Você já parou para pensar em como seria a sua vida caso tivesse feito escolhas diferentes no passado? Se não tivesse se casado, nem tido filhos? O que aconteceria caso tivesse escolhido outro curso na faculdade, ou aceitado aquele emprego que rejeitou? Estas perguntas hipotéticas, movidas por nostalgia, curiosidade ou arrependimento, correspondem ao ponto de partida do romance Matéria Escura (Dark Matter, Editora Intrínseca, 2017).
Bem recebido ao redor do mundo, após publicação em mais de 40 línguas, Matéria Escura foi adaptado numa série ainda inédita e sem data de estreia pela Apple TV+. Joel Edgerton interpreta o papel principal, Jason, enquanto Jennifer Connelly encarna a esposa idealizada, e a brasileira Alice Braga dá vida a Amanda, a psiquiatra que ajuda o homem a compreender sua jornada através de espectros de si próprio.
Além de Alice, o autor da história Blake Crouch confirmou presença na Bienal do Livro, que ocorre entre 1º e 10 de setembro, no Riocentro, Rio de Janeiro. Eles participam de uma mesa juntos no dia 9, às 13h. Esta será a oportunidade de conhecer pela primeira vez os leitores brasileiros e debater a história que chega, em breve, ao streaming.
Na trama, Jason é um professor de vida pacata e bem-sucedida, casado e com filhos. Um dia, sofre um sequestro abrupto. Acorda preso a uma maca, num contexto alternativo. Libertado, descobre uma mulher diferente que o chama de marido. Seu filho nunca nasceu.
O personagem se descobre numa versão distinta de sua existência, quando abriu mão da vida familiar para se tornar um gênio da física. Seus conhecimentos permitem a criação de uma caixa capaz de lançá-lo através de realidades paralelas. No entanto, percebe que a vida sonhada carrega seus próprios problemas, levando o herói e a terapeuta Amanda a viajarem por inúmeros multiversos em busca de respostas acerca do real e de suas identidades.
Uma jornada bastante pessoal
É comum que os autores demonstrem receio em confessar o caráter autobiográfico de suas criações. Em contrapartida, Crouch confessa de imediato a dimensão íntima do projeto. “Quando estou trabalhando num livro, mesmo que eu não perceba de imediato, acabo incluindo questões que estão acontecendo comigo, ou que me passam pela mente na época. Muitas vezes, é mais inconsciente”, ele explica, em entrevista exclusiva ao Estadão.
“Comecei a escrever Matéria Escura quando tinha cerca de 35 anos, e questionava algumas das escolhas que tinha feito na vida”, continua. “Por exemplo, quando saí da universidade, eu prestei o exame de admissão numa faculdade de direito, porque não sabia o que mais poderia fazer da vida. Fiquei na lista de espera; não me aceitaram. Depois pensei: como teria sido a minha vida, se tivesse entrado na faculdade de direito? Talvez eu fosse mais feliz, mas como saber ao certo?”
Quem nunca se arrependeu?
Alice Braga explicou ao Estadão o seu interesse na adaptação do livro. “Tem um tema que eu gosto de discutir: as possibilidades do arrependimento. Blake trata isso de forma muito bonita, através do entretenimento, da ficção científica. Não é uma viagem no tempo, entre passado e futuro, e sim outra realidade na mesma idade que você tem, num multiverso”.
A atriz revela ter sua própria cota de arrependimentos, que estima saudáveis até certo ponto. “Falo por mim e vários amigos atores. A gente sempre para e pensa: ‘Não deveria ter feito esse personagem’, ou ‘Por que não aceitei esse papel aqui?’. Às vezes, quando você revê a imagem, assiste ao filme, acaba pensando: ‘Por que eu fiz isso?’. É uma brincadeira, mas no fundo, sempre penso que poderia ter feito melhor do que fiz. Sou muito perfeccionista. Todos nós queremos a perfeição”, justifica.
Blake Crouch, por sua vez, admite que o exercício de especulações “é interessante enquanto exercício intelectual”. Entretanto, possui ressalvas. “Talvez eu tenha tido má sorte, mas possivelmente a má sorte em algum momento me poupou de um destino ainda pior. Sem a dor, a frustração e a depressão que eu senti naquela época, Matéria Escura não teria existido”, pondera.
