Às vezes só nos damos conta de uma ferramenta depois que ela passa a funcionar para nós. E às vezes são as menores ferramentas que nos ajudam a entender os maiores sentimentos. Aprendi isso faz uns anos, quando encomendei algumas agulhas de tricô sem refletir sobre por que precisava delas. Foi durante as primeiras semanas turbulentas de pandemia. Eu estava na nossa casa em Washington, D.C., e fazia compras pela internet, sem planejamento algum, estocando itens como jogos de tabuleiro, materiais de arte, comida e papel higiênico, sem saber como as coisas ficariam, total e mansamente ciente do fato de que compras por impulso são a reação clássica dos americanos às incertezas. Ainda tentava compreender como tínhamos passado, aparente mente de um minuto para o outro, da “vida normal” a uma emergência global absoluta. Ainda tentava compreender o fato de que centenas de milhões de pessoas de repente corriam sério risco de morte. E que a atitude mais segura e mais generosa que o restante de nós poderia tomar na época era ficarmos quietinhos em casa.
Dia após dia, eu assistia aos noticiários, perplexa com a enorme injustiça de nosso mundo. Estava incrustada nas manchetes, na perda de empregos, na contagem dos mortos e nos bairros em que as sirenes das ambulâncias mais gritavam. Li matérias sobre funcionários de hospitais que tinham medo de ir para casa ao fim do expediente, apavorados com a possibilidade de infectar seus familiares. Vi as imagens de caminhões frigoríficos estacionados nas ruas das cidades, preparados para estocar cadáveres. Vi casas de shows convertidas em hospitais de campanha.
Sabíamos pouco e temíamos muito. Tudo parecia colossal. Tudo parecia muito importante.
Tudo era colossal. Tudo era muito importante.
Difícil não se deixar tomar pela consternação.
Passei os primeiros dias fazendo contato com os amigos para ver se estavam bem e me certificando de que minha mãe, que hoje está na casa dos oitenta anos e mora sozinha em Chicago, conseguiria comprar mantimentos de modo seguro. Nossas filhas voltaram da faculdade para casa, ambas abaladas pelo que estava acontecendo e um pouco relutantes em deixar os amigos. Dei um abraço apertado nas duas e garanti que aquilo era passageiro, que em breve elas estariam de volta às festas barulhentas e à preocupação com as provas de sociologia, comendo miojo em suas residências estudantis. Eu disse isso para me ajudar a acreditar. Disse porque sei que faz parte do papel de mãe — dar uma luzinha de certeza mesmo quando as próprias pernas estão bambas, mesmo quando no fundo nos inquietamos com coisas bem maiores do que devolver as filhas aos braços de seus amigos. Mesmo preocupada, a gente exprime as melhores esperanças em voz alta.
À medida que o tempo passava, nossa família ia criando uma rotina tranquila, sedimentada pelos jantares mais demorados de nossas vidas. Tentávamos processar as notícias trocando ideias sobre o que tínhamos ouvido ou lido — as estatísticas sombrias do dia ou as mensagens alarmantemente erráticas vindas da Casa Branca, nosso antigo lar. Jogamos os jogos de tabuleiro que eu tinha comprado, montamos alguns quebra-cabeças e nos acomodamos no sofá para ver filmes. Sempre que achávamos algo digno de risos, nós ríamos. Caso contrário, tudo nos pareceria assustador demais.
Sasha e Malia continuaram os estudos pela internet. Barack estava ocupa do com a escrita de suas memórias presidenciais e cada vez mais focado nas próximas eleições americanas, que em breve decidiriam se Donald Trump cumpriria um segundo mandato. Enquanto isso, eu botava minha energia em uma iniciativa que tinha ajudado a criar em 2018, chamada When We All Vote [Quando Todos Nós Votamos], cujo objetivo era empoderar eleitores e aumentar o número de pessoas que comparecem às urnas. A pedido de nosso prefeito, participei de uma campanha de serviço público com o enfático nome de Stay Home dc (Fique em Casa D.C.), estimulando os moradores da cidade a se isolarem e a se testarem em caso de algum mal-estar. Gravei mensagens de incentivo que seriam transmitidas a exaustos trabalhadores de prontos-socorros. E, na tentativa de amenizar um bocadinho do peso que, eu sabia, muitos pais e mães estavam aguentando, lancei uma série de vídeos semanais em que lia livros infantis para as crianças.
