Opinião | Marina Colasanti sabia o que tinha a dizer - e fez de sua literatura uma orquestra

Escritora, que morreu aos 87 anos, construiu carreira literária que passeou por vários gêneros e marcou gerações

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Por Ivani Cardoso
Atualização:

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

Trecho da crônica 'Eu sei, mas não devia', publicada por Marina Colasanti no Jornal do Brasil, em 1972

Marina Colasanti, ao contrário da crônica, nunca se perdeu. Ela confessou certa vez, em uma entrevista, que não esperava sucesso retumbante, tapetes vermelhos ou estar nas listas dos mais vendidos. Talvez tenha desejado alguma menção da crítica quando deixou o ateliê de gravura em metal pela máquina de escrever, mas o que desejava mesmo era que a nova profissão fosse tão acolhedora e prazerosa quanto a que havia abandonado por ela. E foi o que aconteceu à escritora, que morreu nesta terça-feira, 28, aos 87 anos.

Foi a partir da publicação de Eu Sozinha que ela se sentiu escritora, indo da prosa à poesia, passando pelos contos de fadas, ensaio e literatura infantojuvenil, colecionando prêmios e aprimorando o estilo refinado de quem sabe que tem o que dizer. “Percebi que Rubem [Braga, que recusou o livro] não havia entendido a proposta. E não acatei nenhum dos conselhos que o mestre da crônica me deu. A desmontar o meu projeto, preferi esperar com ele na gaveta. Fui paciente porque confiava no meu produto, e tive que esperar quase cinco anos”, confidenciou em entrevista para o Jornal Rascunho.

A escritora Marina Colasanti morreu, aos 87 anos; em 2017, ela recebeu o 'Estadão' em sua casa, em entrevista por ocasião de seus 80 anos Foto: Fabio Motta/Estadão

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A carreira de escritora foi acontecendo com a naturalidade da vida de quem sabe exatamente o que quer, a partir do momento em que foi lançada à cronista do Jornal do Brasil. Nos últimos tempos lia mais do que escrevia: “Sempre desejei ser artista e a escrita como eu faço, a que me interessa, que não é só contar uma história, é a arte da palavra. Li muito na infância, na guerra, e ficou essa impossibilidade de viver sem livro. Não sei viver sem ler e, possivelmente, não sei viver sem escrever porque tenho diário desde os 9 anos. A minha relação com a vida é através da escrita”, respondeu em uma das muitas entrevistas em comemoração aos seus 80 anos.

Marina se considerava uma cidadã do mundo, justamente porque se considerava estrangeira em qualquer canto: “Nascida na Eritreia, nunca fui plenamente africana, quando vou à Itália os locais farejam alguma estranheza e já não me consideram dos seus, nunca fui totalmente brasileira. Pode ser que este esforço de adaptação, essa necessidade de apreender o outro, tenha me ajudado na escrita. Mas não tenho nenhuma certeza disso. A única certeza que tenho é de que a leitura de tantos autores do mundo, de tantas realidades distintas, abriu meu olhar para a diferença”.

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Mas havia, sim, outra certeza preciosa: o sentido de urgência do momento presente, bem justificada nessa fala: “Gosto de estar com amigos, os que ainda restam, de estar com minha filha, brincar com o meu neto, simplesmente olhar para ele, viajar para nosso sítio em Friburgo, ver as cerejeiras em flor. Acho que agora o que mais importa não tem forma, nem matéria: bem-estar, calor, amor, delicadeza e afetos bons. O tempo se tornou muito mais precioso do que sempre foi, ainda tenho muito tempo para escrever, para contar, para ilustrar”.

Envelhecer

“Envelhecer não é fácil. É bonito, emocionante, mas são muitas as despedidas”. Mesmo com esse sentimento, não se considerava saudosista da juventude, mas sim de um Brasil mais suave, da Ipanema de sua adolescência, da praia em que nadava e das pessoas com quem conviveu. Leia a entrevista completa.

Da morte, não tinha medo, sabia que era a ordem natural das coisas e nem queria viver muito: “Não me queixo: acho minha idade ótima. Não tenho medo da morte, não quero viver muito. A cara era mais bonita antes, mas está bem assim. Ando viajando como uma louca, trabalhando como sempre, ou até mais. As filhas estão criadas. Quando temos filho pequeno ou desestabilizado, não podemos morrer. Eu posso, sem medo.”

Entre tantas homenagens, ficou muito tocada com a publicação da coletânea A Disponibilidade da Alma, em seus 50 anos de carreira literária, antologia de contos, microcontos, crônicas, poemas e ensaios escolhidos e organizados por Vera Maria Tietzmann, incluindo, ainda, a entrevista concedida ao Estadão nos seus 80 anos.

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Olhar para trás e contemplar o que fez era uma espécie de exercício para confirmar as escolhas: “O que quero é emocionar, fazer pensar, deixar coisas em aberto, surpreender. Não quero dar o que querem porque isso não vai acrescentar nada: vai ser o que já conhecem. Quero dar literatura, ou seja, a palavra em vários níveis, contos com várias possibilidades de interpretação”.

