Mercado editorial reage à reforma tributária: ‘Cidadão será prejudicado’

Entidades lançam manifesto contra a taxação de livros, hoje isentos de impostos pela Constituição

PUBLICIDADE

Em reação ao projeto de reforma tributária proposto pelo Ministério da Economia, que abriu uma brecha legal para o retorno da tributação de livros, o mercado editorial se mobilizou para lançar, nesta quarta-feira, 5, o manifesto Em Defesa do Livro.

Leitores usam máscara na Livraria da Vila do Shopping Pátio Higienópolis Foto: Daniel Teixeira/Estadão

PUBLICIDADE

O documento, assinado pela Associação Brasileira de Editores de Livros Escolares (Abrelivros), Câmara Brasileira do Livro (CBL), Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel) e outras entidades do mercado editorial, relembra a história da isenção de impostos aos livros e afirma que “está na tradição da formulação das leis brasileiras e na história das decisões jurídicas, bem fundamentadas e analisadas em vários períodos diferentes da nossa história, que o livro é disseminador de conhecimento em lato senso, e que deve contribuir para o combate à desigualdade de formação da população brasileira.”

O livro é um produto isento de impostos desde a Constituição de 1946, proteção que foi mantida pela atual carta, de 1988. Em 2004, o mercado editorial foi desonerado também do PIS e Cofins, que, pela proposta do governo, seria substituído pela Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços (CBS), que tornaria os livros sujeitos à tributação mais uma vez, sob alíquota de 12%.

Os efeitos dessa proposta, de acordo com Marcos da Veiga Pereira, presidente do Snel, são claros: “Seria desastroso para a indústria, um retrocesso grande”. Para ele, a isenção de impostos para livros “não deveria ser questionável” em qualquer hipótese. “É uma conquista de quase 75 anos. Caímos em um casuísmo ou uma tecnicalidade, que é o fato de você ter uma contribuição, e não um imposto, sendo que a base de tributação é mesma, a venda de livros.”

Publicidade

Para o presidente da Câmara Brasileira do Livro, Vitor Tavares, o efeito será o aumento do preço do livro. “Se a proposta for aprovada do jeito que está, o efeito para o mercado editorial, desde a produção do papel até chegar ao leitor final, é que o preço do livro provavelmente será majorado. Somos um país com carência tremenda de difusão de cultura e conhecimento por meio do livro, e isso vai ficar ainda mais difícil. Empresas como editoras e livrarias, que já estão em dificuldade, vão passar por situações ainda mais complicadas. O livro é um produto tão importante para uma sociedade que se diz moderna e democrática que tem que ficar imune [à tributação]”

Tavares acredita que a medida é preocupante não apenas para o mercado livreiro, mas “o cidadão será prejudicado enormemente”, uma vez que, como lembra Tavares, o próprio governo é responsável pela aquisição de 49% da produção de livros didáticos, e o aumento no valor dessas obras obrigaria o poder público a gastar mais com recursos provenientes do contribuinte, ou a comprar menos, dificultando o acesso à educação para a parcela mais carente da população.

Caso a reforma seja aprovada sem uma emenda que isente o livro, o preço não seria simplesmente acrescido de 12%, como explica Pereira. “Uma despesa muito relevante do mercado editorial é o direito autoral, sobre o qual não incide hoje PIS/Cofins, e não está claro como isso seria tratado na CBS. Outra questão é o salário que, apesar de não ter um impacto tão grande para editores, ainda assim é preciso saber se virá uma desoneração da folha. A indústria do livro trabalha muito com prestadores de serviço terceirizado, como tradutores e revisores, que, em sua maior parte, são empresas tributadas pelo Simples. O cálculo precisaria levar em conta esses elementos.”

Pereira afirma que já se calculou que a CBS representaria cerca de 60% do lucro bruto de uma editora e 50% do lucro de uma livraria. “Não é só o preço da editora. Apesar de o imposto não ser cumulativo, ele impacta cada elo da indústria”, acrescenta o presidente do Snel.

Publicidade

A contribuição incidiria também sobre os livros eletrônicos e dispositivos de leitura digital, uma vez que, após uma decisão do STF em 2017, esses produtos tiveram isenção equiparada à de livros impressos. “O entendimento que o próprio STF reconheceu é que o livro é o conteúdo, não o formato”, informa Pereira.

