Médica de 102 anos que conviveu com Ghandi conta trajetória e lições de vida em livro; leia trecho

Gladys McGarey enfrentou divórcio após 46 anos de casamento e sobreviveu a dois cânceres; em ‘Uma vida bem vivida’, ela revela seis segredos para felicidade física e espiritual

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Foto do author Julia Queiroz

Gladys McGarey sobreviveu a dois cânceres, passou por um divórcio após 46 anos de casamento, teve seis filhos, conviveu com Mahatma Gandhi no período em morou na Índia e, de quebra, tem 102 anos. Afinal, qual é o segredo de uma vida tão longeva?

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É isso o que a médica centenária quer mostrar com o livro Uma vida bem vivida, que chegou ao Brasil no final de outubro pela editora Rocco. A obra, claro, não promete garantir a longevidade que Gladys conseguiu, mas apresenta, em 272 páginas, seis segredos para ter uma vida feliz em qualquer idade. Leia trecho abaixo.

Gladys é considerada pioneira da medicina holística, que entende o paciente como um todo, alinhando os aspectos emocionais, espirituais e mentais com o corpo físico. Os adeptos acreditam que o tratamento de doenças deve ser realizado com o fortalecimento do indivíduo além de apenas a neutralização de sintomas aparentes.

A Dra. Gladys McGarey tem 102 e lança no Brasil o livro 'Uma vida bem Vivida'. Foto: Bill McGarey/Divulgação

Foi essa a mentalidade que ela carregou quando, ainda criança, ajudava os pais, médicos missionários, a cuidarem de pessoas em situação de risco na Índia. Foi nesse período que ela presenciou a A Marcha do Sal, ato de desobediência civil liderado por Gandhi contra a dominância do Império Britânico no país.

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Anos depois, já de volta aos Estados Unidos, ela dividiu um consultório com o marido, Bill, com que teve seis filhos. Quando ela já tinha 70, Bill pediu o divórcio - ele estava se envolvendo com outra colega.

Em Uma vida bem vivida, Gladys conta que a separação foi um dos períodos mais difíceis de sua vida, mas explica como se afastou da tristeza para seguir seu propósito com a medicina. Ele manteve um consultório com uma das filhas no estado do Arizona e, após se aposentar, continuou trabalhando como consultora.

Pode-se dizer que os momentos mais transformadores da vida dela vieram depois disso. Já aos 85 anos, a médica viajou ao Afeganistão, onde ensinou gestantes de áreas rurais sobre práticas mais seguras de partos naturais, gerando grande impacto nas comunidades locais.

Capa de 'Uma vida bem vivida', da Dra. Gladys McGarey. Foto: Rocco/Divulgação

Em trecho de Uma vida bem vivida destacado pelo Estadão, a médica fala sobre a ideia de ver cada momento da vida como uma oportunidade de aprendizado e discute a chamada “positividade tóxica”, que critica a noção de que devemos colocar os pensamentos positivos acima de todos os negativos. Confira:

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Leia trecho de ‘Uma vida bem vivida’, de Dra. Gladys McGarey:

“Olhar para a vida é um processo. Pode levar anos, até décadas, para entendermos por completo a nós mesmos e nosso papel no mundo. Trata-se de um caminho trilhado passo a passo — escolhas minúsculas para nos renovarmos a cada dia. Podemos perguntar a nós mesmos: como vou lidar com isto? E com aquilo? Onde está a oportunidade de aceitar o que a vida me deu e fazer o melhor com isso? Como posso me abrir a essa oportunidade, mesmo que me assuste e me leve ao limite?

Vivemos o melhor da vida quando a abordamos com curiosidade e desejo de aprender com tudo. Acredito que isso faz parte do objetivo da vida — aprender, crescer, evoluir por meio de experiências. Sem dúvida, tiramos maior proveito da vida quando extraímos lições ao longo do caminho. Quando temos coragem de procurar, a vida sempre nos presenteia com novos ensinamentos.

