Marcelo Rubens Paiva trata do assassinato do pai em seu novo livro 'Ainda Estou Aqui'

Escritor e colunista do 'Estado' valoriza a importância da memória

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Foto do author Ubiratan Brasil
Atualização:

O dia 20 de janeiro de 1971 figura nervosamente em diversas passagens de Ainda Estou Aqui, novo livro de memórias de Marcelo Rubens Paiva, que a Alfaguara lança no fim de semana. Foi naquela data que seu pai, o deputado cassado Rubens Paiva, foi recolhido da casa em que a família morava, no bairro do Leblon, no Rio, pela polícia da ditadura militar para nunca mais voltar.


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Durante anos, Marcelo, sua mãe Eunice e as quatro irmãs viveram o drama de receber notícias desencontradas, desde as que juravam que ele estava pronto para retornar como as que garantiam que Rubens Paiva não mais vivia.


Depois de angustiantes pesquisas, que duraram décadas, a família reconstruiu o quebra-cabeça, que Marcelo assim resume, em uma passagem do livro: “Meu pai entrou no DOI-Codi em 20 de janeiro de 1971, morreu na noite do dia 21 de janeiro, foi levado na madrugada do dia 22, esquartejado, enquanto minha mãe e minha irmã eram interrogadas em separado. Testemunhas de lá de dentro nos dizem que ele foi enterrado na restinga de Marambaia, sob a areia de 42 quilômetros de praia que pertence à Marinha do Brasil, base paradisíaca de 81 quilômetros quadrados e acesso restrito, hoje Centro de Adestramento da Ilha da Marambaia dos Fuzileiros Navais”.

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Marcelo Rubens Paiva é autor de Feliz Ano Velho que, lançado em 1982, tornou-se um dos maiores best-sellers da literatura brasileira. O livro é um relato verdadeiro do acidente que o deixou tetraplégico, a poucos dias do Natal de 1979. “Foi, claro, um momento decisivo em minha vida, mas sempre tive a intenção de também escrever sobre o que aconteceu com meu pai e com o Brasil naquele período”, conta. “Os fatos viviam rodeando meu pensamento e, quando notei a quantidade de pessoas, durante as manifestações, pedindo a volta dos militares ao poder, senti que era o momento de relembrar aquele período dos anos 1960 e 70. O Brasil precisa rever sua história.”


A urgência aumentou quando ele notou ainda a forma como escritores e historiadores estavam sendo negligentes sobre a forma como a época da ditadura é ensinada nas escolas. “Comparações esdrúxulas são apresentadas em salas de aula, o que só deseduca.”


E, ao recuperar os fatos que encobriam dados sobre a morte do pai, Marcelo transfere o protagonismo (ao menos, o divide) para sua mãe, Eunice. Durante todo o tortuoso processo, iniciado ainda durante a ditadura, passando pela abertura política até chegar à Comissão da Verdade, aquela mulher magra, altiva, manteve-se coesa. “Minha mãe deu o tom: a família Rubens Paiva não chora em frente às câmeras, não faz cara de coitada, não se faz de vítima. A família Rubens Paiva não é a única vítima da ditadura. Esteve em guerra contra ela desde o primeiro dia. O País é a maior vítima. O crime foi contra a humanidade. Nossa luta não tem fim. Sou pai agora, vejo isso com outros olhos”, conta ele, pai do pequeno Joaquim, de 1 ano e meio.


Todos os que enfrentaram, diretamente ou não, a violência impetrada por um regime ditatorial sabem que o desaparecimento é uma segunda tortura, que acompanha a família a vida inteira. Os Paivas só conseguiram um atestado que oficializasse a morte de Rubens em 1996, quando, finalmente, foi possível acessar contas bancárias, executar apólices de seguro, negociar imóveis. “Minha mãe viveu um épico”, observa Marcelo. “Esteve presa no mesmo lugar que meu pai - suspeita-se que ele a viu, assim como minha irmã, que estavam encapuzadas -, foi solta, enfrentou a censura, foi a eventos importantes na ONU, encontrou-se com Ted Kennedy e teve participação ativa na redemocratização. Hoje, percebo que, enquanto meu pai foi vítima da ditadura, minha mãe lutou contra ela.”

