile, Mafalda não era sua favorita. Identificava-se mais com Felipe, o personagem que sonha, não faz nada e é atormentado pela lição de casa. E divertia-se muito mais com Manolito, filho de comerciantes e fã de Rockefeller, que queria ser dono de uma cadeia de supermercados. Na escola, tinha dificuldades com ortografia e geografia, e perguntava-se, cheio de empáfia: ‘Para que serve saber que o Everest é um rio navegável?’ Para Quino, Mafalda sempre corria o risco de enfrentar injustiças.

Pois em 1973, esgotado com o sucesso mundial da personagem, temeroso de se tornar seu escravo e de começar a se repetir, decidiu pôr fim à série. Numa entrevista à televisão espanhola em agosto de 1977, confessou a Joaquín Soler Serrano, o que ele realmente gostava de desenhar: “Eu prefiro que minhas coisas sejam temas permanentes. Meus temas são de um homem numa mesa e um homem baixinho na frente. Essas relações entre poderosos e frágeis. Eu gosto muito disso.” Para logo arrematar, deixando claro com quem de fato se identificava: “Eu sou fraco, frágil, tenho medo da vida”.

Mafalda depois de Mafalda

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Quino, nos anos setenta, dizia não querer ser lembrado apenas por Mafalda, porque fazia muitas outras coisas. Porém, o futuro foi-lhe indiferente, levando-o, inclusive, a estampar sua cativante personagem em diversas campanhas: na do retorno à democracia na Argentina, sob o presidente Raúl Alfonsín, em 1983; numa campanha de arrecadação da Cruz Vermelha Espanhola, em 1991; numa série de selos postais, na mesma época, para os Correios Argentinos; numa campanha que as crianças frequentassem o Teatro Colón, em 1994. No ano seguinte, a coisa fica mais séria, e é criada, em Buenos Aires, a Praça Mafalda, no bairro Colegiales. Até que em 2009, na esquina das ruas Chile e Defensa, a prefeitura municipal de Buenos Aires, instala uma escultura de Pablo Irrgang, que reproduz a personagem.

Em setembro deste ano, como parte das celebrações dos 60 anos da personagem, uma cópia da pequena Mafalda, de 23 quilos, feita de “resina, com pigmentos de pó de quartzo, [que] lhe dá muita resistência para resistir ao amor das pessoas”, segundo o escultor, veio morar definitivamente na livraria Martins Fontes da Avenida Paulista, em São Paulo.

O artista Pablo Irrgang com sua escultura da personagem Mafalda. Foto: João Caldas/Divulgação

Fenômeno editorial e de marketing, Mafalda desprende-se de seu criador e passa a existir no imaginário pop. No momento em que escrevo estas linhas, já há 12 dessas esculturas espalhadas pelo mundo, três apenas na Espanha, fazendo alegria de crianças e adultos, como um ponto turístico, fotografável e instagramável. Ela serve como uma espécie de garota propaganda para eventos literários, como feiras do livro, onde se vendem seus livros e outros souvenires. Liberta de seu espírito irrequieto e contestador, tornada maior que Quino, a bonequinha sorri.

Para conhecer os pontos turísticos de Mafalda em Buenos Aires

  • A primeira escultura de Mafalda, Manolito e Susanita fica na esquina das ruas Chile e Defensa, em San Telmo.
  • Casa de Quino. Na Rua Chile, 371, em San Telmo, fica o edifício onde viveu o criador de Mafalda. Há no local uma placa que diz: “Aqui viveu Mafalda”.
  • Praça Mafalda, criada em 1995, no bairro Colegiales.
Opinião por Wilson Alves-Bezerra

Escritor, tradutor e professor do Programa de Pós-graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal de São Carlos

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