Mas ter coragem é, muitas vezes, o maior desafio.

Décadas atrás, aos 69 anos, estava no quintal tarde da noite. Morava a mais de uma hora de Phoenix, e as estrelas iluminavam o céu de horizonte a horizonte, destacando o relevo dos cactos.

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Os saguaros se erguiam, firmes, com os braços espinhosos estendidos em ângulos retos, enquanto ocotillos delgados lançavam seus muitos ramos ao céu estrelado. De robe, com um par de chinelos surrados e os braços erguidos, eu meio que demonstrava minha desaprovação em relação ao destino. Eu me sentia abandonada, traída e esquecida, como um casaco antigo largado no guarda-roupa. Fiquei ali me lamentando, incrédula, com a cabeça inclinada para trás enquanto uivava para o céu.

Passara o dia inteiro com os chinelos de Bill, grandes demais para mim. Embora sempre tenha tido pés grandes, eles matraqueavam como jogos de fliperamas naquelas velharias. Mesmo assim, eu os arrastava de um lado para o outro pela casa, batendo as solas contra o piso ladrilhado. Queria saber como era andar com os chinelos dele. Queria entender o que estava acontecendo em sua alma para levá-lo às escolhas que fizera, revirando minha vida e me causando uma dor tão agonizante.

Essa foi sem dúvida a fase mais difícil de minha vida. Vou contar mais daqui a pouco. Primeiro, quero ter certeza de que você entende: não tenho a ilusão de que o quinto segredo seja fácil. Não acho que procurar lições na vida — em especial quando nos sentimos injustiçados, sem sorte ou totalmente irados — seja algo simples de se fazer. É um compromisso. Exige disciplina. É óbvio que vamos vacilar, cair e errar ao longo do caminho.

No entanto, essa é uma das atitudes mais importantes que podemos tomar em nossa jornada de alma. Quando se torna um hábito, pode até ser prazeroso; os momentos mais difíceis da vida ainda vão doer, mas tentar aprender algo nos ajuda a processar com mais facilidade os desafios menores. Quando olhamos para a vida, percebemos que, em troca, ela está olhando para nós. Está sempre tentando nos mostrar algo. Está se comunicando por meio de eventos, pessoas e ideias que aparecem, oferecendo-nos uma oportunidade de gratidão.

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Quinto segredo: Tudo é uma lição

Você está escutando?

Vamos começar com um exemplo desafiador, mas menos arrasador. Alguns anos atrás, décadas depois de eu me arrastar pela casa com os chinelos de Bill, tomei a difícil decisão de parar de dirigir. Sempre gostara de conduzir; para mim, simbolizava a independência, isso desde meu primeiro Model A Ford, que eu dirigi durante os anos da faculdade (já era furreca na época, mas eu o adorava). Mas, à medida que me aproximei da marca do centenário, minha visão começou a deteriorar. Tenho estes olhos há mais tempo do que a maioria das pessoas, e eles simplesmente não foram feitos para durar para sempre.

Parei de dirigir porque a vida me sinalizou que era o momento certo. Um dia, quando estava dirigindo por um caminho conhecido, em Scottsdale, subi num meio-fio. Era uma motorista cuidadosa, então aquele tipo de erro era incomum. Eu simplesmente não tinha enxergado. Naquele momento, soube que era hora de tomar uma decisão. A opção A era fingir que nada tinha acontecido ou que não importava. A opção B era entregar as chaves. Pensei em meus bisnetos andando de bicicleta e brincando na rua, nos vizinhos e amigos passeando com seus cães e nos milhares de outros motoristas que eu não conhecia, mas que tinham tanto direito quanto eu de estar vivos. Entreguei as chaves.

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Se não fosse aquele meio-fio, talvez eu não tivesse parado de dirigir. Aquilo foi um sinal de que eu precisava fazer uma mudança. Subir no meio-fio foi uma lição de vida, e tive sorte de dar ouvidos e entender.