Apesar de uma alta de 6% no ano passado, o mercado editorial encolheu 20% entre 2006 e 2019 de acordo com a pesquisa Produção e Vendas do Setor Editorial Brasileiro, coordenada pela CBL e pelo Snel e apurada pela Nielsen Book.

Ainda não houve contato oficial entre as entidades que assinaram o manifesto e o Ministério da Economia, mas já há reuniões marcadas com parlamentares e líderes de bancadas para sensibilizá-los para a necessidade da manutenção da isenção de impostos para o livro, e Tavares está confiante: “Grande parte dos legisladores e da sociedade civil é simpática ao produto livro, entendem esse vetor de difusão de cultura”.

Leia a íntegra do manifesto Em Defesa do Livro:

Publicidade

PUBLICIDADE

Em virtude do projeto de reforma tributária proposto pelo Ministério da Economia, ora em tramitação no Congresso Nacional, as entidades representativas do livro no Brasil, signatárias deste Manifesto, consideram urgentes e necessárias as seguintes ponderações:

1. A Constituição Democrática de 1946 consagrou no país o regime de isenção de impostos para o papel utilizado na impressão de livros, jornais e revistas. Inspirada na luta de intelectuais, editores e escritores, a emenda constitucional foi apresentada pelo autor brasileiro de maior prestígio internacional à época, Jorge Amado.

Por um lado, a isenção visava tornar o papel acessível às mais diferentes vozes no debate das questões nacionais, garantindo o suporte material para a livre manifestação de opiniões; por outro, barateava o produto final, permitindo que o livro e a imprensa pudessem chegar às camadas mais amplas da população, em um país onde o analfabetismo era, infelizmente, a regra e não a exceção.

A mudança constitucional possibilitou a criação e o desenvolvimento das bibliotecas públicas no país, beneficiando as pessoas de menor poder aquisitivo e permitindo que o mercado editorial passasse a ter condições de publicar obras de alto valor intelectual e pedagógico, muitas delas sem apelo comercial, a custos compatíveis com o poder aquisitivo do leitor médio. Não há dúvidas de que a popularização do livro teve, e ainda tem, papel fundamental no aumento da educação do brasileiro. 

Publicidade

2. De tal forma se enraizou no espírito da sociedade brasileira o apego à importância da leitura como fonte de educação e crescimento intelectual, de formação de cidadãs e cidadãos, de difusão da cultura e da informação qualificada, que a reforma de 1967 não só preservou o “espírito imunitário” da Constituição, como o ampliou, estendendo a isenção ao próprio objeto: o livro.

A Constituição Cidadã de 1988 não poderia fazer diferente e consolidou a reiterada jurisprudência que isenta o livro, ferramenta básica de conhecimento, educação e cidadania, de impostos. A atual Carta Magna diz, em seu artigo 150, que é vedada à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios criarem impostos de qualquer natureza sobre o livro e a imprensa escrita. 

3. No entanto, dada a complexidade da legislação tributária brasileira, foram criadas ao longo dos anos contribuições sociais, como PIS e COFINS, incidindo sobre a receita das empresas. Uma vez que os livros não são imunes das contribuições, a Lei nº 10.865 de 30 de abril de 2004 reduziu a zero a alíquota do PIS e da COFINS nas vendas de livros, em reconhecimento da importância deste bem para a sociedade.

Isso permitiu uma redução imediata do preço dos livros nos anos seguintes: entre 2006 e 2011, o valor médio diminuiu 33%, com um crescimento de 90 milhões de exemplares vendidos. Os fatos demonstram claramente a correlação entre crescimento econômico, melhoria da escolaridade e aumento da acessibilidade do livro no país.

Publicidade

A imunidade tributária está presente em vários países do mundo. Um relatório da International Publishers Association (IPA) de 2018 argumenta que o livro não é uma commodity como qualquer outra: é um ativo estratégico para a economia criativa, que facilita a mobilidade social assim como o crescimento pessoal e traz a médio prazo benefícios sociais, culturais e econômicos para a sociedade. Qualquer aumento no custo, por menor que seja, afeta o consumo e, em consequência, os investimentos em novos títulos. A imunidade é uma forma de encorajar a leitura e promover os benefícios de uma educação de longo prazo.