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Advogada formada depois dos 40 anos, Eunice acreditava no Direito. “Era sua paixão, ela sempre devotou crédito ao Judiciário, esperando que qualquer situação se resolvesse sob o regime da lei.” Diante de uma mulher tão combativa, tornou-se difícil aceitar determinados sintomas (esquecimentos, confusão com números e datas, repetição de histórias) que, com o passar dos anos, revelavam sinais de Alzheimer.


Uma amiga, que já cuidava da avó com esse problema, foi a primeira a notar. Depois, uma das irmãs de Marcelo, Nalu, também reparou que Eunice estava confusa com contas e dinheiro, atrapalhando-se com algo com que era profundamente precavida. Logo, situações triviais, como viajar de avião, se tornaram complicadas. Em outro momento, comprou duas televisões de uma só vez em uma loja, mesmo não precisando de nenhuma. “Ela mudou de canal no aparelho de TV, não no de TV a cabo, e apareciam apenas imagens com riscos e chiados. Foi na loja, comprou uma TV nova. No caixa, perguntou: ‘O que vim mesmo fazer aqui?’ Comprar uma TV, lembraram. Ela foi ao balcão e comprou outra. Com três TVs funcionando em casa, percebeu que começava a entrar em roubadas”, escreve Marcelo.


O livro, portanto, é um tributo ao resgate da memória: a do pai, violentamente apagada pela ditadura, e a da mãe, que se estilhaça aos poucos. “Escrevi também como um testemunho para meu filho, uma das raras pessoas das quais minha mãe jamais se esquece.”


As relações materna e paterna dão o tom em Ainda Estou Aqui, título emblemático. “Como meu pai viajava muito, não guardei muitas lembranças de convivência, ainda que tenha sido ele que me ensinou a nadar, a montar a cavalo. Na verdade, vi mais meu pai no ano em que foi morto - pouco antes de ser preso, ele comentou com amigos que precisava ficar mais com a família”, explica o escritor que, dos filhos, foi aquele que mais tempo desfrutou da companhia da mãe. “Com Feliz Ano Velho, passei a dar muitas entrevistas e ela sempre estava ao meu lado, pois trazia a voz da família, o que a deixava orgulhosa. Ficamos muito ligados por conta disso.”

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TRECHO

"Era uma surpresa que um órgão da imprensa no Brasil como a Manchete, a revista que mais vendia no país, se interessasse em noticiar o desaparecimento de um dos mais subversivos mais simpáticos e risonhos que (Antonio) Callado conheceu. Em 1971, não se sabia mais quem estava do lado de quem. Mandou um fotógrafo lá em casa. Queria todos os filhos na foto. Na porta de entrada do sobrado do Leblon. Na mesma porta pela qual meu pai foi levado para a tortura e a morte semanas antes. A mesma pela qual minha mãe foi levada no dia seguinte com a minha irmã Eliana. Nela, nos apertávamos para caber. Não sei de quem foi a ideia de nos fotografar sob o batente da porta principal. O mar do Leblon estaria ao fundo, se ele tivesse erguido um pouco mais a câmera. Mas a pauta da prisão não combinaria com uma das vistas mais lindas, a da praia, do intrincado e sedutor arquipélago da Cagarras e a do morro Dois Irmãos abençoando uma das cidades mais lindas do mundo.

Vesti minha calça mais chique. Estávamos todos chiques, com roupa de domingo. Sorríamos. Não parávamos de sorrir. A ironia era imensa: aparecíamos justamente na mais bonita e glamorosa de todas revistas. Nossa entrada de bico no colorido universo das celebridades que admirávamos, que não paravam de sorrir, que eram felizes e bem-sucedidas.

(...) O fotógrafo reclamava: fiquem mais sérios, mais tristes, infelizes. Não conseguíamos. Ou não queríamos.”

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Autor: Marcelo Rubens Paiva

Ed.: Alfaguara (296 págs., R$ 39,90; R$ 27,90, o e-book)

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