O crítico literário e sociólogo Antonio Candido, dono de uma das obras mais fundamentais da intelectualidade brasileira, morreu aos 98 anos.
Ele estava internado no Hospital Alberto Einstein, em São Paulo, com problemas no intestino, de acordo com Edla Van Steen. O velório será no próprio hospital (Av. Albert Einstein, 627 - Morumbi, São Paulo), das 9h às 17h. O corpo será cremado no sábado, 13, em uma cerimônia reservada à família. A pedido de Candido, suas cinzas serão misturadas às de Gilda Mello e Souza (morta em 2005), o grande amor de sua vida. Ele morreu à 1h40 desta sexta-feira, 12, em decorrência de uma hérnia de hiato inoperável.
Autor de livros fundamentais como Introdução ao Método Crítico de Silvio Romero (1944), Formação da Literatura Brasileira (1959), Literatura e Sociedade (1965), entre muitos outros, Candido formou uma maneira de pensar a literatura brasileira que influenciou toda a crítica literária do País desde então.
Em 1956, ele criou o Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, caderno que se tornou paradigma do jornalismo cultural no Brasil.
O crítico e ensaísta se definia como um sobrevivente. "Sou provavelmente o último amigo vivo de Oswald de Andrade, um escritor dono de uma personalidade vulcânica", comentou Candido, em rara entrevista, em Paraty, onde, em 2011, fez a conferência de abertura da 9.ª Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip. Como o homenageado era justamente o autor de Marco Zero, Candido decidiu quebrar seu silêncio - não gostava de ser entrevistado tampouco de fazer aparições públicas.
O ensaísta mantinha fortes lembranças de Oswald (1890-1954) justamente por causa de sua personalidade marcante. "Ele tinha traços de gênio: mesmo não sendo um grande leitor, Oswald captava a essência dos assuntos e discursava como grande entendedor." A amizade entre eles começou depois de uma crise – o escritor não gostou de uma crítica escrita por Candido sobre Marco Zero, romance de 1943. "O comunismo fez mal para ele, que passou a escrever uma literatura mais engajada, longe da linguagem telegráfica que era seu melhor estilo", contou Candido. "Eu era um jovem crítico, estava com 24 anos, e não aceitava aquele silêncio que rondava a obra de Oswald, considerado um autor inatacável."
ACERVO: Antonio Candido no Suplemento Literário
Passado o tempo, o próprio Antonio Candido reconheceu o exagero de sua escrita, a ponto de produzir um longo ensaio em que reconhecia o valor literário do autor. Foi o suficiente para estabelecer uma amizade profunda e sincera, que resistiu até às novas críticas de livros.
O exercício, aliás, era arriscado. Candido comentou que o crítico literário de sua época era obrigado a lidar com nomes que, naquele momento, ainda eram desconhecidos.
"Certo dia, recebi um livro chamado Perto do Coração Selvagem, assinado por Clarice Lispector. Pensei que fosse um pseudônimo, porque isso não é nome de gente, Lispector. Eu não sabia quem era e precisava dizer se o livro era bom ou era ruim. Ou seja, minha responsabilidade como crítico era muito grande, pois lidava com autores como Murilo Mendes e Carlos Drummond de Andrade, que ainda não tinham conquistado notoriedade. Tive a sorte de viver um tempo de esplendor da literatura brasileira. Mas avaliações erradas poderiam custar o emprego."
Candido lembrou que, em sua época, a crítica era militante e alguns jornais tinham o chamado crítico titular. No seu caso, ele era o do jornal Folha da Manhã, enquanto o do Estado era Tobias Barreto. "O crítico titular tinha muito autoridade, porque representava o jornal. Costumo dizer que a crítica literária daquele tempo era uma atividade de alto risco."
Trabalhou na função durante 24 anos e se orgulhava, por exemplo, de ter escrito o primeiro artigo analítico sobre a obra de João Cabral de Melo Neto. "Ele não sabia disso. Foi Drummond quem o informou."
Com o tempo, a função de resenhista foi gradativamente assumida pelos teóricos de universidade, que preferiam não correr risco. "Eles escreviam apenas sobre escritores já mortos, com a obra consolidada, o que evitava julgamentos apressados se fosse o caso de autores ainda vivos."
Para ele, a crítica era essencialmente exercida por teóricos universitários. Candido dizia conhecer a maioria, pois foram seus alunos, formando a "paróquia", como gosta de ironizar. "Admiro muito as novas gerações de críticos, todos muito eruditos", comentou, citando Roberto Schwarz e José Miguel Wisnik, entre outros.
