Opinião | Marcelino Freire leva para ‘Escalavra’ um misto de fúria, solidão e esperança; conheça o livro

Escritor pernambucano usa palavras desérticas que evocam imagens concretas, duras e incômodas, carregadas da poesia que arrepia a alma, para escrever sobre um pai e um filho que moram num certo fim do mundo, no interior do inferno

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Por Ney Anderson

Dor, revolta, raiva, sofrimento, luta, vingança. Essas são algumas das palavras presentes constantemente no vocabulário literário de Marcelino Freire. Com o novo livro Escalavra, a expressão “megalítico” se junta às tantas outras para moldar o universo ficcional do autor que é desde sempre inconformado com a vida. Nesta novela, Marcelino leva para a sua obra um misto de fúria, solidão e esperança.

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Ao contar a história de José de Arimateia Coriolano e Dagoberto, pai e filho, Marcelino faz uma espécie de retorno às próprias origens, não necessariamente um trabalho autoficcional, mas as linhas invisíveis do seu universo se entrelaçam de uma maneira muito engenhosa neste novo trabalho. Nesta novela megalítica, como o autor define, Marcelino amadurece a sua voz.

É uma narrativa que vai sendo moldada a partir de pequenas frestas. Pedra sobre pedra, palavra sobre palavra sendo escalavrada por vazios, formando uma estrutura literária que mais salta aos olhos e sobra aos ouvidos, com a sonoridade constante do que está sendo dito e não dito.

A princípio a leitura da Escalavra pode causar um certo estranhamento, mas a tarefa do autor é tentar criar em cima de dois personagens silenciosos, que pouco falam, mas muito observam, onde o trabalho e a força física são componentes principais da existência deles.

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Os sonhos vêm justamente preencher a rotina da pobreza, da fome, da miséria e do presente sem sombras de futuro. Curiosamente a ponte para o futuro reside exatamente na biblioteca na casa de um professor, em que o jovem entra e folheia livros, páginas e começa a ver que a vida não é só aquilo, não é só ali. A vida é muito maior, muito mais ampla, ele reflete, mesmo tão criança.

O escritor Marcelino Freire, autor de 'Escalavra', em 2022. Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Escalavra é sobre um pai e um filho que moram num certo fim do mundo, no interior do inferno. Pai pedreiro, faz tudo, que se junta a outros para obedecer, trabalhar e ganhar alguns trocados. Vivem em uma casa dentro da usina extinta, numa relação silenciosa, monossilábica, feita por códigos. “Ei, diabo”, Ei, ei”, “Avexe-se”. Eles não têm tempo a perder. Mas qual tempo é esse? Marcelino Freire, aliás, trabalha muito bem a questão do tempo-espaço.

Atingir a maturidade literária vai muito além de saber contar uma história com início, meio e fim. Mas compreender que a ficção, muito mais do que uma história bem contada, é a arte que se aproxima da alma humana com todas as suas inquietações, desilusões e contradições.

É através das frestas da memória e da solidão desses dois personagens que fantasmas vão sendo desenterrados. Nada é totalmente explícito ou revelado nesta história. Assim como na vida, a narrativa de Marcelino Freire entra por vielas, becos escuros, salas vazias da memória e da existência.

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É um livro que o autor não dedica a ninguém, já nasce com essa crueza, no deserto da alma, do esfacelamento do ser. Escalavra é feito a partir de pequenos afluentes que vão sendo formados na aridez da terra seca, do coração duro dos personagens e nas memórias dolorosas, onde viver é o maior mistério, a principal força do ser humano.

Narrativa moldada sob o signo da incompletude, com o simples desentendimento entre pai e filho causando enorme rebuliço em algo que já era por um fio, muito frágil na relação, depois da morte da mãe do garoto em condições suspeitas.

São palavras desérticas equilibrando essas sensações de falta, do vazio marcado pela ausência da mãe morta. Por conta disso, da não informação sobre a morte da mãe de Dagoberto, inicia-se o afastamento entre os dois. Pedras, rudezas, que tentam se equilibrar nessa relação corroída, mas que desmorona por falta de base sólida.

A imagem da criança brincando, logo no início, em um pântano seco, inventando deuses e animais para fugir das pedras que o pensamento carrega, é potente. O leitor vai entrando por essa cantoria sugerida, oca, prosa poética que transfere para o suor a sua verdadeira força e ausência de tantos sentimentos.

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Pai e filho que trabalham, trabalham e encaram o mundo de maneiras distintas. Na abertura da obra, nos evoca, de cara, entidades, para iniciar o percurso da narrativa, mostrando a construção dos túmulos da antiguidade, as pirâmides do Egito. Os mortos que inevitavelmente surgem no processo de levantar essa estrutura-prosa.

O narrador, aliás, compara a missão de levantar a história com a construção megalítica das pirâmides, em um trabalho manual de grande esforço físico e intelectual para as pedras-palavras se sustentarem sozinhas após o trabalho cuidadoso, lento e impiedoso.

