‘Minha Análise com Freud’: Leia trecho exclusivo de livro que mostra pai da psicanálise como clínico

Abram Kardiner (1891-1981) foi paciente de Freud na década de 1920; grande incentivador da psicanálise nos EUA, ele faz relato íntimo de como era ser analisado pelo médico

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Foto do author Julia Queiroz

Como era Freud dentro de seu consultório? Como seus pacientes se sentiam ao deitar no mais famoso divã da história da psicanálise? Este é o tema do livro Minha Análise com Freud, de Abram Kardiner (1891-1981), psiquiatra norte-americano que foi professor na Universidade Columbia de Nova York e um dos fundadores da New York Psychoanalytic Institute.

A obra narra o período de seis meses em que Kardiner foi analisado pelo pai da psicanálise em seu consultório em Viena, Áustria, no início da década de 1920. Inédito no Brasil e publicado originalmente em 1977, o livro chega às livrarias nesta quarta-feira, 13 de março, pela Quina. Leia um trecho abaixo.

'Minha análise com Freud': Livro inédito no Brasil mostra pai da Psicanálise como clínico Foto: Quina/Divulgação e Eddie Worth/AP

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“Poucas pessoas tiveram o privilégio de ser analisadas pelo próprio Freud. Por uma série de eventualidades, cheguei a ele por meio de H. W. Frink [psicanalista americano]. Se eu fosse mais jovem, hesitaria em revelar os fatos biográficos necessários para essa empreitada”, explica o autor no prefácio.

Kardiner diz que seu objetivo não é contribuir à Freudiana, “sobre a qual já existe material abundante”, e sim revelar a técnica do médico a partir de um caso específico - o dele mesmo. O especialista conta, através dos encontros com Freud, sobre sua infância, as diferenças com o pai, a relação sinuosa com a madrasta e descreve os sonhos que foram analisados pelo psicanalista.

O período que passou com Freud alterou “o destino e a existência” de Kardiner, como ele próprio escreve no livro. Um deles momentos de análise e a interpretação de um sonho aparecem em trecho da obra selecionado pelo Estadão. Confira:

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Leia trecho de Minha Análise com Freud:

Então houve outro sonho, acho que na mesma noite, o qual eu nunca compreendi por inteiro. Eu estava ao lado de um enorme gato do qual aparentemente eu não sentia medo, mas ele estava imóvel e indiferente.

Freud disse: “Bem, parece que chegamos a algo muito importante aqui. No primeiro sonho, você obviamente não quer que eu aprofunde a sua relação com seu pai. Quer que a imagem permaneça como você a retocou, e assim, no sonho, você me diz para não continuar escavando o passado, que não encontrarei nada de importante”.

“Mas por que”, perguntei, “teria eu retocado a imagem do meu pai?”

“Para que de alguma maneira você pudesse conviver com ele. Em sua primeira infância, ele evidentemente o apavorava. No entanto, quando sua madrasta chegou, o temperamento de seu pai mudou, e é esse temperamento retocado que você desejava conservar e assim esquecer o pai raivoso dos seus primeiros anos. Mas você permaneceu submisso e obediente a ele de modo a não despertar o dragão adormecido, o pai bravio”. Minha reação imediata foi aceitar a interpretação de Freud. Foi apenas muitos anos depois que entendi o erro básico que ele cometeu aqui.

Sigmund Freud em foto de 1929. Foto: Library of Congress

O homem que havia concebido o conceito de transferência não o reconheceu quando ocorreu nesse caso. Ele não percebeu uma coisa. Sim, eu tive medo do meu pai na infância, mas aquele que eu temia agora era o próprio Freud. Ele poderia me ajudar ou me destruir, o que meu pai não mais poderia fazer. Com sua afirmação, ele deslocou toda a ação para o passado, assim fazendo da análise uma reconstrução histórica. A parte retouchée de sua interpretação, entretanto, estava bastante correta.

