Logo na primeira frase, o romance se resume: “Esta é uma história de amor, cujo final não é feliz nem triste”. Trata-se da narrativa do reencontro, décadas depois, do narrador com Lívia, sua paixão de juventude, momento em que atitudes e omissões são passadas a limpo. Mas, sob a capa da ficção, Do Começo ao Fim (Alfaguara) é um ajuste de contas que Marcelo Rubens Paiva faz com seu passado. E justamente quando sua obra de estreia, o retumbante Feliz Ano Velho, completa 40 anos. O livro será lançado nesta segunda, 29, na Ria Livraria (Rua Marinho Falcão, 58), a partir das 18h.
“A primeira parte do novo romance, que levei quatro anos escrevendo, inclusive na pandemia, é uma narrativa vertical daquilo que aconteceu comigo e está nas entrelinhas de Feliz Ano Velho: vida universitária, dilemas de um adolescente, perda da virgindade, o primeiro amor, dúvidas existenciais e éticas, política, preconceitos, tudo relembrado por um homem que faz 50 anos e está num momento de intensa transição”, explica Paiva, colunista do Caderno 2.
Ele reconhece que pode estar na pele do narrador, pois repensa quando lia “clássicos, filosofia, assistia (a filmes no cine) no Bijou ou Cineclube da FGV para ver filmes da nouvelle vague, que questionavam a sexualidade e os valores sobre os quais ele, ou eu, foi educado, contestando a moral de uma sociedade que, para reprimir as mulheres, precisa doutrinar na escola os meninos, especialmente os universitários, que despertam para a jornada turbulenta da vida sexual.” Está ali o grande trunfo do livro – com sua escrita ao mesmo tempo direta e sedutora, Paiva recupera o passado (seu?) com todos os erros para se apresentar, aos 63 anos, como um homem do presente, ciente de que as relações humanas se tornaram mais delicadas – e o que era normal hoje se tornou tóxico. “Os homens, especialmente os mais velhos, depois do movimento #MeToo e da Primavera Feminista, passaram a repensar sobre as ambiguidades de relações que tivemos, de uma em uma, da primeira à última. Assediamos? Fomos assediados? Em que momentos passamos do limite? É com a namorada da faculdade, com aquela com quem a gente dorme junto, viaja e se descobre sexualmente, que o homem começa a amadurecer, a aprender a transar de forma atabalhoada, a entender o seu papel social, que está numa baita crise hoje.”
Reflexão
No romance, a avaliação que o narrador faz de seus atos pregressos permite que Paiva também reflita sobre a atual crise de masculinidade. “Minha vida profissional foi bem prejudicada por conta de preconceito. Mer identifico com os movimentos feministas. Ao chegar aos 50 anos, meu narrador, como eu, se deu conta daquilo que errou e daquilo que acertou. Fiz um romance de um cara que, aos 50 anos, resolve procurar as suas relações anteriores, fazer um balanço, pedir desculpas por algumas incorreções e tentar aprender a ser um cara melhor. Afinal, ele está para ser pai e quer passar para os filhos um outro jeito de ser homem”, conta. Ao Estadão, ele lembra de momentos constrangedores. “Com Adriana, minha primeira mulher, testemunhei um assédio profissional causado por um juiz. Me deu ódio. Até saímos do País. Sílvia, minha segunda mulher, que era acadêmica, me contou do assédio que rolava na USP e Unicamp, universidades que frequentei. Professores podiam alavancar ou acabar com a vida acadêmica de uma pesquisadora. Passei a sentir muita raiva. E me lembrei de ambientes de trabalho em que há muito assédio: redação de jornal, agência de publicidade, emissora de TV, grupo de teatro, sets de filmagem, o famoso teste do sofá de produtores e diretores. Um chefe pode destruir a carreira de uma mulher. Sem contar as investidas dos caras na noite, o de colegas de trabalho. A mim, dá ódio. Uma peça minha foi por água abaixo, pois o diretor atacou a atriz.”
