AFP | O escritor checo que mudou para o francês, eterno candidato ao Prêmio Nobel, Milan Kundera, que morreu na terça-feira aos 94 anos, era um observador sarcástico da condição humana, autor de romances sombrios e provocativos, sem respostas fáceis.
“O romancista não deve prestar contas a ninguém, exceto a Cervantes”, disse certa vez o autor não muito prolífico de cerca de 15 romances, peças de teatro e ensaios.
Kundera começou a escrever em checo, mas no final da década de 1970, depois de se exilar na França, decidiu mudar para o francês. Ele foi um dos poucos escritores a publicar o trabalho durante a vida na coleção francesa La Pléiade, tradicionalmente reservada aos clássicos.
O último romance dele, “A Festa da Insignificância”, que narra as aventuras de quatro amigos que vivem em Paris, data de 2014 e quebrou um silêncio de 14 anos.
Pouco afeito à popularidade, o escritor evitou a mídia por mais de três décadas, embora pudesse ser visto passeando com a esposa Vera em seu bairro em Paris, onde morreu. “O romancista é aquele que, como disse Flaubert, aspira a desaparecer atrás de sua obra”, disse ele.
Expulso do Partido Comunista
Nascido em 1º de abril de 1929 em Brno (República Checa) em uma família de músicos, Kundera era um artista polifônico e seus escritos combinam ironia, inteligência e um desespero elegante.
Antes da “Primavera de Praga”, em 1968, ele já era um escritor importante graças ao seu romance “A Brincadeira” (1967), uma avaliação amarga das ilusões políticas da geração de 1948, e “Risíveis Amores”.
Ele se filiou ao Partido Comunista Checo em 1948, mas foi expulso dois anos depois. Depois de estudar literatura e cinema, lecionou no Instituto de Estudos Cinematográficos de Praga.
Seu primeiro livro de poemas, “Man is My Garden” (1953), estava impregnado de marxismo. De fato, em 1958, o Partido Comunista o readmitiu em suas fileiras, antes de uma nova exclusão em 1970.
Finalmente, em 1975, Kundera se exilou na França com a mulher Vera. Naturalizado francês em 1981, ele escolheu a língua de Molière para escrever, marcando uma ruptura com o país natal, que lhe retirou a nacionalidade checa em 1978 e a devolveu em 2019, muitos anos após o fim do comunismo.
O Ocidente como inspiração
Professor da Universidade de Rennes até 1979, Kundera pensou ter posto um ponto final na literatura com “A Valsa dos Adeuses” (1973), um romance em que os destinos de oito personagens se entrelaçam. Mas o confronto com o Ocidente o inspirou novamente.
“A Insustentável Leveza do Ser” (1984) o consagrou como um dos maiores escritores contemporâneos. Um conto moral sobre liberdade e paixão, tanto individual quanto coletiva, a história de Tomas, Teresa e Sabina, confrontada com a Primavera de Praga e o exílio, foi adaptada para um filme pelo americano Philip Kaufman, estrelado por Juliette Binoche e Daniel Day-Lewis.
“Minha ambição é dizer o que os outros não disseram. Se você não inovar, não precisa escrever”, disse Kundera, que queria “reconciliar o romance com a filosofia e a inteligência, fazer com que o pensamento entrasse no romance.”
Desde o exílio, Kundera retornou várias vezes ao país natal, mas sempre incógnito.
Tensões com o país natal
“Quem é Milan Kundera?”, perguntou a revista checa Tyden em abril de 1997. Naquela época, apenas quatro dos livros dele haviam sido publicados no país natal.
Uma década depois, em outubro de 2008, o semanário checo Respekt publicou uma violenta diatribe contra ele, acusando-o de ter denunciado o opositor Miroslav Dvoracek em 1950, que foi condenado a 22 anos de trabalhos forçados. O escritor negou categoricamente o fato. “Pura mentira”, respondeu ele.
Seus detratores também o censuraram por dar as costas a seus compatriotas e não apoiar os dissidentes após seu exílio.
Em 2009, ele causou um novo escândalo em seu país de origem ao recusar um convite para uma conferência internacional sobre seu trabalho em Brno, descrevendo-a em uma carta aos organizadores como uma “festa necrófila”.
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