Mais da metade dos brasileiros não lê livro, aponta pesquisa; Bíblia é leitura mais marcante

Pesquisa Retratos da Leitura 2024 mostra que Brasil perdeu 6,7 milhões de leitores. ‘Não conseguiremos enfrentar novos desafios com receitas antigas’, diz Zoara Failla, coordenadora do estudo

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Foto do author Sabrina Legramandi
Atualização:

A última Bienal do Livro de São Paulo bateu recordes de público e de venda de livros. Editores felizes, leitores satisfeitos, autores se sentindo celebridades. Mas a grande movimentação cultural, que reuniu mais de 700 mil pessoas no Distrito Anhembi, não passa de uma bolha, mesmo que uma grande bolha.

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Nesta terça-feira, 19, o Instituto Pró-Livro, o IPEC e o Itaú Cultural apresentaram os resultados da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil. Realizado a cada quatro anos, o estudo busca traçar um perfil do leitor brasileiro, acompanhando os níveis de leitura no País. Trata-se de uma pesquisa é estatística: para se chegar aos resultados, é definida uma amostra proporcional aos habitantes dos estados e regiões brasileiras. É identificado o perfil de cada entrevistado com base em fatores como faixa etária, escolaridade e renda e, a partir daí, a equipe faz uma estimativa populacional.

Foram ouvidas 5.504 pessoas em 208 municípios. E o resultado apontado pela Retratos da Leitura 2024 é catastrófico em vários níveis. De 2019 para cá, por exemplo, o Brasil perdeu 6,7 milhões de leitores.

A queda é generalizada, ocorreu em todas as classes, faixas etárias e níveis de escolaridade. Segundo o estudo, 53% da população não leu um livro ou parte de um livro nos últimos três meses, o que classificaria, segundo a pesquisa, a pessoa como leitora. Se considerar a leitura de um livro inteiro, o percentual de leitores cai para 27%. É a primeira vez, em seis edições, que o número de não leitores superou o de leitores.

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Registro da Livraria da Vila, em São Paulo. Pesquisa Retratos da Leitura revelou que grande parte dos brasileiros não lê. Foto: Werther Santana/Estadão

As quedas são significativas, inclusive, entre as pessoas em idade escolar. Na faixa etária dos 5 aos 10 anos, por exemplo, a redução é de nove pontos percentuais e dos 14 aos 17, a queda é de cinco pontos percentuais. Vale destacar que a pesquisa considera a leitura de livros didáticos como parte da investigação.

O estudo ainda mostra que o brasileiro lê, em média, 3,96 livros por ano, índice menor do que o registrado em 2019, quando o brasileiro lia 4,95 livros por ano. O livro preferido dos entrevistados também chama a atenção. A Bíblia dominou todos os índices da pesquisa – figurando em perguntas como “Qual foi o livro mais marcante que você leu?” ou “Qual o livro ou o gênero que você mais gosta?”.

A Bíblia aparece em primeiro lugar desde a primeira edição da Retratos da Leitura, em 2007. Os livros religiosos também são muito citados desde 2015. Na pesquisa divulgada neste ano, os evangélicos e os espíritas são os mais escolhidos, enquanto os católicos enfrentaram uma leve queda.

E o efeito pandemia?

Em 2020, o mercado livreiro nacional experimentou um fenômeno importante: o crescimento de 7,6% no número de exemplares vendidos. A pandemia podia ter reaproximado o brasileiro dos livros. Foi assim em outros mercados internacionais. Nos anos seguintes, novos registros positivos: crescimento de quase 5% em 2021 e de mais de 6% em 2022. A bonança acabou em 2023, quando o varejo de livros registrou queda de 13,41% no volume de livros vendidos.

Isso, em certa medida, se vê representado no estudo de agora. Apesar dos números positivos nos anos seguintes à pandemia, o novo patamar de leitura não se concretizou e o brasileiro não só tem comprado menos livros, como lido menos também.

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Zoara Failla, coordenadora da Retratos da Leitura, diz que o incremento da venda de livros durante o período aconteceu, especialmente, para a população já leitora. A faixa etária de 5 a 10 anos, que enfrentou uma queda significativa nos índices, inclusive, teve mais dificuldade para acessar livros na pandemia.

“Essa ‘garotada’ ficou sem sala de aula, sem biblioteca... E nós sabemos que é pequeno o percentual daqueles que conseguiram acompanhar as aulas online”, analisa Zoara. “Houve muita restrição em relação ao acesso ao livro.”

Criança lê no departamento de leitural infantil da Biblioteca de São Paulo, no Parque da Juventude. Foto: Sergio Neves/Estadão

Essa tendência também pode ser explicada pela concorrência pelo tempo de atenção do leitor. E a pesquisa investiga isso. 46% dos entrevistados declararam que não leram mais por falta de tempo.