Exibindo uma disposição invejável, a que atribui à boa genética, Antonio Candido reclamou, no entanto, de fazer o trajeto entre São Paulo e Paraty. "Isso me ensinou que não posso mais viajar de carro." Também lembrou que vivia "encalhado" no passado, pois ainda utilizava uma máquina de escrever, dispensando computador, celular e outros produtos da modernidade. Também desconhecia o que se produz atualmente na literatura, preferindo a releitura de clássicos. "Faz 20 anos que não leio nada de novo. Prefiro Dostoievski, Proust, Eça de Queiroz."
Vida. Antonio Candido nasceu no dia 24 de julho de 1918, no Rio de Janeiro, e depois de passar a infância nos limites entre Minas Gerais e São Paulo, se estabeleceu na capital paulista em 1937. Ingressou e abandonou a Faculdade de Direito da USP, para em 1942 se graduar em Filosofia.
Foi na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, no fim dos anos 1930, que encontrou o grupo que ajudaria a formatar a intelectualidade paulistana por meio da crítica cultural. Do Grupo Clima faziam parte, além de Candido, nomes como Decio de Almeida Prado, Paulo Emilio Salles Gomes, Lourival Gomes Machado, Ruy Galvão de Andrada Coelho, Gilda de Mello e Souza, entre outros.
A marca fundamental do Grupo Clima foi a modalidade intectual escolhida para o trabalho: a crítica cultural, da literatura, ao cinema, ao teatro e às artes plásticas. Em contato com professores franceses da USP, Candido e os colegas do Clima promoveram uma renovação à ensaística brasileira, rompendo com a geração modernista anterior - mais ligada à produção artística e doutrinação política.
Nos anos 1940, eles editam a Revista Clima, que os insere de vez no cenário cultural paulistano e brasileiro. Na mesma década, Candido também escreve regularmente para os jornais Folha da Manhã e O Diário de São Paulo. Em 1945, se torna professor catedrático da USP e publica seu primeiro livro, Introdução ao Método Crítico de Sílvio Romero, sua tese de livre-docência.
Em 1954, conclui o doutorado em Ciências Sociais, com a tese Os Parceiros do Rio Bonito, ensaio sociológico e antropológico sobre o caipira paulista e sua transformação.
Dois anos depois, a convite de Julio de Mesquita Filho, entrega o projeto do Suplemento Literário d'O Estado de S. Paulo, que seria editado nos 10 anos seguintes por Decio de Almeida Prado. O Suplemento Literário se tornou um dos grandes paradigmas do jornalismo cultural no Brasil, fundamental para entender as relações entre o pensamento universitário e a imprensa no País - relações que ajudou a estabelecer e modelar.
No projeto, Candido previa a conciliação entre bom nível cultural e as exigências de informação jornalística. "Serão atendidos os interesses tanto do leitor comum quanto do leitor culto, devendo-se evitar que o Suplemento se dirija exclusivamente a um ou a outro", escreveu.
Em depoimento no livro Suplemento Literário, Que Falta Ele Faz!, de 2007, de Elizabeth Lorenzotti, a crítica literária Leyla Perrone-Moysés resumiu o alcance do projeto: "Entre nós, nunca mais a imprensa cultural atingiu aquele nível".
No número de abertura do Suplemento, em 6 de outubro de 1956, Candido escreveu uma resenha consagradora de Grande Sertão: Veredas. "Este romance é uma das obras mais importantes da literatura brasileira - jato de força e beleza numa novelística algo perplexa como é atualmente a nossa", relatou. O caderno circulou até o dia a 22 de dezembro de 1974.
Formação da Literatura Brasileira (1959), livro de sua autoria, é considerado até hoje a mais importante obra de crítica literária contemporânea do país. Em dois volumes grandes, Candido forja uma revolução na maneira de pensar a literatura brasileira e por tabela altera a interpretação da própria sociedade nacional. Dono de uma prosa cristalina e elegante, estabeleceu as bases para que a literatura brasileira passasse a conversar mais diretamente com a produção cultural e a realidade do País.
Sua ideia era a de que, basicamente, a literatura nacional fazia parte de um sistema mais amplo, relacionado às culturas europeias, mas em busca de traços exclusivos. Há também o pensamento claro de que a produção brasileira está atrás das grandes literaturas universais, mas que, afinal, esse seria o único jeito possível de exprimir um sentimento nacional.
Durante a década de 1960, Candido torna-se professor de Teoria Literária e Literatura Comparada na USP, dando aulas também na Universidade de Paris e na Universidade de Yale.
Aposentado da universidade desde 1978, permanece atuando na pós-graduação e na orientação de trabalhos acadêmicos, bem como no debate social, cultural e político do País.
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