Morre Antonio Cicero, poeta imortal da ABL, letrista e irmão de Marina Lima: ‘Morrer com dignidade’

Cicero era autor de livros de poesia e filosofia e de letras importantes da MPB, como ‘Fullgás’; poeta optou pelo suicídio assistido, na Suíça

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Foto do author Gabriela Caputo
Atualização:

Alerta: o texto abaixo trata de temas como suicídios e transtornos mentais. Se você está passando por problemas, veja ao final dele onde buscar ajuda.

O poeta carioca Antonio Cicero morreu nesta quarta-feira, 23, na Suíça, aos 79 anos. A informação foi confirmada pela Academia Brasileira de Letras (ABL), da qual o escritor era membro desde 2017. Diagnosticado com Alzheimer, Cicero optou pelo suicídio assistido, e estava na Suíça, onde a prática é permitida (veja quais países também permitem), acompanhado do marido, o figurinista Marcelo Pies.

“O que ocorre é que minha vida se tornou insuportável. Estou sofrendo de Alzheimer. Assim, não me lembro sequer de algumas coisas que ocorreram não apenas no passado remoto, mas mesmo de coisas que ocorreram ontem. Exceto os amigos mais íntimos, como vocês, não mais reconheço muitas pessoas que encontro na rua e com as quais já convivi. Não consigo mais escrever bons poemas nem bons ensaios de filosofia”, ele escreve em sua carta final endereçada a amigos. Ele escreve ainda: “Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade”. Leia abaixo na íntegra, ou aqui.

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Além de poeta e imortal da ABL, Cicero foi compositor, crítico literário e filósofo.

Irmão da cantora Marina Lima, o escritor teve a trajetória na literatura cruzada com o universo da música. Escreveu letras de canções como Fullgás e Pra Começar em parceria com a irmã e também colaborou com outros artistas, como João Bosco, Adriana Calcanhotto e Lulu Santos. Com Lulu, foi coautor do sucesso O Último Romântico.

Cicero começou a cursar filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e, na sequência, estudou no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ele, porém, terminaria seus estudos em Londres, na Universidade de Londres, depois de precisar se mudar para a capital britânica em 1969, por causa da ditadura militar.

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Antonio Cicero em participação na FLIP em 2010. Poeta morreu nesta quarta, 23, aos 79 anos. Foto: Tasso Marcelo/Estadão

Ele é autor de diversas publicações de poesia e reflexões sobre a modernidade. Em 1994, em parceria com o poeta Waly Salomão, organizou o livro O Relativismo Enquanto Visão do Mundo (Editora F. Alves), que reuniu conferências realizadas no projeto Banco Nacional de Ideias, promovido pelos dois poetas com intelectuais de importância mundial.

Dentre os livros de poemas, destacam-se Guardar (Editora Record), de 1996, e A Cidade e os Livros (Editora Record), de 2002. Cicero ainda teve o poema Guardar incluído na antologia Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século (Editora Objetiva) em 2001 e foi finalista do Prêmio Jabuti pelos ensaios filosóficos reunidos em Finalidades sem Fim (Companhia das Letras) em 2005.

Ele lançou, em 1996, o CD Antonio Cicero por Antonio Cicero, em que recita seus poemas, e participou, em 2002, de uma coletânea de quatro CDs feita com nomes como Gabriel o Pensador, Chico Buarque, Ronaldo Bastos e Fernando Brant em homenagem a Carlos Drummond de Andrade.

O escritor, poeta e crítico literário Silviano Santiago lamentou a morte de Cicero. Eram bons amigos. Em conversa com o Estadão, Santiago lembra com carinho de quando foi convidado por Cicero para escrever a orelha de seu primeiro livro de poesia, Guardar, de 1996. “Me surpreendeu a alta qualidade. Era uma poesia curiosa, milimetricamente bem pensada e articulada, e sobretudo muito simples”, nota Santiago.

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A obra Guardar (que Santiago considera carinhosamente um “afilhado”) foi publicada quando Cicero já estava na casa dos 50 anos. “Um sinal da maturidade dele: tinha uma formação filosófica muito forte e muito segura, e trazia uma nova simplicidade à linguagem poética brasileira. Simplicidade essa que havia sido um pouco vulgarizada pela geração anterior, da década de 1970, conhecida como ‘mimeógrafo’”, analisa Santiago.