Nem de longe senti que bastava.
Sem dúvida não bastava.
Era uma realidade que muitos de nós enfrentávamos na época: nada parecia bastar. Havia buracos demais para tapar. Em comparação com a enormidade da pandemia, todas as iniciativas pareciam minúsculas.
Acredite, não tenho ilusões quanto a minha sorte e meus privilégios nessa situação. Entendo que ser forçada a se isolar durante uma emergência mundial devastadora não é um martírio, sobretudo se pensarmos no que tantos vivenciaram naquele período. Minha família fez exatamente o que muitos foram instruídos a fazer em prol da segurança geral — se preparou para enfrentar uma tempestade destruidora.
Para mim esse momento de quietude e isolamento foi um grande desafio, assim como sei que foi para muitos outros. Foi como abrir um alçapão para uma montanha de preocupações que eu não conseguia entender nem controlar.
Àquela altura, tinha passado minha vida inteira atarefada — me mantendo ocupada —, em certa medida, penso eu, para assegurar uma sensação de controle. No trabalho e em casa, sempre vivi cumprindo listas, programações e planos estratégicos. Eram como um mapa, um jeito de saber para onde eu estava indo e como chegar lá da maneira mais eficiente possível. Também era um pouquinho obcecada com a ideia de progredir e medir esse progresso. É possível que eu já tenha nascido com esse ímpeto. Talvez eu o tenha herdado de meus pais. Eles afirmavam sua fé inabalável em que Craig e eu tínhamos talento para a grandeza, mas também deixavam claro que não fariam as coisas por nós, crentes de que seria melhor que as realizássemos por conta própria. Também é provável que parte dessa diligência fosse fruto das circunstâncias, do fato de que, no nosso bairro da classe trabalhadora, as oportunidades raramente caíam do céu. Era preciso procurá-las. Às vezes, a bem da verdade, era necessário caçá-las com obstinação.
E eu não via problema em ser obstinada. Passei anos mergulhada na busca por resultados. Cada novo espaço onde entrava se tornava um campo de provas. Minha vida agitada era como uma medalha que eu tinha conquistado. Acompanhava meu progresso por meio dos números — meu coeficiente de rendimento, minha posição entre os alunos da classe — e era recompensada por isso. Trabalhando em uma firma de advocacia especializada em direito empresarial, no 47.º andar de um arranha-céus de Chicago, aprendi a espremer o máximo de horas remuneradas dentro dos dias, semanas e meses. Minha vida se tornou uma pilha de horas meticulosamente calculadas, embora minha felicidade começasse a minguar.
Nunca fui de ter hobbies. De vez em quando, me deparava com alguém — em geral, mulheres — tricotando nos aeroportos e nos auditórios universitários, ou no ônibus, a caminho do trabalho. No entanto, nunca dei muita atenção a isso, nem ao tricô, nem à costura ou ao crochê, nem a nada do gênero. Estava ocupada demais acumulando horas e monitorando meu desempenho.
O tricô estava ali, entretanto, entranhado no meu DNA. Ao que consta, sou descendente de costureiras. Segundo minha mãe, todas as mulheres da família dela tinham aprendido a manusear agulhas e fios, a coser, a fazer crochê e a tricotar. Menos por paixão e mais por praticidade: costurar era uma salvaguarda simples contra a miséria. Sabendo fazer ou remendar roupas, a pessoa sempre tinha como ganhar dinheiro. Havia poucas coisas na vida em que se podia confiar, e as próprias mãos eram uma dessas coisas.
Minha bisavó Annie Lawson — que conheci como “Mamaw” — ficou viúva ainda jovem, mas conseguiu garantir seu sustento e o de dois filhos em Birmingham, no Alabama, remendando as roupas dos outros. Era assim que botava comida na mesa. Por razões parecidas, os homens da família de minha mãe aprenderam carpintaria e também a consertar sapatos. A família inteira compartilhava recursos, renda, casas. Por isso minha mãe cresceu em uma casa com pai e mãe, seis irmãos e também, por alguns anos, com Mamaw, que se mudou de Birmingham para Chicago e continuou costurando, fazendo sobretudo ajustes em peças de brancos ricos. “Não tínhamos nada em excesso”, minha mãe diz, “mas sempre sabíamos que íamos comer.”