Criação sofisticada

Muito mais do que cenários bem construídos, cenas bonitas ou enredos mirabolantes, é na simplicidade dos personagens que o autor atinge um grau sofisticado de criação, trazendo para perto do leitor a humanidade dessas pessoas desfiguradas por sofrimento e luto. Mas imprimindo a sua marca no mundo de uma forma indelével, igual a uma enorme cicatriz que atravessa o corpo e alma.

Existem pequenas intervenções entre os capítulos, com o autor entrando na história em primeira pessoa para falar sobre aspectos íntimos da própria vida e da sua arte. A chegada dele em São Paulo, vindo de Pernambuco à megalópole nos anos 1990. Círculos que vão se abrindo e se fechando e o ato criativo sendo mostrado.

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“Escrever é dizer outra vez o que a gente nunca conseguiu dizer”; “toda leitura é silenciosa”. O autor mesmo ironiza sobre a própria obra. “Mais um livro sobre a pobreza, sobre a miséria, sobre a tristeza. Não já acabou a fome?”. E então: “Um livro uma lata d’água na cabeça”.

Capa de 'Escalavra', livro de Marcelino Freire Foto: Amarcord/Divulgação

A linearidade de uma história dessa não daria o mesmo peso comovente da fragmentação do ser humano sufocado pela vida maltratada, mas, mesmo assim, com um fio de esperança. Pai e filho se bastam por si mesmos, das lembranças esfareladas, das pessoas devastadas. O silêncio da fome sempre à espreita. Poucas sílabas, adjetivos rasos, sentenças poucas. Alguém que já não tem mais um horizonte a desbravar, apenas vivendo o hoje. Ambos transitando na cidadela chamada Jabitacá, caçando preás e outros animais para a sobrevivência.

O pai prefere não falar, já que não é mesmo ouvido, como tantos outros brasileiros invisíveis. Apenas obedece e segue o caminho do trabalho pesado. O céu azul, belo, contrastando com o íntimo sempre rude e austero de José de Arimatéia. O narrador diz que em todo o passado a mesma guerra, pré-histórica, da subsistência.

Abandono, ruínas e Dom Quixote

É um livro sobre abandonos, do pó ao pó. Em Escalavra é tudo envolto em ruínas, vestígios do passado, escombros de antigamente afundados na esperança da revolução eólica que chega na região, do desenvolvimento minguado que os poderosos querem implantar naquele local.

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Vozes que ecoam sem parar, na oralidade carregada de sangue. Livro povoado por morte, visões e múmias. O menino que busca desvendar coisas, como a morte da sua mãe, juntando quebra-cabeças, de peça em peça. A literatura é a arte perfeita para recriar e apresentar sentimentos invisíveis aos olhos desatentos. É isso que essa história consegue contar. O destino que os procura, na imensidão do mundo, eles buscando formas de sobreviver.

Escalavra é um livro de muitos vazios, onde a imaginação do menino é a tábua de salvação. Ele, o garoto, mesmo sem saber ler, fica enfeitiçado com o Dom Quixote da biblioteca do antigo professor. Diversas são as forças invisíveis dentro da história. Camadas e mais camadas de entrelinhas misteriosas. Terra povoada por gente que mata e morre por conta da desesperança. Inclusive, um dos mortos da trama se chama Jesus. Mas aqui ele não ressuscita. Continua morto para redimir o pecado de ser quem é.

A segunda parte de Escalavra

O livro é dividido em duas partes. Na segunda, entra a história passada daquele lugar, sobre um professor que chegou na cidade para alfabetizar os moradores, contrariando os poderosos que não queriam que a educação tirasse a mão-de-obra barata das pessoas daquele lugar. Vilma, a mãe, que sonhava no bom futuro para o filho Dagoberto, é uma das que sofrem as consequências.

Algumas cenas são chocantes, revestidas por uma brutal poesia, da rima das palavras que Marcelino sempre usou tão bem. Aqui a frequência é ainda mais alta. É um texto arquitetado a partir da estrutura dos antepassados, com as palavras dançando e emitindo sons como uma orquestração.

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O livro se passa nos últimos anos, onde a democracia estava em falta no País. Então, nada mais sintomático que os dois personagens principais sejam dois exilados na terra hostil, onde só o trabalho importa.

Uma das graças da literatura é o autor saber brincar com as palavras. E aqui, Marcelino Freire faz com maestria. Palavras desérticas que evocam imagens concretas, duras, extremamente incômodas, ainda que carregadas da poesia que arrepia a alma.

Como o autor mesmo diz, ele escreve pouco, com o vocabulário com o qual vê o mundo, em apenas três palavras-chave: “sertão minha mãe meu pai”, onde toda a obra dele vai bebendo e se abastecendo dessas poucas palavras e muitos sentimentos.

Escalavra evoca um vento eólico, megalítico, onde tudo pode desmanchar à força do invisível, das forças da natureza, onde o ser humano está no centro da própria ruína.

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Escalavra

  • Autor: Marcelino Freire
  • Editora: Amarcord (152 págs.; R$ 54,90; R$ 34,90 o e-book)
Opinião por Ney Anderson

Jornalista, escritor e crítico literário

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