O autor destaca, portanto, a forma como Cicero alinhava o conhecimento de poesia ao de filosofia, expondo o complexo com facilidade, como importante contribuição para a poesia literária brasileira. E, logo, muito relevante também para a “vanguarda pop” da época, ressalta.

“Cicero oscila entre a produção de Cazuza e de Caetano. Cazuza tem o que eu chamaria de simplicidade juvenil, de dizer as coisas pelo que elas são. E Caetano não, ele busca dizer as coisas da atualidade da maneira que julga mais conveniente”, pensa Santiago.

Santiago compara a “organicidade na criação artística” apresentada por Cicero e a irmã Marina Lima, que foi sua grande intérprete, à dos também irmãos Billie Eilish e Finneas. “Quando escutei suas músicas pela primeira vez, foi disso que lembrei, e até escrevi para os dois”, lembra. Em agosto, Marina cantou Lunch, música de Billie, em um show.

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Deixando um pouco de lado a análise da obra, Santiago compartilha que o gesto final do amigo o deixa arrasado. “Cicero teve de enfrentar a morte de uma maneira quase socrática, como se, de antemão, condenado pela morte. Surge a coragem, que é muito importante na poesia dele. A coragem de um ato elegante diante da inexorabilidade da morte. Essa carta, esse diálogo dele com a morte, vai inspirar reflexões muito profundas, sobretudo entre aqueles que se aproximam desse momento”, considera Santiago.

A elegância, conta Santiago, foi uma tônica da amizade deles. “Mantivemos uma boa e rica amizade durante algumas décadas. Era aquele porto seguro, onde as boas conversas atracam e permanecem seguras e inabaláveis e também inesquecíveis. Nessas condições é que nascem e crescem as grandes amizades literárias e da vida”, resume o escritor.

“Como filósofo (bem mais que um comentador), poeta e letrista, Cicero demonstrou sempre uma excelência que o distinguia e que fez dele um caso singular na inteligência brasileira. Tinha a ambição dos grandes intelectuais associada a um estupendo conhecimento de arte, literatura, filosofia, política e à entrega árdua e diária de um aprendiz”, falou ao Estadão o poeta Eucanaã Ferraz.

Ferraz frisa a elegância mencionada por Santiago: “Sua figura pública, no entanto, definia-se sempre pela simplicidade, pela discrição, pela elegância e pela moderação. Some-se a tudo isso o senso de humor, a delicadeza e a polidez, que faziam dele um homem definitivamente encantador em qualquer situação. Uns versos seus dizem: Da vida não se sai pela porta: / só pela janela. Não se sai / bem da vida como não se sai / bem de paixões jogatinas drogas”.

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“Não há como falar do amigo que partiu – impossível descrever, nem mesmo evocar, o que se passou em tantos anos de convívio, de intimidade, de partilhas. Tomo alguma distância apenas para registrar que hoje nos despedimos de um personagem magnífico, não menos que isso”, afirmou o poeta. “Sua morte veio com a marca que definiu sua vida: lucidez, determinação; bastante longe da facilidade ou da complacência. A tristeza é grande, mas há muita beleza em sua despedida”.

Antonio Cicero no Estadão

Em entrevista ao quadro Leituras Sabáticas, do Estadão, em 2012, no lançamento de Porventura, Cicero citou uma “urgência” que sentia em publicar suas reflexões filosóficas. “Para mim, a poesia é mais importante do que o que eu escrevo em prosa. Mas a poesia não precisa ser publicada imediatamente, enquanto os artigos, a impressão que eu tenho, é que é importante publicá-los, até por razões políticas”, afirmou.

Imortal da ABL

Cicero foi eleito imortal na ABL no dia 10 de agosto de 2017, ocupando a cadeira número 27 e sucedendo Eduardo Portella. “O que é um poema imortal? Um poema imortal é um poema cujo valor não depende de fatores externos a ele: um poema, portanto, que vale por si”, declarou ele em seu discurso de posse.