Recentemente, em abril do corrente ano, o Supremo Tribunal Federal (STF), em decisão unânime, reconheceu por meio da Proposta de Súmula Vinculante 132, que o direito à isenção tributária do livro se estendia também aos leitores eletrônicos. Enfim, está na tradição da formulação das leis brasileiras e na história das decisões jurídicas, bem fundamentadas e analisadas em vários períodos diferentes da nossa história, que o livro é disseminador de conhecimento em lato senso, e que deve contribuir para o combate à desigualdade de formação da população brasileira. 

4. O escritor e editor Monteiro Lobato cunhou a famosa frase “um país se faz com homens e livros”; anos depois, o editor José Olympio acrescentou: “...e ideias”. Ai do país que se torna um deserto de homens, livros e ideias. Queimado em praça pública sempre que a intolerância triunfa, o livro resistiu aos séculos e atravessou as crises tendo a sua significação para a humanidade renovada e fortalecida.

Aliás, existe alguma prova mais eloquente da importância do livro para as vidas humanas do que as estantes cheias de obras, tal como vemos na televisão e nas telas dos computadores e celulares, nesse momento de isolamento social? Os livros estão ali, às costas das pessoas como as asas de um anjo, significando proteção, sabedoria, compartilhamento de ideias e imaginário, reafirmando nossa fé na humanidade. O amor ao livro renasceu na pandemia.

Publicidade

É fácil calcular o quanto o governo poderá arrecadar com a nova CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços), proposta em regime de urgência ao Congresso. Muito mais difícil é avaliar o que uma Nação perde ao taxar o bem comum da formação intelectual de suas cidadãs e cidadãos. Em perspectiva histórica, o dinheiro arrecadado à cultura, aos livros e à formação científica significa, de fato, um desinvestimento no crescimento futuro do país – que não se dará sem o crescimento intelectual amplo e igualitário de sua população. 

5. As instituições ligadas ao livro estão plenamente conscientes da necessidade da reforma e simplificação tributárias no Brasil. Mas não será com a elevação do preço dos livros – inevitável diante da tributação inexistente até hoje – que se resolverá a questão. Menos livros em circulação significa mais elitismo no conhecimento e mais desigualdade de oportunidades no país das desigualdades conhecidas, mas pouco combatidas.

O Brasil foi o último país a acabar com a escravidão e um dos últimos a permitir a impressão e a circulação de livros e da imprensa, duas marcas negativas na nossa História que até hoje não conseguimos superar. Poucos se dão conta que o mercado nacional de livros tem menos de 200 anos. Enquanto em Paris, no Século das Luzes, lia-se Diderot e Voltaire, enquanto na Alemanha se lia Goethe, na Espanha o Dom Quixote tornava-se leitura popular, em Londres, ilustrava-se com os trabalhos de David Hume, nos Estados Unidos podiase formar o conceito de uma grande Nação nos escritos de homens públicos da estatura de Thomas Jefferson e Benjamin Franklin, no Brasil, Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, um autodidata, articulava sua conjuração carregando um exemplar surrado e contrabandeado do “Compêndio das leis constitutivas das colônias inglesas confederadas sob a denominação de Estados Unidos da América” – em francês.

Ainda não se descobriu nada mais barato, ágil e eficiente do que a palavra impressa – em papel ou telas digitais – para se divulgar as ideias, para se contar a história da humanidade, para multiplicar as vozes da diversidade, para denunciar as injustiças, para se prever as mudanças futuras e para ser o complemento ideal da liberdade de expressão. ABDR | Associação Brasileira de Direitos Reprográficos ABDL | Associação Brasileira de Difusão do Livro ABEU | Associação Brasileira das Editoras Universitárias ABRELIVROS | Associação Brasileira de Editores e Produtores de Conteúdo e Tecnologia Educacional ANL | Associação Nacional de Livrarias CBL | Câmara Brasileira do Livro LIBRE | Liga Brasileira de Editoras SNEL | Sindicato Nacional dos Editores de Livros

Publicidade