De uma certa forma, o que aproxima Do Começo ao Fim de Feliz Ano Velho é a tentativa de seu autor entender o que a vida lhe reservou. Feliz Ano Velho, que já vendeu mais de 1,5 milhão de exemplares, foi lançado em 1982, uma época conturbada, quando ele ainda buscava entender a drástica mudança que aconteceu à sua rotina três anos antes, quando o salto em um lago perto de Campinas resultou na fratura da vértebra cervical, que comprimiu sua medula. Desde então, ele se locomove por meio de uma cadeira de rodas. “Se em Ainda Estou Aqui flertei com os tempos da ditadura e em Feliz Ano Velho o foco central é o meu acidente, em Do Começo ao Fim eu me debruço sobre o amor”, comenta. “Nos anos 1980, sair da ditadura era um fato, estávamos predestinados, nosso papel era reconstruir, deixar os trabalhadores cruzarem os braços, escrevermos a Constituição. Curiosamente, os anos 80 são de muito pessimismo. Os governos Reagan e Margaret Thatcher pareciam uma contrarrevolução de conservadores e o abandono de políticas sociais. No Brasil, era o contrário: estávamos reconstruindo movimentos sociais.”
Leia trecho do livro 'Do Começo ao Fim'
1. Por Toda a Minha Vida
Esta é uma história de amor, cujo final não é feliz nem triste. Como muitas histórias verdadeiras de amor e de amor verdadeiro, esta é mais uma que acabou em aberto, como um filme francês.
Meu coração disparou quando entrei na primeira aula de francês e ela me convidou indiretamente para me sentar do seu lado, ao tirar a bolsa de cima da carteira vizinha. Tínhamos dezoito anos. Tomei um susto ao vê-la na empoeirada sala do Instituto de Estudos da Linguagem com roupa de grife, unhas bem pintadas, pele bem tratada, o cabelo mais cuidado do campus, botas combinando com a bolsa e cinto, numa das cadeiras escolares mais rabiscadas, bambas, caindo aos pedaços, depredadas de toda a universidade, do departamento que não tinha papel-toalha nem higiênico há meses, cujos banheiros não eram limpos há dias, cuja copiadora tinha quebrado há semanas, e as paredes não eram pintadas há anos. Saímos da ditadura. Ela fez a verba do ensino público se evaporar. Os estragos eram infindáveis.
O sol entrava pela janela, realçando os olhos esverdeados que brilhavam com a luz da manhã mesclada com as poucas lâmpadas brancas de mercúrio que funcionavam no teto.
Marcelo Rubens Paiva
Confira abaixo a íntegra da entrevista com o escritor.
Quando Feliz Ano Velho completa 40 anos de lançamento, você oferece Do Começo ao Fim. Há uma forte ligação entre ambos? Sim, existe, como também com Ainda Estou Aqui. A primeira parte do novo romance, que levei quatro anos escrevendo, inclusive na pandemia, é uma narrativa vertical daquilo que aconteceu comigo e está nas entrelinhas de Feliz Ano Velho: vida universitária, dilemas de um adolescente, perda da virgindade, o primeiro amor, dúvidas existenciais e éticas, política, preconceitos, tudo relembrado por um homem que faz 50 anos e está num momento de intensa transição. Meu narrador, que pode ser eu, repensa quando lia clássicos, filosofia, assistia ao Bijou ou Cineclube da FGV para ver filmes da nouvelle vague, que questionavam a sexualidade e os valores sobre os quais ele, ou eu, foi educado, contestando a moral de uma sociedade que, para reprimir as mulheres, precisa doutrinar na escola os meninos, especialmente os universitários, que despertam para a jornada turbulenta da vida sexual.
Histórias sobre o primeiro amor continuam fascinantes – o que te motivou a escrever sobre esse tema agora?
Os homens, especialmente os mais velhos, depois do movimento Me Too e da Primavera Feminista, passaram a repensar sobre as ambiguidades de relações que tivemos, de uma em uma, da primeira à última. Assediamos? Fomos assediados? Em que momentos passamos do limite? É com a namorada da faculdade, com aquela com quem a gente dorme junto, viaja e se descobre sexualmente, que o homem começa a amadurecer as aprender a transar de forma atabalhoada, a entender o seu papel social, que está numa baita crise hoje. Finalmente rolou um basta, não é não, que veio de quem? De nossas irmãs, amigas, namoradas, ex-mulheres, autoras, musas. Ouvimos histórias escabrosas, que nos fizeram passar vergonha de pertencermos à classe masculina. As conquistas femininas ganharam uma dimensão maior nessa década, os homens conversaram entre si, as empresas montaram grupos de debate. Afinal, as vítimas eram nossas amigar, parceiras. Sou de uma bolha. Feminicídio, assédio e machismo passaram a ser considerados crimes graves. O machismo é danoso para todos. No primeiro amor, é quando a gente começa a descobrir quem somos e como fomos doutrinados. Fui atrás do primeiro amor.Por que a história se passa nos anos 1980? Hoje seria muito diferente ou apenas a evolução tecnológica seria mais notável? Eu queria mostrar duas gerações diferentes, aquela educada por uma família que não viveu a revolução sexual, cujos pais são personagens da nouvelle vague, e para isso eu precisava narrar uma geração pré-tecnológica, em cujas casas ou repúblicas não tinham telefone, televisão, internet, celular, em que passávamos noites escrevendo, lendo, declamando e conversando na cozinha. A revolução tecnológica deve ter transformado a vida estudantil, especialmente a dos que saem de casa aos 18 anos e vão morar sozinhos numa outra cidade. Narro o que aconteceu comigo via personagens inventados.