Nos meses de verão, Mamaw guardava a máquina de costura Singer na mala e ia de ônibus até o norte da cidade, onde uma das famílias para as quais trabalhava tinha uma casa de veraneio de frente para um lago. Ela passava alguns dias lá. Ninguém da nossa família conseguia imaginar como seria esse lugar — com veleiros balançando na água, crianças vestindo roupas de linho e vários meses de férias —, mas sabiam que fazia calor, que a Singer era pesada e que àquela altura Mamaw já não era uma jovenzinha.
Aquele esforço imenso fazia com que seu filho — meu avô Purnell Shields, a quem mais tarde daríamos o apelido de “Southside” — perguntasse em voz alta, em tom de desaprovação, por que pessoas com dinheiro para bancar uma casa de veraneio não podiam comprar uma máquina de costura para essa casa, poupando Mamaw da inconveniência de carregar aquele peso todo. Mas, é claro, não havia como fazer essa pergunta de forma bem-educada aos responsáveis. E, de qualquer modo, a resposta já estava clara: não era que não pudessem. É que simplesmente não faziam aquilo. Era bem provável que a ideia nem lhes passasse pela cabeça. E, portanto, Mamaw ia carregando a Singer de um lado para o outro no decorrer do verão, cuidando das roupas alheias.
Minha mãe nunca se esqueceu dessa história. Ela a conta sem moralismos, mas nas entrelinhas há um lembrete silencioso, transmitido de geração em geração, do peso que nossa família, nosso povo, carregou ao longo do tempo — de tudo o que precisaram consertar, servir, remendar e arrastar para conseguir sobreviver.
Eu não pensava nessas coisas quando era jovem, mas instintivamente sen tia parte desse peso. Ele estava presente, embutido no meu empenho implacávvel, uma responsabilidade que eu sentia em nome de outros, de ir além, fazer mais e ceder menos. E acho que minha mãe também sentia isso. Quando meu pai declarou que Craig e eu devíamos aprender a remendar os furos de nossas meias, minha mãe foi logo rebatendo: “Eu quero que eles se concentrem nos estudos, não nas meias, Fraser. Assim, um dia eles vão poder comprar todas as meias de que precisarem”.
Acho possível dizer que cresci concentrada exatamente nisso, buscando uma vida de meias compradas e não de meias remendadas. Eu me esforçava para ter sucesso, mudando de carreira não uma, mas algumas vezes. Saí do culto das horas remuneradas e arranjei empregos que me aproximavam da minha comunidade, embora não fossem menos agitados. Virei mãe, uma alegria imensurável que acrescentava uma nova série de variáveis à pista com obstáculos onde eu me sentia correndo todos os dias. Assim como muitas mães, eu planejava, organizava, arrumava a bagunça e economizava. Decorei a ordem dos corredores da Target e da Babies R Us para maximizar minha eficiência. Com muito cuidado, criei processos e sistemas que davam certo — para a nossa família, para o meu trabalho, para minha própria saúde e sanidade —, revisitando e reformulando-os continuamente enquanto as crianças cresciam, enquanto a carreira política de Barack nos engolfava e eu seguia adiante, tentando obter minhas próprias conquistas.
Se me vinha uma divagação, uma mágoa não resolvida ou um sentimento inclassificável, eu geralmente o guardava em uma gaveta mental e deixava lá, pensando que o retomaria depois, em um momento menos atribulado.
O excesso de tarefas traz benefícios tangíveis. Passar oito anos na Casa Branca confirmou essa ideia, já que o nível brutal de responsabilidades — agir, reagir, representar, comentar, consolar — raramente dava trégua. Como primeira-dama, me acostumei a atuar no âmbito da grandiosidade — grandes questões, grandes eventos, grandes plateias, grandes resultados. E a grandiosidade, claro, anda de mãos dadas com a agitação. O ritmo vertiginoso deixava tanto Barack como eu, para não falar dos que trabalhavam ao nosso lado, com pouco tempo para pensar em pontos negativos. Formávamos uma engrenagem enxuta, incapaz de se dar ao luxo de engasgar. De certo modo, estava tudo muito claro, o que nos ajudava a ter uma perspectiva ampla, vasta e de modo geral otimista. Nesse sentido, manter-se ocupado é uma espécie de ferramenta. É como vestir uma armadura: se alguém está atirando flechas na sua direção, suas chances de ser atingido são menores. Simplesmente falta tempo.
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