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Eu havia sido mais temeroso e submisso diante do meu pai do que eu tinha consciência, e dissimulara de mim mesmo minha própria agressividade e hostilidade em relação a ele. Mas pelos mesmos motivos, eu agora temia que Freud fosse descobrir minha agressividade dissimulada. Fiz com Freud um pacto silencioso. “Continuarei a ser submisso desde que você me deixe usufruir de sua proteção”. Se ele me rejeitasse, eu perderia a minha chance de entrar nesse círculo profissional mágico. A aceitação tática, de minha parte, isolou do escrutínio uma parte importante do meu caráter.

“O gato”, eu disse. “E quanto ao gato?”

“O grande gato”, Freud respondeu, “é a sua madrasta”.

Isso desencadeou uma série de associações em minha mente. Eu ainda podia ver a expressão enigmática no rosto do gato. Ele parecia imóvel, inacessível, indiferente. O que tinha isso a ver com a minha madrasta? Se, por um lado, eu temia meu pai, por outro faltava-me “confiança” nela. Talvez fosse essa a conexão com o gato. Ela estaria ali quando eu realmente precisasse dela, sobretudo como uma proteção contra meu pai? A resposta parecia estar no gato. Ela não era hostil, mas imóvel!

Em voz alta, eu disse a Freud: “Mas a minha madrasta é uma força tão estabilizadora na minha vida que sempre lhe serei grato”.

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Pela primeira vez na análise, Freud ergueu o tom de voz. “Você está enganado a respeito de sua madrasta. Ainda que seja verdade que ela lhe propiciou um ambiente estruturado, também o superestimulou sexualmente e assim intensificou sua culpa em relação ao seu pai. Para evitar esse dilema você se refugiou em sua homossexualidade inconsciente por meio da identificação com a sua mãe natural. A base para isso foi ter se identificado com sua mãe indefesa pelo medo de se identificar com seu pai raivoso, agressivo”.

Tentei compreender o que Freud estava me dizendo. Eu podia entender a identificação e a parte feminina. Quando criança, eu me lembro de sentir que deveria ser um privilégio extraordinário ser uma dessas notáveis criaturas. Elas pareciam dispor de um tempo tão mais tranquilo. Tudo o que precisavam fazer era cuidar da casa e dos filhos. A verdadeira responsabilidade recaía sobre o pai. Tendo eu assistido aos esforços do meu pai para sustentar uma vida simples, essa imagem era agora compreensível para mim. Ao olhar para esse homem que era um adulto gigante, eu, a criança, podia apenas sentir uma fragilidade que me tornava inepto para a tarefa de desempenhar feitos audaciosos, como ir para a América ou combater um mundo hostil e assim ganhar a vida arduamente. Desta maneira, meu desejo pelo papel feminino era de fato o desejo de escapar das tribulações de ser homem. Mas isso nunca interferiu em minha pulsão erótica direcionada ao sexo feminino. Portanto, a interpretação de Freud me surpreendeu. Não consegui entender o que tudo isso tinha a ver com homossexualidade inconsciente, e pedi a ele que me explicasse.

“O que você quer dizer”, perguntei, “com homossexualidade inconsciente?”

Ele esclareceu: “Ao identificar-se com a mãe, a criança renuncia à sua identificação com o pai, dessa forma descontinuando seu papel de rival do pai. Isso lhe garante a contínua proteção do pai, assim respondendo a suas necessidades de dependência”.

“O que posso fazer em relação a isso?”

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A resposta de Freud foi: “Bem, assim como ocorre em relação ao complexo de Édipo, acaba-se aceitando, reconciliando-se com isso”.

Ao comparar minhas anotações com as de outros estudantes, descobri que, assim como o complexo de Édipo, a homossexualidade inconsciente era parte rotineira das análises de todos. Ela consumiu boa parte do restante da minha.

Eu havia deixado a última sessão sentindo-me tranquilo, mas de certa forma intrigado por essas novas compreensões.

Minha análise com Freud

  • Autor: Abram Kardiner
  • Tradução: Nina Schipper
  • Capa: Henrique P. Xavier
  • Editora: Quina (128 págs.; R$ 56)
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