Imortais da ABL lamentaram a morte de Cicero, em nota enviada pela instituição:

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Merval Pereira: “Antonio Cicero é um dos maiores poetas de sua geração. A escolha da morte assistida demonstra sua fortaleza diante da vida. Preferiu morrer a viver sem poder fazer o que mais gostava: ler, escrever, filosofar. Uma escolha corajosa e coerente com o sentido que via na vida. A ABL programara para o final do ano uma homenagem a ele com um espetáculo em que sua irmã, Marina, cantaria suas músicas. Uma homenagem, agora póstuma, a um grande poeta brasileiro”.

Ana Maria Machado: “A perda de Antonio Cicero nos deixa um vazio. Raros, em qualquer cultura, conseguem conjugar o rigor intelectual de um filósofo brilhante com a sensibilidade aguçada de um poeta de primeira linha. Some-se a isso a dignidade moral de um ser humano exemplar. Para não falar no carinho e saudade com que os amigos vamos lembrá-lo. Sempre aprendi muito com ele e vou sentir muita falta”.

Arno Wehling: “É um perda grande para a cultura brasileira e a Academia. Sua sensibilidade e finura intelectual aliavam-se na poesia e na filosofia de modo admirável, envoltas numa permanente elegância de atitudes e expressão”.

Ricardo Cavaliere: “Recebo com profundo pesar a notícia de falecimento de Antônio Cícero. É como se a própria poesia resolvesse deixar-nos órfãos. Resta-nos cultivar sua obra com permanente leitura”.

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Godofredo de Oliveira Neto: “Estou devastado. Não faz tanto tempo assim estivemos juntos. Não quero acreditar. Para uma decisão tão corajosa quanto drástica houve muita força intelectual, psicológica e força afetuosa, qualidades que ele tinha de sobra”.

Rosiska Darcy: “Antonio Cicero escolheu morrer como viveu. Toda sua vida é um exemplo de dignidade e liberdade. Morreu dignamente exercendo sua última liberdade. Esse doce príncipe, nosso poeta tão amado, era belo demais para suportar tanto horror, perder a lembrança de si mesmo, do mundo e pessoas que tanto amou. Éramos tão amigos, que vazio, que tristeza imensa. Mas que homem de coragem!”

Lilia Moritz Schwarcz: “Antônio Cicero morreu como viveu: com elegância, independência, ética, autonomia. A poesia e a filosofia são atividades teoricamente opostas, mas Cicero as combinava com sua profundidade, afeto e sensibilidade únicos. Vai deixar muitas saudades mas uma imensa memória também”.

José Paulo Cavalcanti Filho: “Dele ficam só lembranças boas. Fique em paz, amigo Antônio Cícero. Saudades”.

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Domício Proença Filho: “Estou chocado, mas conformado diante da sua decisão, marcada pela coragem de poucos. Descansa em paz, amigo!”

Antonio Carlos Secchin: “Antonio já está fazendo falta por aqui, mas foi tudo como ele quis. Me empenhei muito pela entrada dele na Academia Brasileira de Letras, pois sabia da grande contribuição que ele daria como poeta, filósofo e letrista, mas principalmente pelo ser humano que foi. Muito íntegro, ético e sempre solidário. Amparado numa vasta cultura, uma presença constante e sempre atento. Vamos manter o recital ‘Marina Lima canta Antonio Cicero’, programado para o dia 12 de dezembro, encerrando o ano na ABL, que já estava marcado com ele em vida, para celebrar seu poderoso legado”.

Jorge Caldeira: “Fim digno de uma vida digna. Respeito em silêncio”.

Heloisa Teixeira: “Antonio Cicero tinha uma extrema clareza e luminosidade em sua poesia , sua filosofia, sua vida e amizades obedeciam esse padrão. a precisão, a entrega destemida, a elegância radical. O poeta filósofo mais importante de sua geração. Desde que soube de sua morte, estou lendo seus poemas sem conseguir parar. E percebo quesão poemas novos a cada leitura. Ele ficará pra sempre”.

Homenagem de Marina Lima

Há algumas semanas, Marina Lima havia publicado uma homenagem pelo aniversário do poeta no Instagram. “Cicero é meu maior parceiro nesses anos todos de carreira, um grande letrista, poeta e filósofo que tenho a alegria de ser irmã”, escreveu na ocasião.

Nesta quinta, 23, a cantora publicou uma imagem de luto em seu perfil.