E o que as pessoas estão fazendo no seu tempo livre? A Retratos da Leitura mostra que 78% dos entrevistados gasta esse tempo na internet, seja acessando o WhatsApp ou Telegram (71%) ou navegando pelas redes sociais (49%). São significativos também os que assistem televisão (71%), escutam música ou rádio (60%) ou assistem a vídeos ou filmes em casa (53%).

A coordenadora da pesquisa afirma que isso impacta, especialmente, os mais jovens. As crianças em idade escolar não têm a chance de desenvolver o gosto pela leitura, já que são estimuladas a ficar no celular. “Está crescendo o percentual nessa faixa etária daqueles que dizem que estão nos games, que estão assistindo a vídeos. Então, em vez de os pais estarem apresentando livro para entretenimento, fica mais fácil oferecer o celular com jogos e vídeos”, diz ela.

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A internet e as redes sociais estão roubando o tempo do livro.

Zoara Failla, coordenadora da pesquisa Retratos da Leitura

Dificuldades para ler

Quando perguntados se têm alguma dificuldade para ler, 18% respondeu que lê muito devagar, 14% não tem concentração suficiente para ler e 8% afirmou não compreender a maior parte do que lê. Ou seja, 36% dos respondentes têm alguma dificuldade de habilidade para leitura. O resultado pode estar com consonância com o Indicador de Anafalbetismo Funcional (Inaf). Conforme o último levantamento, de 2018, o País tem cerca de 30% de analfabetos funcionais, entre analfabetos plenos e em nível rudimentar.

Zoara analisa que esses dados mostram que uma parte dos brasileiros enfrenta, inclusive, obstátulos para atividades básicas do dia-a-dia. “Nós verificamos até uma dificuldade dessas pessoas não conseguirem ler um contrato ou uma indicação médica, muitas vezes. Imagina ler um livro”, diz.

O avanço das notícias falsas também está intimamente ligada a esse fator, segundo ela. “O grande problema, além de ele [o entrevistado] não entender o conteúdo daquilo que ele está lendo, é a capacidade crítica do que ele está lendo. Por isso, também, se fala tanto em fake news”, afirma.

Estados mais leitores

Santa Catarina lidera o ranking de leitores, com 64% da população declarando-se leitora. Paraná e Ceará aparecem na sequência, ambos com 54%. Vale destacar, ainda, Espírito Santo, com 53% de leitores, Goiás e DF, empatados, com 52%.

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Os estados com os menores índices são Rio Grande do Norte (33%), Mato Grosso (36%), Piauí (37%), Paraíba (38%), Alagoas (39%) e Sergipe, Amazonas e Mato Grosso do Sul (40%). O Nordeste detém os piores índices de leitura desde a primeira edição – apesar de, neste ano, o Ceará ter visto um aumento significativo de leitores.

Zoara diz que os baixos índices de leitura na região estão ligados aos fatores renda e letramento. “É no Nordeste que encontramos as piores avaliações de Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), com exceção do Ceará e Pernambuco, que estão, felizmente, conseguindo reverter tudo isso e ter uma avaliação melhor”, comenta.

Registro da biblioteca comunitária Livro Livre Curió, em Fortaleza, no Ceará. Foto: Bruna Sombra

Os altos índices dos estados do Sul, porém, não significam que grande parte da população lê livros de literatura. Conforme a coordenadora da pesquisa, o percentual são de pessoas mais velhas e que, em sua maioria, são leitores da Bíblia. “Precisamos tomar um pouco de cuidado com os percentuais mais altos. É importante saber qual é o perfil do leitor naquela região, naquele estado”, diz.

Você gosta de ler?

A Retratos da Leitura investiga também o gosto pela leitura. A edição de 2024 mostrou que aumentou o número daqueles que declararam não gostar de ler. Em 2019, era 22% e agora subiu para 29%.

A pesquisa pergunta ainda “Qual é a principal razão para ler?”. Do total de leitores, 24% diz que lê por gosto. No entanto, esse gosto pela leitura diminui com a idade. Entre as crianças de 5 a 10 anos, 38% diz que lê porque gosta. Durante a adolescência e até os 24 anos, esse índice varia de 31% a 34%. Nas faixas etárias seguintes, o estudo mostra redução na menção a essa motivação: 21% entre 25 e 29 anos, 19% para quem está na faixa dos 30, e segue estável em 17% para todas as faixas etárias acima de 40 anos.

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A coordenadora da pesquisa diz que a pergunta sobre “Como manter esse gosto pela leitura ao longo dos anos?” é essencial. Se somados o percentual das pessoas de 5 a 10 anos que afirmam que “gostam muito” ou “gostam um pouco” de ler, a taxa ultrapassa 80%.