A ficção científica mais correta possível
Para escrever a respeito das viagens em dimensões paralelas, o autor recorreu a teorias existentes no meio científico. “Eu não sabia muito sobre mecânica quântica quando comecei a escrever o livro. Sabia apenas que havia teorias sugerindo a existência de realidades paralelas, incluindo novas versões de nós mesmos, levando uma vida diferente. Isso me interessava”, explica.
“Passei a ler tudo o que podia a respeito. Entrei em contato com uma organização chamada Science and Entertainment Exchange, que permite o diálogo entre criadores e especialistas em temas científicos. Eu tomo muitas liberdades em termo de suspensão da descrença, mas queria que a ciência no centro de Matéria Escura estivesse o mais correta possível”.
Alice Braga considera que os conhecimentos científicos são apresentados de modo acessível ao leitor, a partir da dinâmica do entretenimento. “Nem digo mais sobre o livro, porque é uma loucura. Tem bastante ação. Por exemplo, minha personagem, a Amanda, vai se descobrindo, evoluindo conforme percebe que todas as possibilidades de vida que ela cogita não passam de idealização. Na verdade, a vida que vivemos é sempre a melhor. É importante acreditar no momento presente, aceitar as escolhas que fizemos. Só assim podemos crescer e encontrar a felicidade onde quer que seja”.
Multiversos em todo o lugar ao mesmo tempo
Matéria Escura teria potencial para encontrar um público ainda maior após a vitória da fantasia Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo no Oscar 2023, e da popularidade de longas-metragens como Doutor Estranho no Multiverso da Loucura e Homem-Aranha no Aranhaverso?
Crouch sorri diante da indagação: “Em 2014, quando comecei, de fato, a escrever Matéria Escura, as histórias de multiversos não eram tão populares quanto são hoje. Não eram apenas mais uma ideia que a Marvel usa aleatoriamente quando esgota as suas outras ideias ruins! Mas, falando sério, era algo que eu nunca tinha visto ser explorado, pelo menos, não dessa maneira na literatura”.
“A gente desenvolveu a fascinação pelos multiversos por causa do arrependimento, das indecisões”, especula Alice Braga. “Hoje em dia, com tanta informação através da tecnologia, fica ainda mais difícil tomar uma decisão: será que vou ou não vou? Faço ou não faço? Tantas opções e informações acabam gerando mais insegurança”.
“Com certeza, existe uma saturação de multiversos hoje”, consente o escritor. “No entanto, Matéria Escura adapta o conceito do multiverso ao homem de meia-idade. Nada de magos espaciais pulando entre portais, como o Doutor Estranho. Eu adorei Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo, mas era uma viagem enlouquecedora, sem limites”.
“Eu queria fugir das convenções infelizes do multiverso, que têm se multiplicado. Quando você lida com personagens em diferentes multiversos, é fácil demais distinguir Jason e Jason2 colocando um pequeno bigode em um deles, por exemplo. É uma visão superficial da identidade. Nós tentamos desenvolver uma construção muito mais complexa dos personagens através de diversas realidades, definidas por uma escolha que eles poderiam ter feito”, conclui.
Do livro à série
Embora os dois artistas estejam tentados a comentar o processo de adaptação do romance ao streaming, eles alertam o Estadão sobre a impossibilidade de fazê-lo. Ambos respeitam a greve dos roteiristas e atores em Hollywood, em busca de remuneração mais adequada e contratos justos contra os gigantes da indústria.
Entre as proibições determinadas pelo sindicato, encontra-se a divulgação de novas séries e filmes. Portanto, estão impedidos, atualmente, de discutir circunstâncias de filmagem, diferenças na adaptação, escolhas de imagem e de elenco. No entanto, podem discutir aspectos da história e da narrativa original, decorrentes do livro.
Alice Braga recorda a sua longa trajetória com adaptações literárias. “Eu recebi o roteiro da série antes de conhecer o trabalho do Blake. Foi uma honra poder ler um roteiro escrito pelo próprio autor do livro. É algo muito raro. Eu fiz A Rainha do Sul, baseado no livro do Arturo Pérez-Reverte, mas a história se tornou muito diferente do livro. No primeiro episódio da série, foram fiéis, e depois decidiram criar do zero - o que não tem problema, é claro”.