Homenagem de Caetano Veloso

Assim que soube da morte do amigo, Caetano Veloso também usou as redes sociais para lamentar a partida do poeta. “Ao acordar, fiquei sabendo de Antonio Cicero. Recebi mensagem dele, onde a coerência e a lucidez, que sempre foram características do meu amigo filósofo e poeta, impressionam, mas não desfazem a tristeza que sua ausência física me causa. Cicero foi meu melhor amigo, a pessoa mais correta que conheci. O afeto de amizade mais límpido que se possa imaginar. E uma inteligência luminosa. Marcelo, seu marido de tantos anos, deve entender minha tristeza e também meu orgulho pela coerência de Cicero. Sua irmã Marina pôs música em um poema seu e dali saiu um longo e brilhante repertório de canções. Ela também deve me entender. Adoro o desaforado livro de filosofia em que Cicero louva Descartes em época pós-estruturalista. Morrer por decisão própria enfatiza seu pensamento. E sua poesia”, escreveu. o músico

A conta de Gilberto Gil no Instagram também publicou uma homenagem a Cicero, compartilhando uma foto dos dois no dia em que o cantor recebeu a notícia de sua eleição para a Academia Brasileira de Letras. Em comunicado da ABL, Gil escolheu um trecho de Vida louca vida, de Cazuza, para registrar a passagem do escritor: “Vida louca vida, vida breve / Já que eu não posso te levar / Quero que você me leve”.

Carta de despedida de Antonio Cicero

Queridos amigos,

Encontro-me na Suíça, prestes a praticar eutanásia.

O que ocorre é que minha vida se tornou insuportável. Estou sofrendo de Alzheimer.

Assim, não me lembro sequer de algumas coisas que ocorreram não apenas no passado remoto, mas mesmo de coisas que ocorreram ontem.

Exceto os amigos mais íntimos, como vocês, não mais reconheço muitas pessoas que encontro na rua e com as quais já convivi.

Não consigo mais escrever bons poemas nem bons ensaios de filosofia.

Não consigo me concentrar nem mesmo para ler, que era a coisa de que eu mais gostava no mundo.

Apesar de tudo isso, ainda estou lúcido bastante para reconhecer minha terrível situação.

A convivência com vocês, meus amigos, era uma das coisas – senão a coisa – mais importante da minha vida. Hoje, do jeito em que me encontro, fico até com vergonha de reencontrá-los.

Pois bem, como sou ateu desde a adolescência, tenho consciência de que quem decide se minha vida vale a pena ou não sou eu mesmo.

Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade.

Eu os amo muito e lhes envio muitos beijos e abraços!

Eutanásia ou suicídio assistido

Antonio Cicero menciona a palavra eutanásia em sua carta. A origem da palavra vem do grego e significa “boa morte”. Ela consiste na aplicação de uma dose letal de algum remédio por um médico que esteja acompanhando o tratamento de um paciente em estado terminal, sem perspectiva de melhora. O que é permitido na Suíça, e também em outros países, na verdade, é o suicídio assistido, quando o próprio paciente toma o remédio letal. É usado na maioria das vezes também por pacientes em estado terminal, que sofrem de doenças incuráveis. Veja onde a morte assistida é permitida.

Onde buscar ajuda

Se você está passando por sofrimento psíquico ou conhece alguém nessa situação, veja abaixo onde encontrar ajuda:

Centro de Valorização da Vida (CVV)

Se estiver precisando de ajuda imediata, entre em contato com o Centro de Valorização da Vida (CVV), serviço gratuito de apoio emocional que disponibiliza atendimento 24 horas por dia. O contato pode ser feito por e-mail, pelo chat no site ou pelo telefone 188.

Canal Pode Falar

Iniciativa criada pelo Unicef para oferecer escuta para adolescentes e jovens de 13 a 24 anos. O contato pode ser feito pelo WhatsApp, de segunda a sexta-feira, das 8h às 22h.

SUS

Os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) são unidades do Sistema Único de Saúde (SUS) voltadas para o atendimento de pacientes com transtornos mentais. Há unidades específicas para crianças e adolescentes. Na cidade de São Paulo, são 33 Caps Infantojuventis e é possível buscar os endereços das unidades nesta página.

Mapa da Saúde Mental

site traz mapas com unidades de saúde e iniciativas gratuitas de atendimento psicológico presencial e online. Disponibiliza ainda materiais de orientação sobre transtornos mentais.

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