A pouca valorização do livro, seja no ambiente escolar ou no familiar, pode explicar a queda com o avanço da idade. Segundo ela, há muito mais leitores entre aqueles que foram e são estimulados pela família a ler.

Leitura em sala de aula

Outra pergunta feita pela Retratos da Leitura é onde os leitores costumam ler. O que chama a atenção é a redução do número de pessoas que apontam a sala de aula como lugar de leitura. Em 2007, 35% citou esse espaço escolar. Em 2011, foi 33%. Na edição seguinte, de 2015, as menções correspondiam a 25% da população. Em 2019, foram 23%. E agora foi de 19%, o menor índice já registrado.

Criança na Livraria Miúda, na zona oeste de São Paulo. Foto: Taba Benedicto/Estadão

A escola é o principal espaço para desenvolver o gosto pela leitura e, segundo Zoara, 60% das escolas de ensino básico no Brasil não tem uma biblioteca. O baixo percentual de professores que se declaram leitores também preocupa. A coordenadora aponta que “o repertório de leitura dos professores é muito parecido com o repertório de leitura dos brasileiros em geral”. E o hábito de leitura ainda é dificultado pela dupla jornada da profissão.

Dentre as pessoas que declararam se dedicarem ao ofício, uma parte significativa disse preferir a Bíblia, autoajuda ou livros religiosos. “Com esse repertório, fica muito difícil de o professor desenvolver uma atividade que seja envolvente e estimulante. [...] Ele vai ter dificuldade de indicar livros interessantes e significativos para aquelas faixas etárias ou para a localização onde aqueles estudantes moram”, diz a coordenadora da pesquisa.

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E o futuro?

A influência da internet e das redes sociais é um fenômeno novo mostrado na atual edição da Retratos da Leitura. Zoara afirma ser difícil mudar esse cenário, mas, talvez, a chave esteja no gosto cada vez maior pelo compartilhamento. “As pessoas, o tempo todo, estão compartilhando suas ideias, suas viagens, suas fotos. Eu acredito que aí está o segredo: compartilhar. Um bom mediador e um bom professor têm que saber usar essas novas ferramentas”, diz.

As bibliotecas, inclusive, também precisam ser lugares de troca de ideias e livros. “Não adianta você ter uma ‘biblioteca do silêncio’. Aquela biblioteca que só empresta livros”, diz ela. “A biblioteca tem que ser, mais do que nunca, o espaço do barulho, das trocas, do compartilhamento. [...] Tem que ser um polo dinamizador de cultura, de encontros da comunidade e de construção de conhecimento.”

Registro da Livraria das Perdizes, recém-inaugurada em São Paulo. Foto: Daniel Teixeira/Estadão

A coordenadora da pesquisa cita como exemplo os projetos de bibliotecas comunitárias. Durante a abertura da Bienal do Livro de São Paulo, o governo anunciou que pretende implantar o projeto no Minha Casa, Minha Vida em municípios onde não há bibliotecas em funcionamento – Zoara diz que as propostas precisam ser efetivas e implantadas em um prazo curto.

Ela aponta que ainda faltam campanhas para a “revalorização do livro”. Segundo a coordenadora, é preciso “valorizar o que o livro oferece e que os outros suportes, como o Google, não conseguem oferecer”. Nas famílias, os livros também podem se transformar em brinquedo para as crianças, em presente como forma de demonstrar carinho ou até em memórias afetivas.

Se nós continuarmos com as receitas antigas, não vamos conseguir enfrentar esses novos desafios. Vamos continuar perdendo a ‘garotada’ que gosta de ler.

Zoara Failla, coordenadora da pesquisa Retratos da Leitura

Os principais pontos da pesquisa Retratos da Leitura 2024

  • Houve uma redução de 6,7 milhões de leitores no Brasil nos últimos quatro anos;
  • 53% das pessoas não leu nem partes de um livro nos três meses anteriores à pesquisa;
  • 27% dos brasileiros leu livros inteiros nos três meses anteriores à pesquisa;
  • A média de livros lidos diminuiu de 2,6 para 2,4 nos últimos três meses;
  • A faixa etária de 11 a 13 anos é a que mais lê;
  • Santa Catarina é o estado que mais tem proporção de leitores (64%);
  • Rio Grande do Norte é o que menos possui proporção de leitores (33%);
  • A faixa etária de 5 a 10 anos é a que mais declarou ler por gosto;
  • A edição registrou o menor índice dos que declararam lerem na escola (19%);
  • 87% dos leitores disse usar a internet no tempo livre; 37% afirmou ler livros.

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