“Eu já tinha tido a honra de fazer Ensaio Sobre a Cegueira, adaptado de José Saramago, um dos meus escritores favoritos. Então, no caso de Matéria Escura, ler um roteiro preparado pelo próprio autor, que também seria showrunner da série, foi uma grande honra. Fiquei apaixonada pela história e decidi comprar o livro. Li numa sentada, engoli o livro em uma semana”.
O espaço disponível para atrizes latinas
Para o público brasileiro, a carreira internacional de Alice Braga tem sido associada às grandes produções de ação, repletas de efeitos visuais, a exemplo de Eu Sou a Lenda (2007), Repo Men: O Resgate de Órgãos (2010), Predadores (2010), Elysium (2013) e Os Novos Mutantes (2020).
Ela garante que este caminho pelo universo da fantasia se deve às circunstâncias do mercado norte-americano. “Estes acabaram sendo os projetos que vieram na minha direção. Quando eu cheguei aos Estados Unidos, vinte anos atrás, eram estes projetos e personagens que tinham portas abertas para atrizes estrangeiras e latinas, com sotaque. Então, foi uma feliz coincidência, porque sempre gostei muito de quadrinhos, de ficção científica e de filmes de ação. Agora, o cenário já mudou. Nos últimos anos, têm aparecido mais projetos para atrizes latinas, em outros formatos. Mesmo assim, sempre gostei de ficção científica, desde pequena”.
“Sinto que, cada vez mais, o roteiro importa para mim, e também o tempo de dedicação ao projeto. Fiz A Rainha do Sul por cinco anos. Foi uma série muito importante para mim e para as atrizes latinas, pela oportunidade de ser protagonista de uma série americana, mas tomou bastante tempo. Por isso, estou buscando roteiros independentes, de novos artistas brasileiros. Quero seguir fazendo cinema brasileiro para sempre”, lembra a atriz.
Matéria Escura na Bienal do Livro
Enquanto a brasileira reflete sobre o espaço de acolhimento nos Estados Unidos, o autor norte-americano testa no próximo mês a recepção do público brasileiro durante a Bienal do Livro.
“Uma das partes mais satisfatórias da vivência de um escritor é viajar para outros países e encontrar os fãs e leitores. Isso me permite compreender não apenas como funciona o mercado literário de cada país, mas como os livros são tratados ali. Isso varia muito de lugar a lugar. Alguns países levam a literatura muito mais a sério do que outros”.
“Eu escuto falar na Bienal há muitos anos, e foi um presente ser convidado a participar. Adoro meus fãs brasileiros; eles são os mais interativos e divertidos no Instagram e nas redes sociais em geral. Eu pensava: ‘Preciso ir ao Brasil para conhecer esses leitores pessoalmente’”.
Afinal, a tecnologia é boa ou ruim?
Apesar de as atenções estarem voltadas a Matéria Escura, graças à adaptação da Apple TV+, o autor já escreveu outro romance, intitulado Upgrade.
“Upgrade lida com o tema clássico: a tecnologia é boa ou ruim?”, dispara Crouch. “Conforme a genética avança, e se torna mais hábil na manipulação do genoma humano, chegamos ao ponto em que poderemos mudar aquilo que nos torna fundamentalmente humanos, num sentido genético. Se alguém mudasse 2% do nosso genoma, nós nos tornaríamos uma espécie diferente. Mas deveríamos alterar nosso corpo em busca de aperfeiçoamento?
O novo livro se concentra, portanto, num grande embate moral. “Um homem tem a oportunidade de aperfeiçoar toda a espécie humana, num último esforço desesperado para mudar o rumo das coisas. Mas este esforço pode resultar na perda de um bilhão de pessoas. Vale a pena abrir mão de um bilhão de pessoas em nome da continuidade da nossa espécie?”.
Poderíamos afirmar, em consequência, que a pesquisa a respeito dos limites da identidade e da subjetividade constituam o tema que atravessa toda a obra do escritor? Ele pondera, antes de responder:
“É uma maneira bastante sucinta de dizer, mas talvez seja isso mesmo: os limites da identidade e da subjetividade humanas. Eu também acrescentaria uma questão inesgotável: o que é a realidade? Esta é uma parte importante do que move meu trabalho”, completa.
Matéria Escura
- Editora: Intrínseca
- Autor: Blake Crouch
- 352 páginas; R$ 69,90 (Impresso); R$ 46,90 (E-book)
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