Ando à procura de lições de vida pelo mundo durante quase toda minha vida. É por esse motivo que meu quinto segredo é: Tudo é uma lição. Quando as procuramos, paramos de focar o sofrimento e prestamos atenção na vida. Tudo se torna um professor. Encarar a vida por essas lentes nos ajuda a torná-la orgânica. Essa postura nos chama a nos envolver e interagir com tudo — tudo mesmo — que aparece pelo caminho.

Digo que tive sorte de entender a lição que o meio-fio estava me dando porque, caso contrário, uma lição com consequências muito maiores poderia ter aparecido, talvez com danos a mim ou a outra pessoa. Deb, uma de minhas pacientes, teve uma experiência semelhante com sua saúde. Estava tendo um dia normal, quando de repente perdeu a audição de um lado. Horas depois, ainda não conseguia ouvir. Ela ficou assustada e foi a um pronto-socorro. Os médicos não souberam explicar o que havia acontecido, então pediram uma ressonância magnética.

Quando Deb saiu da máquina de ressonância magnética, os médicos pareciam preocupados. Ela estava tendo um aneurisma. Teve uma sorte incrível por já estar no hospital, cercada de especialistas. Se não fosse a perda de audição repentina, ela poderia não ter sobrevivido. Foi o que permitiu a ela encontrar gratidão pela surdez momentânea — aquele sintoma indicara que algo estava errado e provavelmente salvara sua vida. Deb estava agradecida por a vida tê-la enviado ao hospital, assim como eu fiquei grata por ter subido no meio-fio.

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Ultimamente, soube de algumas problematizações a respeito da gratidão. Em alguns casos, a ideia de focar o positivo pode ter um efeito negativo, o que é hoje chamado de positividade tóxica. Soa como uma negação. Embora a expressão positividade tóxica seja relativamente nova, a ideia é antiga.

Um dia, não muito tempo antes de eu calçar seus chinelos, Bill e eu conversávamos na cozinha, quando ele ficou chateado comigo por eu dizer que algo era “maravilhoso” (talvez tenha sido um sinal do rumo que a vida tomaria).

Ele me olhou e jogou as mãos para o alto exasperado.

— Por que você diz que tudo é maravilhoso? “Isso é maravilhoso, aquilo é maravilhoso.” Como tudo pode ser maravilhoso o tempo todo? As pessoas ficam incomodadas ouvindo você dizer isso. Talvez não achem que essas coisas são tão maravilhosas assim. Talvez você esteja negando o que as coisas realmente são.

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Fiquei surpresa com o comentário, então demorei um instante para responder. Há muito tempo considero o otimismo uma de minhas melhores características.

— Bem — comecei devagar —, porque tudo é maravilhoso. É a parte em que eu foco. Tento achar o que há de maravilhoso, então é isso que acabo enxergando.

Bill balançou a cabeça contrariado.

Pensei muito nessa conversa e, se eu pudesse voltar, responderia diferente:

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O verdadeiro otimismo não é tóxico porque focar o positivo não significa negar o negativo. Não quer dizer que nos dissociamos da dor, seja física, seja emocional, nem que fingimos que tudo está bem quando não está. Apenas, mesmo na dificuldade, procuramos o que é maravilhoso. Sentimos a dor enquanto continuamos a procurar a lição e a ser gratos pelo ensinamento.

Procurar a lição nos permite acessar a gratidão mesmo nos momentos difíceis, como perder a audição ou renunciar à liberdade de dirigir. Na verdade, quase sempre são os momentos em que somos mais desafiados — pela dor, pela perda, pela decepção ou pela mágoa — que nos confrontam com os ensinamentos da vida.

Embora procurar lições nos permita nos conectar com o otimismo e acessar a gratidão, não deixa de ser uma tarefa desafiadora. Mas, mesmo que não possamos tornar isso fácil, será que existe um jeito de deixar menos difícil?

Podemos começar resistindo ao desejo de lutar.”

*Estagiária sob supervisão de Charlise Morais

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