Fale um pouco sobre essa crise da masculinidade, que normalmente ataca os homens após completar 50 anos. Minha vida profissional foi bem prejudicada por conta de preconceito. Mer identifico com os movimentos feministas. Ao chegar aos 50 anos, meu narrador, como eu, se deu conta daquilo que errou e daquilo que acertou. Fiz um romance de um cara que, aos 50 anos, resolve procurar as suas relações anteriores, fazer um balanço, pedir desculpas por algumas incorreções e tentar aprender a ser um cara melhor. Afinal, ele está para ser pai e quer passar para os filhos um outro jeito de ser homem. Vivi isso na pele. Com Adriana, minha primeira mulher, testemunhei um assédio profissional causado por um juiz. Me deu ódio. Até saímos do país. Sílvia, minha segunda mulher, que era acadêmica, me contou do assédio que rolava na USP e Unicamp, universidades que frequentei. Professores podiam alavancar ou acabar com a vida acadêmica de uma pesquisadora. Passei a sentir muita raiva. E me lembrei de ambientes de trabalho em que há muito assédio: redação de jornal, agência de publicidade, emissora de TV, grupo de teatro, sets de filmagem, o famoso teste do sofá de produtores e diretores. Um chefe pode destruir a carreira de uma mulher. Sem contar as investidas dos caras na noite, o de colegas de trabalho. A mim, dá ódio. Uma peça minha foi por água abaixo, pois o diretor atacou a atriz.
Temas políticos surgem discretamente. Você preferiu se concentrar no conflito amoroso? Se em Ainda Estou Aqui eu flertei com os tempos da ditadura, e em Feliz Ano Velho o foco central é o meu acidente, em Do Começo ao Fim eu me debruço sobre o amor. Nos anos 80, sair da ditadura era um fato, estávamos predestinados, nosso papel era reconstruir, deixar os trabalhadores cruzarem os braços, escrevermos a Constituição. Curiosamente, os anos 80 são de muito pessimismo. Os governos Reagan e Margaret Thatcher pareciam uma contrarrevolução de conservadores e o abandono de políticas sociais. No Brasil era o contrário: estávamos reconstruindo movimentos sociais
Você acredita que a literatura está dando conta da realidade de hoje, que é tão complexa e acelerada?
De fato, tudo está sendo questionado, e graças aos escritores e escritoras, temas relegados vêm à tona. Outro dia, entrei numa livraria no centro de São Paulo, em que tinha uma estante enorme logo na entrada só de literatura feminina negra. Achei fascinante, uma amiga me indicou com familiaridade os livros que eu deveria ler. Acho fascinante a literatura de diversidade, que nem deveria se chamar assim: é a literatura da maioria. Certa vez, um desconhecido fez uma piada comigo e não gostei. Perguntou e eu ia à Flip daquele ano. Eu disse que não tinha sido convidado. Ele falou “é verdade, você é hétero e branco”. Eu respondi “exato, hora mudarmos o protagonismo, e que bom para a literatura”. Lembrei-me do mestre Nicolau Sevcenko que dizia que a História é a dos vencedores, e que a literatura tinha como missão contar a história dos derrotados.E, falando no Feliz Ano Velho, como vê hoje essa obra, 40 anos depois de sua publicação? Encontrei a Djamila Ribeiro, filósofa feminista de quem sou fã. Ela com toda a humildade me pediu uma foto, porque Feliz Ano Velho foi muito importante na vida dela. Já tive um momento de considerar este livro a minha Ana Júlia, uma referência à música relegada pelos Los Hermanos, já tive um momento de negar ele, como muitos escritores negam obras iniciantes. Eu me considero um escritor mais aprimorado hoje do que era em 1980, mas lá tinha vida, energia, emoção, sentimento, e hoje eu admiro o fato de eu ter feito um livro que vendeu mais de um milhão de cópias e que é tão importante para tantas gerações, inclusive como incentivo à leitura e até à escrita. Não é meu livro preferido. Mas é o do leitor.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.