A autora Marina Colasanti, 87, foi homenageada como Personalidade Literária da 66ª edição do Prêmio Jabuti, em 2024 Foto: Divulgação/Prêmio Jabuti

Durante uma entrevista ao escritor Afonso Borges, no programa Sempre um Papo, se preocupou em justificar a ponta de pessimismo que também fazia parte de seu ser. Dizia que não podia apoiar um otimismo que não sentia. “Também não sou pessimista. Sou um ponto de interrogação”.

Talvez por isso, ao falar da pandemia, surpreendeu os otimistas de plantão: “Acho que a pandemia não nos tornará melhores, ao contrário do que todo mundo diz, porque vivemos outras pandemias, a peste negra, a gripe, e repetimos os mesmos erros cometidos há mais de um século. Pandemia não ensina coisa alguma e não muda o comportamento das pessoas A ciência evolui, a informática evolui, temos novas ferramentas, mas o ser humano evolui muito mais devagar; se podemos dizer que evolui.”

Para os críticos, a obra de Marina sempre se manteve em um patamar de qualidade, sem declínios, o que comprova ter atingido tantos prêmios, Jabuti, Prêmio Ibero-americano SM de Literatura Infantil e Juvenil, entre outros. O que, para ela, não significava tanto: “Claro que é muito gratificante, mas eu nunca trabalhei especificamente para isso, voltada para esse tipo de reconhecimento, nunca foi uma meta. Minha motivação sempre foram as ideias, os textos, os livros, eles sempre se impuseram. Nunca escrevi motivada por modismos. Os meus temas não são passageiros e nem pretendem agradar”.

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Com o trabalho de jornalista e redatora de publicidade aprendeu a buscar o essencial, a economizar adjetivos, a escrever “com a parcimônia de monge trapista”. Costumava afirmar que sua escrita não seria a mesma sem esses aprendizados.

Parceria

A escritora e o poeta Affonso Romano de Sant’Anna conseguiram uma parceria afinada de amor e trabalho, mesmo com formações opostas. “Acho que a influência se deu mais no plano das ideias, o que é extremamente positivo para um casal de escritores. E no plano da cumplicidade, nas leituras compartilhadas, na fusão proporcionada por tantos anos de amor”, comentou.

A escritora Marina Colasanti, em foto de 2021, tirada por sua filha, Alessandra Foto: Alessandra Colasanti

A liberdade de criação é um dos seus grandes legados para a nova geração de escritores. Para ela, a literatura sempre foi o espaço mais livre, quando não se trabalha para arquibancadas, como ela. E sentia que o essencial era ter conseguido chegar ao coração das pessoas em algum momento. “O mundo é muito grande e são muitos corações. Se eu cheguei a alguns desses, já é um luxo enorme. Por isso tenho um enorme sentimento de gratidão, que cresce à medida que eu chego ao fim”.

Crianças e poesia

A obra infantil de Marina Colasanti tem a marca de uma autora preocupada em não imbecilizar as crianças. “Crianças não têm inteligência incompleta, elas só são crianças. Nunca desejei de modo algum educar ou informar crianças, não de maneira didática. Odeio essa mania de falar tudo no diminutivo, não é a minha cara. Não sou edulcorante. Gosto de falar de igual para igual com as crianças. Jamais utilizaria a literatura como veículo para ministrar ensinamentos. Eu nunca escrevi ‘para adultos’ e nem ‘para crianças’. Escrever é o meu fazer.”

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Nas entrevistas incentivava muito a leitura para as crianças e reforçava: “livros, não posts”. Sem ser conservadora, aceitava que as novas tecnologias sempre existirão, mas não gostava de ver quase todos os contatos são intermediados por mídias. “Gostaria que as crianças soubessem, ou nunca se esquecessem, do valor do contato humano direto, sem intermediários. O poder do encontro, essa tecnologia tão fundamental quanto primitiva.”

A paixão pela poesia também marcou sua trajetória. “Poesia é sempre paralela ao resto da minha produção e, mais que tudo, exige longa decantação. O poeta precisa se assumir. E assumir a vida. Se a poesia não é reflexão sobre a vida, ou seja, se não é filosofia, não é nada.”

Destacava que a poesia deve fazer parte da infância, desde sempre: “Dando na mamadeira das crianças poesia, ela fica para sempre, vai se tornar um leitor de poesia. No Brasil se consome muita poesia, os meus livros de poesia infantil são os menos adotados porque os professores não são leitores de poesia e não sabem trabalhar poesia. A poesia infantil é isca, anzol na qual a criança vai ficar atada para sempre.”

A isca no seu caso foi um jornal italiano infantil que publicava na primeira e na última página histórias em quadrinhos, mas em vez de balões havia legendas embaixo, metrificadas e rimadas. “De ver tanto esse formato eu comecei a fazer os primeiros poemas”, revelou um dia.

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Quando lançou a autobiografia Minha Guerra Alheia, justificou dizendo que gostaria que seu trabalho fosse lido como um diálogo com tudo: “Apesar da alternância de gêneros, cada livro é um elo da longa corrente. Não estou lidando com diferenças, estou regendo e tocando cada um dos instrumentos de uma orquestra de câmara em busca de um único som.”

A partir de agora é silêncio, mas as palavras ficarão para sempre.

Opinião por Ivani Cardoso
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